quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Terápia


          Malas já devidamente acomodadas no quarto do hotel, é hora então de uma primeira exploração na cidadezinha que o cerca. A pé, como convém; máquina fotográfica indispensável; acompanhado, melhor assim.
          Hora então de conseguir um mapinha da cidade. Mesmo já tendo em seu bolso o celular de última geração, o melhor é ter aquele mapa de papel, cheio de anúncios pelos cantos, tão incômodo em dias de ventos fortes, que se rasgam ao longo da jornada, mal dobrado no bolso. Sim, desses! Minha preferência deve ter a ver com as minhas primeiras viagens que mais pareciam insanas aventuras, pela juventude já vivida e crônica falta de dinheiro daqueles tempos (já não é mais tão crônica, mas também dinheiro sobrando não há).
          Em tempos de tantas facilidades prá viajar, algo do passado felizmente resiste em mim.
          Já devidamente pronto para a exploração geográfica, ânimo em alta, você aí pede um mapinha da cidade no balcão de entrada do hotel.
          Aí, a simpática e sorridente moça te estende um.
          Aí, você o pega agradecido. Mas percebe, inquieto, que ela ainda não o largou e você sente então aquela energia estranha se aproximando, o tempo se nubla, o sol se esconde...
          Aí, ela te olha, sorri mais ainda e diz: “deixa eu te mostrar os pontos principais da cidade”.
          Aí, você quase responde: “não, não precisa, eu me viro...” (de que adianta ter um mapinha se não é prá se confundir com as direções? Se não é prá se convencer da falta de indicação de ruas e praças? Se não é prá perceber que é um mapa feito 20 anos atrás? Prá que ter um mapinha se não é prá se perder por aí e descobrir coisas que o guia Michelin nunca mostraria?)
          Mas, aí, você percebe que a simpática e atenciosa moça não larga o mapa, que ainda sorri enigmaticamente para você e sua companhia. Aí, você se dá conta que simplesmente destruiria um coração se recusasse a ajuda dela (e sua quota de corações destruídos por conta de sua insensibilidade já parece completa).
          Aí, você desiste. Você é que terá o seu coração partido, desiste e concorda com um leve balançar da cabeça. Mesmo assim, quase diz: “sim, mostre-me os lugares principais mas não pegue a caneta, fique longe dela!”
          Aí, você a vê abrir sobre o balcão o mapinha e (não, não, isso não...) a vê pegar a caneta bic azul borrenta!.
          “Bom, nós estamos aqui”, ela diz caprichando uma desproporcional cruz sobre o hotel. E lá se vão duas quadras ao redor... Seu coração sangra, mas ainda espera pelo melhor, otimista que sempre foi, que ela desista da caneta ou que a sua tinta acabe.
          “Saindo por aqui...”
          “À direita?” você tenta distraí-la apontando para a porta do hotel. Mas ela é treinada para tal, há uma disciplina eletiva no curso de hotelaria só para treinar a marcação de mapinhas, muito concorrida aliás.
          “Sim, saindo por aqui, à direita...” ela prossegue sem nem olhar para a porta que você aponta e risca um trajeto, a esperança se esvai ao vê-la entusiasmada na indicação do caminho que você tem que seguir até chegar a, ao que parece, uma catedral, é impossível distinguir algo debaixo dos círculos que ela faz para indicar o local que deve-se ir em primeiro lugar.
          Olho o mapinha e, por ora, apenas um caminho está marcado. Penso em como pegá-lo rapidamente e sair correndo pela porta do hotel. Com sorte, eu a surpreendo e, com a vantagem de que ela precisará dar a volta ao balcão para me alcançar, consigo uma dianteira que a faça desistir de me perseguir pelas ruas com a caneta azul bic. O perigo é a minha acompanhante ser feita de refém nesse momento e só ser liberada se eu retornar o mapinha para a finalização das explicações e marcações.
          Desisto novamente, sua mão foi mais rápida que a minha capacidade para decisões extremas e, de quebra, perdi a maioria das explicações, já quase todo o mapinha está riscado.
          A cereja do bolo foi a indicação da recém inaugurada ciclovia que margeia o rio da cidade (qual? sei lá, não consigo ler com tantos rabiscos...). Duas longas e tortuosas linhas azuis agora cruzam o mapinha de ponta a ponta indicando a tal ciclovia.
          Sorrio, agradeço e quase peço um outro mapa sem riscos (isso ficará para depois, quando outro atendente estiver no balcão de entrada do hotel).
          Saí, pela esquerda do hotel, preciso beber algo. Ainda bem que encontrei o que precisava:



quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

oulipiana



A bela criatura discreta e felina gentilmente hibernou intramuros já levando mera noz ou pequeno queijo restando somente trazer um véu xadrez ziguezagueado.



