quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Nepô!



- Barbosinha? Aqui é o ...
- Você tá louco em me ligar assim? Olha o grampo... olha o grampo, cara...
- Calma, mano, não tem perigo. O caso do desvio caiu com o tio Antenor.
- Mas que ótima notícia! É um ótimo e parcial... digo imparcial, juiz. Mas me preocupa aquele cara da PF que está investigando.
- Mas você se preocupa à toa, ele é cunhado da Cíntia...
- Cunhado não é parente, você bem sabe disso. 
- É que, além de cunhado da Cíntia, ele é primo do deputado Ruiz. 
- Ah! Então é parente... e como o Ruiz está? 
- Enroscado com uma denúncia absurda de nepotismo, você acredita? 
- Nepotismo? De onde tiram essas histórias?
- Foi... só porque conseguiu emplacar o filho cego como motorista da Presidência do Senado.
- Mas que oposição tacanha! Indecentes! Coitado do garoto, precisa se sustentar...
- Sim, é um direito de todos... mas você sabe, né? Esse pessoal fica procurando pelo em ovo!
- Manda então um abraço para o Ruiz e também pr’aquele assessor que indiquei para ele.
- Quem? 
- O primo Castilho!
- Castilho... Castilho...
- Você sabe, ele estava na festa de cem anos da vovó.
- Ah, é mesmo, lembrei, que memória a minha!
- Aliás, um festão, né? só parente dos bão!
- É mesmo! Conversei muito com ele sobre aquelas licitações das Olimpíadas, com ele e com um membro do comitê, o sogrão batuta... Mas peraí!
- Que foi? 
- Não foi ele que se separou recentemente? 
- É mesmo, foi sim... Ixe!
- Com cachorro bravo, ladrão armado e ex-mulher, melhor mesmo é manter distância... 
- Ops! Desligando... 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Vinténs - Thio Therezo


Codos

“Que mordam los codos, seus cornos!!!” Thio Therezo em seus esporádicos ataques de raiva...


Cidadão do mundo

Raro não era, o Thio Therezo e meu pai se estranhavam e discutiam por besteiras. Pragmático pai em embate com o Thio que todos conhecíamos tão bem, para desespero de minha mãe que tentava apaziguar o ambiente e, em um impulso de mostrar a harmonia familiar, sobrava para a gente, nessas horas, as deliciosas sobremesas que ela fazia, sobremesas individualizadas e generosas. Nem tudo estava perdido...
Naquele dia, o Thio disse, com a boca cheia, que era cidadão do mundo, assim mesmo ele disse. Ao que o pai retrucou do alto de sua razão.
“É... cidadão do mundo... bah! mas mesmo assim você precisa de visto para entrar nos EUA...”
Naquele dia, teve rapadurinha de amendoim, minha predileta...



Lugar predileto

Thio Therezo era muito discreto ao dar suas opiniões sobre qualquer coisa que parecesse um ranking, achava uma imensa e completa baboseira isso de o melhor sei-lá-o-quê, ou aquelas intermináveis listas de os dez-melhores ou os cem-piores ou o que seja que tanto inventam por aí.
Por isso, nunca ouvimos dele qual era o seu lugar predileto no mundo, ele que tanto viajou, tantas esquinas frequentou, tantos cantos... Mas nós temos a certeza, pelo brilho de seus olhos, que se o esquecermos em um daqueles imensos vales perdidos no meião da Irlanda, cuidando de meia dúzia de ovelhas e tendo como companhia poucas e bem escolhidas pessoas, ele seguramente não iria reclamar...



A rubrica

Muito se tem especulado sobre a pequena rubrica que aparece no canto inferior das páginas do primeiro contrato assinado pelos Beatles com o tal Brian, e lá se vão tantos e tantos anos.
Foi um aval? Apenas uma rubrica de testemunha? E, principalmente, quem a fez?
Tais dúvidas, ao longo dos tempos, produziram inúmeros artigos e até uma tese de Doutorado na Universidade de Liverpool, onde mais seria?
Thio Therezo, ao ouvir tantas especulações, apenas sorri. Nem nega, nem confirma, só sorri...