[[O sempre atento (e grande amigo) Ton Marar mandou-me a imagem abaixo a respeito de minha crônica da semana passada:

Bom ter leitores assim engajados!]]

[[ Springer. Acabo de assinar um contrato com a Springer que irá publicar o meu próximo livro de matemática, esse em co-autoria com o colega Ibrahim Assem da Universidade de Sherbrooke,  Quèbec. Agora, à revisão final do texto.]]





quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Bueiros inteligentes



         O Thio Therezo é da época em que a palavra inteligente qualificava um ser humano, um elogio a uma característica desses seres aparentemente especiais. Não era algo que poderia se referir a coisas e objetos, muito menos a, por exemplo, um... bueiro!
          - Sim, um bueiro - o Thio se indignava novamente frente à televisão, estávamos vendo um daqueles programas noturnos de variedades – essa matéria aí é sobre um bueiro inteligente! Ach, a que nível chegamos!!!!
          E o Thio agora estava de pé, olhando para a televisão em efusivo e adiantado estágio indignativo. Sim, o Thio era do tempo em que as pessoas ainda se indignavam com as coisas, com os absurdos ouvidos e lidos. Quando parar de se incomodar com certas coisas, o Thio Therezo costumava dizer, melhor morrer.
          - Melhor morrer!!!! – gritou ele.
          Mamãe, irmã do Thio, apareceu de sopetão na sala para ver do que se tratava aquela gritaria toda. Anos de convivência e não tínhamos ainda nos acostumados com os repentes indignativos do Thio. A irmã do Thio, nossa mãe, convenceu-se após alguns instantes que, na realidade, tudo estava em ordem no universo, ninguém estava realmente a morrer e voltou para a preparação de uma daquelas deliciosas sobremesas que tanto adoçavam nossa vida.
          Mas, volta à sala, seguiu o Thio a dissertar por um longo tempo sobre as inúmeras inteligências que se encontravam atualmente, bastava olhar ao redor e lá vinham postes inteligentes, aviões inteligentes, tecidos inteligentes, inteligências inteligentes.
          - Lasanha inteligente, onde já se viu? Vocês a conhecem?
          Frente à nossa negativa e curiosidade, ele então nos contou a estória dessa tal lasanha especial. Aparentemente ela continha uma substância que ajudava na digestão, ao menos assim vinha escrito no cardápio. Por isso, inteligente era e se era assim inteligente por que não trocar com ela algumas ideias?
          - Mas qual-o-quê? Tentei conversar com a lasanha e nem nas usuais amenidades ela quis se meter. Tentei outras frivobanalidades e nada de nadinha. Ficou muda, ignorou-me totalmente! Imagina se tentasse falar sobre filosofia pós-oriental? Ou matemática pré-paradoxal? Física neoquântica? Bah! Na realidade, nem quis insistir muito pois corria o risco da tal substância que ajuda a digestão não cumprir o seu papel e aí, já viu, né? Por fim, nem reclamei da falsa propaganda com o dono do restaurante, ainda mais que, de qualquer forma, a lasanha estava muito saborosa. Burrinha, burrinha, mas muito saborosa.
          Nessas horas, sabemos, melhor é não retrucar, melhor mesmo é tentar usufruir dos ensinamentos do Thio Therezo, a despeito de suas iras usuais voltadas ao universo que, de acordo com ele, se perdeu totalmente. Além disso, de inteligência o Thio entende, é famoso o seu livro “Inteligências pós-artificiais e neonaturais” que tanto sucesso fez anos atrás. Misturando conceitos filosóficos rigorosos e profundos com conexões ao nosso banal cotidiano, esse livro agradou tanto a crítica quanto o público. Pena que eram tempos outros aqueles, e logo o livro foi descendo em sua hierarquia até ser vendido nas estantes de auto-ajuda, cercado pelos livros de culinária medieval de um lado e por biografias autorizadas de duplas de sertanejos acadêmicos pelo outro.
          - Em tempos de terraplanistas e escolas sem partidos, os inteligentes são os bueiros... os bueiros!!! – saiu praguejando o Thio Therezo do alto de sua indignação.
          Aproveitamos e mudamos o canal para um pacato filme de guerra intergaláctica. Sinais dos tempos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

iba áles, quatro


- moço bonito esse que caiu do céu hoje...
- que estória é essa, menina?
- barbudo, meio sujo, mas bonito!
- cada coisa que você me inventa, ach!
- ele se estrupiou todo na queda, sobrou pouco.
- ah é? depois você me mostra ele, tá?
Podia mostrar não, ficou com pena do moço bonito, abriu um buraco, jogou lá dentro, sacrilégio deixar aos urubus.
- o trovão antecipou a queda...
- como? céu azul, limpinho.
- céu azul, mas o trovão veio vindo de longe, nada se via por cima das árvores, foi crescendo, trovão foi crescendo e de repente o barulho dele caindo.
- assim?
- é! foi rasgando as folhas e se estrupiou todo, moço bonito, barbudo...
- ach, menina! que imaginação...
De repente, o silêncio veio adentrando o salão onde se reuniam todos, silêncio acompanhando os passos firmes do doutor.
Já lá na frente de todos, ele ajeitou o microfone e cumprimentou a todos.
- iba áles!
- iba áles! - responderam em uníssono as bocas caladas, as vozes inexistentes.


[[ Apresentação do Pigarreios. Nessa quinta-feira, dia 29 de novembro, o meu livro Pigarreios será apresentado na FNAC do Gaia Shopping, em Vila Nova de Gaia, Portugal. É na Av. dos Descobrimentos, 549. Lá pelas 19 horas. Apareçam!!! ]]

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Setor 24 do Estádio da Luz


          Há tempos o setor 24 do Estádio da Luz é, digamos assim, místico. E para o Thio Therezo, em particular, é o setor que tem o maior encanto no principal estádio português. Pois foi lá que ele assistiu, estupefato, à derrota de Portugal para a Grécia na final da Eurocopa de 2004. Chorou junto aos adeptos portugueses, naquela que seria a grande decepção futebolística do país (doze anos depois, Portugal iria ganhar o seu título, mas longe da Luz o que, digamos, não é a mesma coisa...). Foi nesse setor também que o Thio viu o Real ganhar do Atlético, ambos de Madrid, aquela final épica da Champions de 2014.
Não por outro motivo, quando o Thio Therezo foi comprar ingressos para o jogo do Benfica com o Ajax, ele escolheu justamente esse setor. Jogo crucial da Champions League para a equipa dos encarnados.
          É lá que encontramos o adepto cego que acompanhou tudo com o seu fone de ouvido. Torceu, festejou o golo do Benfica que aconteceu bem na nossa frente, sofreu no escuro o seu sonho de vitória.
Mas é lá também que a menina de seus quinze anos xingou e xingou os jogadores e tanto xingou que o Thio comentou com a gente que estava atualizando o seu vocabulário de adepto português. Aliás, a torcida feminina do setor 24 foi bem atuante, gritos e gestos.
          Foi lá que ouvimos os adeptos (ouvimos mas não vimos direito) do Ajax logo acima da gente, nível 2 do estádio. Pequena e barulhenta, essa torcida se sobrepôs aos gritos de “Benfiiiiicaaa...” em quase todos os momentos do jogo. E, antes mesmo de seu início, vimos as cadeiras vermelhas se lançarem em longos vôos inimagináveis, reagindo assim aos cassetetes (cacetetes?) e sprays pimenta da tropa de choques. De um lado a outro, de outro lado a um, as cadeiras ao final trocaram de lugar, tão cansadas elas estavam daquela rotina numérica.
          É, foi lá que, bem atrás da gente, dois ingleses falaram e falaram e falaram o jogo inteiro (e como falam os ingleses!), naquele tom monocórdio e supostamente engraçado (e como eles se acham engraçados!). Parece que até viram um ou outro lance da partida.
          Torcida uniformizada japonesa nas primeiras fileiras.
          Muitos adeptos do setor 24, muito mais do que de outros setores, foram transportados instantânea e miraculosamente aos telões do estádio. Aos pares, grupos dispersos ou mesmo sozinhos todos sorriram e acenaram desfrutando de seus eternos momentos.
          Lá, no setor 24 nada escapa... Nem o melô do fingidor:
O jogador é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que pretende quente
          E lugar melhor não há para se ver o rasante que a águia Vitória dá sobre os torcedores no pré-jogo antes de pousar gloriosa, como gloriosa é a equipa dos encarnados, no meio do gramado. Ou ver o gandula passar o jogo brincando com a bola, sonho de garoto, sonho de estar dentro do campo do Estádio da Luz e brilhar.
          Beijos calorosos, flertes desperdiçados na noite friazinha, selfies abundantes, premières, repetições, reencontros, acertos de contas, desacertos, cadeiras ocupadas por espertinhos, hot-dogs fedorentos, cervejas baratas.
          Nada se perde estando no setor 24, nível 0, do Estádio da Luz. Nada.
          Cachecol comemorativo e gorro vermelho, despedimo-nos do Thio logo que saímos do estádio e caminhamos para casa no friozinho de novembro, acompanhados de outros torcedores e sonhos e cotidianos suspensos, deixando para trás o setor 24 à espera de seus novos momentos de glória.
Ah! E o jogo? Terminou empatado...