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O ponto de Euclides.



Quando eu lhe disse, naquela já longínqua noite de sexta-feira, e naquele bar da moda, que já tínhamos nos encontrado em algum lugar, senti o seu sorriso irônico frente àquela supostamente mal feita cantada. Mas não era uma cantada, não era, eu realmente quis dizer aquilo e, quem diria, deu certo, cantada ou não, passamos a noite inteira juntos.
E agora, tantas sextas-feiras depois, quando conseguimos nos olhar frente a frente sabemos que estamos nos enganando nesta cidade, neste apartamento, ficando surdos com o constante barulho dos automóveis passando à altura de nossos ouvidos. Mas naquele dia, tanto tempo já, você ainda tentou acompanhar a minha suposta cantada, estávamos muito animados naquela noite. Você, imaginando então nossas vidas passadas, concordou que sim, que já tínhamos nos encontrado antes, sim, éramos príncipe e princesa vivendo em um castelo no vale do Loire, você provocou com este seu sorrizinho, ou talvez fôssemos dois camponeses chineses, é uma possibilidade mais real, eu emendei esticando a brincadeira em uma direção diferente da planejada... seguramente mais real, mas quem gostaria de se imaginar como mais um camponês chinês? você emendou irônica sorvendo sua marguerita. Questão de probabilidade, querida, pensei, mas por que estragar nossos sonhos mais profundos? Concedi afinal com o meio termo de burgueses meio ricos e esnobes vivendo no início do século passado em Nova York.
Talvez fôssemos duas amebas, você propôs, ainda descontente com as minhas propostas, dois esquilos na selva amazônica e, sei lá porque o meu pensamento nesta hora se desviou da conversa, imaginar dois esquilos na selva amazônica, quem diria, já tínhamos bebido demais! Pelo que me lembro, a noite acabou de forma desastrosa, ainda bem que estávamos tão bêbados que nunca nos lembramos direito o que aconteceu. Felizmente decidimos, uma semana depois, nos darmos uma nova chance e cá estamos nós dois discutindo inúmeras teorias sobre o cotidiano e sobre o caos, assistindo TV e nos enganando nesta cidade maluca. 
Mas o que eu nunca contei a você nestes anos todos de convivência foi o que eu realmente quis dizer em minha suposta cantada daquela primeira noite. E agora parece tarde para tudo isto, irremediavelmente tarde, nossas teorias malucas já não nos divertem tanto quanto antigamente, mas vá lá, conto assim mesmo. Sim, já estivemos juntos em outro momento, e não menciono nenhuma real possibilidade de termos roçados nossos ombros em uma destas tantas multidões desta cidade maluca, não. Mas sim, porque, se é que houve de fato o tal do tão falado Big Bang, aquela explosão de onde tudo se criou, naquele momento inicial estávamos todos juntos, você, eu, nosso amor, nossas mal dormidas noites, nosso ultimamente sexo apressado, nossas mágoas mútuas, os carros passando à altura de nossos ouvidos, o bar da esquina, aliás todos os bares de todas as esquinas desta cidade, que esquina é o que não falta nela, todos e tudo juntos e espremidos naquele apertado caldo primordial. Caldo é modo de dizer, querida, era aquele algo indefinido e confuso que ninguém explica direito, estava mais para um mero ponto, lembra? Um ponto ínfimo onde, espremidos, estávamos juntos tudo o que se conhece ou que ainda iremos conhecer: você, eu, este conto, nosso neto que nem nascerá por falta de pais, tudo, sem exceção. E ele e ela também, espremidos que estavam entre nós dois naquele caldo primordial, incomodando-nos e antecipando de certa maneira os problemas que iriam florescer em nosso convívio neste pequeno apartamento de trinta metros quadrados. Problemas que, a bem da verdade, também deveriam estar lá conosco naquele momento, se é que esta tal teoria do Big Bang não é também um delírio de conversa de bar num final de noite de sexta-feira.