[[ Apresentação do Pigarreios. Na próxima quinta-feira, dia 29 de novembro, o meu livro Pigarreios será apresentado na FNAC do Gaia Shopping, em Vila Nova de Gaia, Portugal. É na Av. dos Descobrimentos, 549. Lá pelas 19 horas. Apareçam!!! ]]

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

iba áles, três


A chuva sequer se deu à gentileza de parar naquela manhã. Constante e irritante, o celestial gotejamento fazia piorar ainda mais a dor que ele sentia. Encurvado, o seu pequeno e velho e roto guarda-chuvas mal o protegia da água suja que o céu vertia em cima dele.
Em tempos de neotempestades, permanecer seco era um grande desafio para ele. Mesmo dentro de casa, parecia que a chuva não parava, o tempo nublado encobria todos os cômodos, a neblina que por vezes aparecia escondia até a TV. Pisava poças quando andava do quarto ao banheiro, à cozinha, à sala.
Pingando chuva e desespero, dor e desesperança, ele finalmente chegou ao hospital. Dor insuportável, pressão lá em cima, primeira atitude foi o de deitá-lo em uma maca para estabilização. Ele olhava o teto branco e pensava, como pagar caso precisasse de algum tratamento? A dor seria amenizada, isso a compaixão incluía, incluiria até um pequeno lanchinho antes de ser despachado para casa. Mas a compaixão incluiria também algum necessário tratamento posterior?
Nem deu tempo de pensar muito. Ultrassom assim que a dor amenizou, ressonância assim que o ultrassom mostrou incoerências, o atendente assim que os resultados saíram.
- Bom, meu caro, acima de tudo, as boas notícias!
Ele esperava por uma que fosse, dois anos de más notícias e finalmente uma que fosse, pensou aliviado.
- Vejo pelos exames que você não tem pedras nesse rim direito. Mesmo porque você já não tem o rim direito...
Se o objetivo era desanuviar o ambiente com essa piadinha, o atendente não conseguiu, pois isso só encheu de mais dúvidas o paciente. Como assim eu não tenho o rim direito? Desde quando? Com a confusão estampada em seu rosto, o atendente percebeu que algo não ia bem e mudou o tom.
- Você não tem esse rim, se lembra de quando ele foi extraído?
Ele não se lembrava, não. Suas mãos tocaram o corpo e não sentiram nenhuma cicatriz, recente ou não. O atendente então pediu que ele levantasse a camisa e lá estava, a não cicatriz exibindo a sua não existência.
- Você tem algum ultrassom mais antigo para eu poder comparar?
Não, não tinha.
- Então está explicado. Você nunca teve rim direito, senão apareceria uma cicatriz. A dor, não sabemos sua procedência, mas deve ser a tal dor fantasma que tanto se fala atualmente, algo como uma pós-dor se se pode falar desse jeito, uma psico-dor de acordo com alguns estudos. Mero mimimi... Basta googlear que você encontra detalhes disso, essa internet hoje em dia nos ensina cada coisa! O conhecimento todo lá, nem se precisa mais de outras coisas.
E o atendente parou de falar finalmente. Nunca tive rim direito? Novidade isso. Mas talvez até nunca tenha tido essa orelha que acho que me falta agora, talvez esse dedo da mão esquerda que ora não vejo nunca tenha existido mesmo. Talvez tenham sido apenas frutos de minha imaginação. E eu, existo?
São seguramente os tempos neoprépós incorporados ao cotidiano, nunca se tem certeza do passado. O passado é o que estabelece o momento presente, tudo começa no exato instante em que se vive, nada dessa abstração chamada passado. Talvez o google possa me explicar esse eterno presente. Tempos de pós-passado.
          O atendente interrompeu suas inúteis divagações.
          - Vamos te receitar um calmante e repouso por uns dias. Mas não muitos, porque, acima de tudo, é preciso estar ativo. Ninguém mais quer uma pessoa que não contribua para o bem estar geral, né? E nada de ficar fazendo artes por aí, tá? Isso só vai agravar o seu estado.
          Dito isso e entregue a receita, o atendente se levantou, nada mais havia a ser feito lá. Ele, ainda atordoado, levantou-se, seguiu até a porta e ao tentar abri-la sentiu falta de sua mão, ela não estava lá como acreditava que estivesse quando chegou ao hospital. O atendente percebeu o seu embaraço ao olhar o vazio que ocupava a continuação do braço. Tempos de pós-gentilezas, ele sorriu amarelo e abriu a porta para o confuso paciente.
          Em tempos de neologismos, voltou para casa, mancando a falta de seu pé esquerdo. Não esqueceu de passar na farmácia para comprar o necessário remédio. Acima de tudo, sua saúde.


[[Essa é a terceira parte do conto, as duas primeiras foram publicadas nas semanas anteriores.]]
[[O Thio Therezo após ler esse conto apenas comentou: meio óbvio, não, garoto? meio década de sessenta... Não me restou senão sorrir amarelo, e nem retruquei que são os tempos que são óbvios, que são eles que estão muito década de sessenta, mas deixa prá lá.]]

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

iba áles, dois

          Doíam as suas costas, altura do rim direito. Seria uma pedra? Seria uma daquelas dores estranhas que o estava acometendo já há dois anos? Começaram leves, inconstantes e dispersas, pioraram, nunca pararam. Em tempos de neocertezas, o melhor seria se conformar. Mas não, ele resistia. Resistia meio que solitariamente, é certo, mas resistia, queria saber de onde elas vinham.
Meses atrás, descobrira depois de um sonho agitado que lhe faltava uma das orelhas. Procurou então por baixo do travesseiro, por entre os lençóis e nada. Conformara-se ao final, ainda ouvia bem e ainda tinha a outra orelha intacta. Deixou o cabelo crescer, um boné estratégico, ninguém repararia. E, se reparassem, nada seria dito, nada seria apontado nem perguntado. Nesses tempos pós-solidariedade cada um por si que já é demais.
          A dor à altura do rim direito o atordoava particularmente naquele dia e ele saiu bem cedo de casa para procurar ajuda. Descuidado, chamou o elevador assim que ouviu ele se mexer, já deveria estar liberado, já deveria estar disponível a todos.
          Mas qual-o-quê... assim que a porta se abriu nada evitou o constrangedor gesto de um sujeito tentando sair pois achou que já tinha chegado a seu andar e outro sujeito já se dirigindo a entrar no elevador que acabara de chegar. Quase se trombaram, o que poderia levar a consequências inesperadas a ambos, porém indesejáveis a ele.
O doutor percebeu primeiro a confusão e recuou, seu sorriso nada significava além de surpresa e, como o seu humor estava bom aquele dia, de aceitação. Ele, por sua vez, recuou, desculpou-se e tentou fechar a porta pra deixar a vida seguir os seus passos. Mesmo com dor, o prudente era esperar a sua vez.
Em tempos de pré-resignações  nada mais justo que aceitar o destino que nos é imposto intempestivamente e o doutor, magnânimo, segurou a porta aberta e, com um gesto, indicou ao assustado e indefeso e dolorido ele que ali se encontrava que entrasse, que compartilhassem juntos dessa experiência única que é ser transportado na vertical.
- Vamos, garoto, não se acanhe, entre, no elevador cabem nós dois.
Ele ainda persistiu em suas dúvidas, mas a dor o fez aceitar a grata oferta do doutor. Arrependesse depois, arrependido estaria. O doutor ainda falou, no intuito de apressar o rapaz que ainda hesitava.
- Vamos, garoto, o tempo urge!
Entrou. A porta se fechou e seguiram a vertical viagem rumo ao chão.
- E, garoto, acima de tudo, um bom dia!
Sabe a eternidade? É dividir um elevador com o doutor, poucos andares que sejam, tentando disfarçar a dor que sente. É tentar se posicionar à frente dele tentando deixar a sua faltante orelha fora de seu campo de visão. É sentir vergonha de seu cabelo comprido que serve mais pra encobrir que pra enfeitar. É puxar o boné, todo torto, para que não se veja o buraco por onde ainda escuta, por onde escuta cada vez mais, mais barbaridades. É se lembrar do dedo faltante e esconder a mão esquerda por trás da direita.
É esperar o tempo virar pós-tempo.
Mas a eternidade, mesmo ela, um dia se acaba levando junto o tormento. Quando chegaram ao térreo, ele se afastou para dar passagem ao doutor que sorriu e agradeceu.
E só aí ele se deu realmente conta de que compartilhara imprudentemente o elevador com o doutor e que ele até o tratara bem nesse dia.
Essa experiência, ele sabia, não seria relatada a quem quer que fosse. Nem mesmo ao porteiro que, agora está mais preocupado em responder apropriadamente o cumprimento do doutor. Nem a qualquer vizinho que talvez interpretasse mal o que escutasse, seria dado como bajulador de poderosos, seria dado como traidor. Nem aos pós-amigos ou aos futuros pré-conhecidos.
E, acima de tudo, torcer para que o doutor o esquecesse, que nunca se interessasse por sua existência.
Elevador liberado, ouviu os ruídos das pessoas apressadas. Apressou-se ele mesmo e saiu de mansinho pela porta dos fundos, não queria ser visto ali pelo primeiro vizinho que saísse do elevador.
          Passo lento, dor que encurva, seguiu seu caminho. Melhor ele também esquecer o que se passara, melhor se concentrar na dor que não passara e não passará, provavelmente, até sua ida ao seu médico.