Quando você, ano passado, aproveitando-se de que eu tinha viajado, resolveu remexer as minhas gavetas e de lá tirou todas as suas conclusões, nosso destino já tinha se selado. As gavetas, as cartas, as conclusões e tudo o mais que se seguiu, as lágrimas, os gritos, a injustiça, a usual chantagem emocional, já estava tudo lá nos primórdios, no tal caldo, naquela primeira vez que nos encontramos e que depois, naquela confusão toda que se seguiu ao Big Bang, nos separamos e eu lhe perdi de vista. E voltaríamos a nos encontrar tanto tempo depois, naquele bar, naquela sexta, se é que já não tínhamos nos encontrado antes, quem sabe como pingüins no Pólo Norte (pingüins no Pólo Norte, que idéia!).  
Se é que faz algum sentido esta tal teoria de Big Bang, ele também estava lá, junto a nós. A propósito, você se lembra se pelo menos trocamos algum olhar naquela expansão toda? Foi tudo tão rápido e barulhento, pelo que me lembro, e não me lembro tão bem assim, tanto tempo já, mas acho até que na correria toda, nem tivemos a oportunidade de nos olharmos direito, estávamos todos muito preocupados onde iríamos parar afinal, parecia até uma mudança decidida de última hora, aquela expansão toda que ainda segue, e segue pelo que me consta... Mas assim como ela estava lá, ele também nos acompanhou naqueles primórdios, ele com quem você iria se encontrar em seu flat perto da Paulista só para se vingar de mim, vingança boba, querida, estamos nos enganando nesta cidade.
Poeticamente muito mais interessante do que qualquer outra, esta teoria da explosão inicial a partir de um quase nada, ela me permite imaginar tudo que hoje vejo ao meu redor espremido em um incômodo, promíscuo e apertadíssimo ponto. Como seria possível então separar a sua raiva e a sua decepção da minha insegurança, sua mágoa de minhas manias, as cartas de sua vingança, tão grudadas elas estavam naquele momento? Como me separar de você e dela? Como imaginar seus pensamentos longes dos meus, em qual momento da expansão nos separamos afinal de forma definitiva? Nos separamos sim e, sim, de forma definitiva, isto é incontestável. 
E agora você, deitada com sua cabeça no meu colo, parece sonhar enquanto eu lhe cafuneio um pouco, meus dedos de uma mão se enroscando em seus longos cabelos tingidos de castanho enquanto que a outra mão me serve automaticamente um sanduíche de queijo. E eu tento entender o porquê desta história toda, parece loucura imaginar tudo isto, coisas, pessoas e sentimentos espremidos em um ponto, que por definição é indivisível, como se coubesse tudo lá, como se fosse possível nos imaginarmos dividindo nossos sonhos e cabelos tingidos com nossas decepções e ciúmes à espera de uma explosão. Fico imaginando que foi naquele momento de separação que tudo foi decidido, nosso futuro, nossa conversa naquele bar naquela sexta-feira, a sua ironia cotidiana comigo, a pior das mortes, a televisão que irá lhe irradiar um câncer definitivo tanto que você a vê, tudo lá! 
No outro dia, li no jornal que uns japoneses, sempre eles, tinham inventado uma pecinha (que, na foto, se perdia no dedo indicador de uma japonesa sorridente) onde se poderia colocar não sei quantos sigazetabytes de informação. O otimista e empolgado apresentador anunciava que logo seria possível armazenar toda a informação que o mundo contém em uma pecinha daquela. Imagina você? Toda a informação do mundo concentrada... só de pensar, dá para perder o rumo. Que tal então se armazenássemos lá todos os nossos sentimentos, nossos fantasmas, nossas esperanças e inseguranças e tudo o mais que temos de nós? Os carros, o apartamento, a surdez crescente, a irradiação que trará o câncer, tudo... ele, ela, as gavetas, minhas viagens, o rancor, minha insegurança, as malditas cartas e o flat na Paulista. E talvez, com isto, poderíamos então, seguros de que tudo isto estaria finalmente a são e salvo e, principalmente, distantes, voltarmos a sermos o que deveríamos ter sido desde o início. Estaríamos voltando aos primórdios, tudo concentrado em um ponto e talvez, neste dia, voltaríamos a nos encontrar de novo, uma nova expansão, o tal universo em expansão... e quem sabe até nos entendermos afinal.
Ah! Os japoneses e suas pecinhas maravilhosas também estavam lá com a gente no começo de tudo... Haja espaço naquele ponto!