[[ na próxima semana, a terceira e última parte desse conto ]]

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

iba áles, um


          Não que assim quisesse ou esperasse, muito pelo contrário, mas o dia amanhecia nublado de novo, frio, chuvoso. A chuva fina dos desesperançados, o céu cinzento dos impotentes, a tristeza dos remanescentes, dos resistentes. Dois anos já e o tempo era sempre esse, quase um desde sempre, já que a memória é curta nesses tempos de pré-mentiras e pós-verdades, tempos de neoinformações transitando nos subterrâneos da vida, nas sombras, nos esgotos.
          Pela janela, olhava a rua. À espera. Apesar da pressa, apesar da dor misteriosa em seu corpo, ele teria que esperar o elevador ser liberado para poder sair. E esperava como todos deviam esperar nesses dias, resignados e impacientes.
          Escada interditada por ordens superiores, todos no prédio, andares altos ou baixos, dependiam de um único elevador. Mas dependiam principalmente dele estar liberado, ninguém podia usá-lo pela manhã antes que o doutor assim o fizesse. Claro que isso trazia os devidos inconvenientes, atrasos no trabalho e na vida, repreensões por suposta vagabundagem, mal entendidos diversos, mas o que fazer?
À espera, olhava a rua pela janela. Pousou a mão esquerda no vidro embaçado e só aí percebeu, faltava-lhe um dedo, o quarto a partir do polegar, o segundo a partir do mindinho. Estranhou mais do que qualquer outra coisa, mais que uma possível dor, como é que poderia ter perdido assim o dedo? Olhou a mão, olhou os quatro dedos que ainda resistiam e não conseguiu olhar o dedo faltante. A dor do resto do corpo, que só piorava, fê-lo esquecer o dedo, uma coisa de cada vez. Doía mais no lado direito à altura dos rins, e como doía! Mas ele esperava, tinha que.
          Em tempos de pós-precisão, o doutor era quase metódico. Acordava serenamente e com a certeza da verdade embutida em suas entranhas. Um lento e preciso espreguiço ao que se seguiam as abluções matinais necessárias, o café escuro sem açúcar com torrada amanteigada, os ovos moles e uma fatia de bolo de mandioca amanhecido. Com a serenidade que lhe era peculiar, verificava a cada minuto o seu relógio de bolso.
Em algum momento precisamente indefinido entre oito e oito e meia da manhã, o doutor despontava altaneiro de seu apartamento de cobertura e encontrava o elevador à sua espera. Assim ele gostava, assim a vida o premiara, assim acreditava. Merecedor, disso estava convicto.
          Sozinho na grande maioria das vezes, ele descia até o térreo onde o porteiro teria a grata autorização de cumprimentá-lo respeitosamente ao que o doutor inevitavelmente responderia:
          - Meu caro, acima de tudo, um bom dia!
          Um carro o esperava na rua vazia. O doutor repetia ao motorista o mesmo cumprimento e, a depender do humor, até se permitia trocar um par de frases a mais, é importante tratar os subalternos com respeito, assim aprendera de seu pai. E lá seguiria o doutor sem olhar para trás, sem sequer imaginar a correria que deixava para trás, gente apressada disputando o único elevador agora liberado a todos.
          E nesse instante, todos sabiam, teriam que aproveitar aquele par de horas para usá-lo pois, passado esse tempo, a esposa do doutor poderia, ou não, necessitar do elevador. Ela costumava acordar mais cedo para preparar o café da manhã do doutor, claro que não dava tempo de se arrumar totalmente, mas a correria matinal incluiria sim uma ligeira arrumação pessoal. O doutor detestava tomar café com ela de pijama, mas isso era uma mania que herdara do avô, dizia sempre entre risos marotos para os seus seguidores.
          Com o doutor a bordo do carro, sua esposa finalmente relaxava, fumava escondida um de seus inúmeros cigarros e punha-se a se arrumar. Todos no prédio sabiam então que teriam um largo tempo de disponibilidade do elevador porque ela gostava e gostava, e quem poderia censurá-la por isso?, de ter esse tempo só para ela. Mais tarde, inevitavelmente, sairia e visitaria lugares que poucos sabiam onde eram, nem mesmo o doutor. Mas isso não vem ao caso de ninguém, não é mesmo? Em tempos de neoprépós, alguns assuntos são proibidos e outros, evita-se comentar.