[Esse conto foi publicado no número 153 da Revista Pesquisa FAPESP em novembro de 2K08 e aparece no livro Contos&Vinténs]

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Bibo!


E aí você está todo concentrado tentando finalizar um conto para postar em seu blog quando, do nada, o telefone toca. E aí você atende.

“Eu queria estar falando com o Flávio Ochoa...”
“Não tem ninguém com esse nome aqui...” você responde, mas o outro lado é insistente.
“... Flávio Ulhoa...” ele tenta de novo, desta vez juntando todos os neurônios disponíveis para conseguir ler direito o que a tela mostra à sua frente.
“Esse tem!” você responde.
“Estou falando com ele?” ele pergunta, sem nem esperar resposta. “Oi, Flávio, é o Danilo falando, da Bibo Relacionamentos”, ele completa tentando fingir uma intimidade que, deve ter gente que gosta, mas você não.
E aí você olha o relógio e pergunta a ele se ele sabia que horas eram, sua concentração no trabalho já se foi para o espaço.
“Sei, são oito e meia da noite... mas não se preocupe, Flávio, eu trabalho até as nove...” 
E antes que você pudesse reagir e dizer que você não quer discutir nada disso a essa hora, ele emenda com mais uma pérola.
“Flávio, para sua própria segurança, nós vamos estar gravando essa ligação, tá?” Pronto, a frase mágica: para sua própria segurança, para sua própria segurança...
E aí você quer entender o que isso significa, “como assim?” você pergunta.
“Hã? É isso que eu falei, vamos estar gravando essa ligação para a sua própria segurança.” Pronto, aí você não pode deixar escapar suas dúvidas.
“Mas por que vocês gravariam isso para a minha segurança? A Bibo está com más intenções comigo?”
“Não...”
“Ela está tentando me enganar? E por isso é que eu preciso de uma gravação?”
“Não, senhor, é para a sua própria segurança... se o senhor me deixar explicar...” e aí você deixa... deixa ele explicar.
“É que se o senhor contratar algum serviço conosco, tudo ficará gravado para a sua própria segurança!”
“Mas são vocês é que estão gravando, que garantias eu tenho?”
“O senhor também pode estar gravando se quiser...”
“Mas eu não quero gravar, vocês é que estão gravando...”
“É para sua própria segurança, senhor...”
“Parece que vocês desconfiam de mim...” você arrisca para ver qual a resposta.
“Nada disso, senhor. Se o senhor quiser, podemos enviar a gravação depois...”
“E quem me garante que vocês vão me enviar a gravação correta? Já que são vocês é que têm a gravação... talvez venha algo editado...”
Sem nos entendermos, ainda trocamos alguns minutinhos de conversa, sinceramente eu não conseguia entender o porquê deles estarem tão preocupados com a minha segurança em uma negociação com eles. Até que, já deve ter dado o tempo que ele precisava, por contrato, manter a ligação, ele resmunga contrariado.
“Não dá para conversar com o senhor, passar bem!”
E aí você está muito ocupado para ligar de volta para a Bibo e dizer que um dos atendentes não foi treinado direito, ele não pode perder o humor com o cliente, nunca, jamais. E, provavelmente, ele deixou de estar gravando essa sua última fala...
E aí, você já está desconcentrado mesmo e demorará um tempo extra para conseguir finalizar o conto. Por outro lado, você aí já tem uma estória para a semana seguinte...