[[ esse conto continua na próxima quinta]]

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Aljube, Resistência e Liberdade



          Descendo lá do Castelo de São Jorge pela rua dos trilhos, pouco antes da Sé, lado direito, há o Museu Aljube, Resistência e Liberdade. No prédio que abrigava os presos políticos do regime salazarista é possível agora ter uma clara noção daqueles tempos sombrios de Portugal, mas também das técnicas de regimes totalitários.
Fernando Pessoa, fazendo o caminho inverso e indo em direção ao Castelo, em seu guia “Lisboa, o que o turista deve ver”, menciona assim esse prédio: Um pouco mais acima, onde era antigamente o palácio do arcebispo D. Miguel de Castro, é a cadeia de mulheres conhecida por Aljube. Não merece a nossa atenção excepto no que respeita ao passado histórico do próprio edifício. Mas isso foi antes de Salazar, pois esse guia foi escrito provavelmente em 1925.
Logo no primeiro andar, compartilhando o espaço sobre Portugal do século XX, há um vídeo em que se repete e se repete um famoso discurso de Salazar por ocasião do décimo aniversário do golpe:

“... não discutimos Deus e sua virtude, não discutimos a autoridade e o seu prestígio, não discutimos a glória do trabalho e o seu dever, não discutimos a família e a sua moral, não discutimos a pátria e a sua história...” (Salazar, 1936).

          Repetido ad nauseam pela voz crescentemente irritante do ditador, esse mantra ocupa todo o espaço, penetra insolentemente nos ouvidos dos presentes, incomoda: “não discutimos, não discutimos, não discutimos”. É o começo do mal estar.

          As celas, a vigilância, as torturas, os interrogatórios, a enfermaria.
          Os processos Kafkanianos, a censura.
      Mas também a resistência, as guerras coloniais, o desgaste, a decadência desse regime depois da morte do ditador.
          Os cravos, o 25 de abril.
          Difícil não pensar que as ditaduras são muito parecidas em suas crueldades. Pouco mais ou menos, mais tecnológicas ou não, todas se parecem. Só diferem na forma em que terminam, com alguma ruptura (ou ao menos um símbolo) ou num grande acordo de convivência dita pacífica mas que, com o tempo, irá cobrar o seu preço.
          Na visita, cruzei com dois grupos de professores. Estavam lá, a convite, para conhecerem as atividades do museu e poderem organizar visitas de seus alunos.
          Oficinas, exposições. É preciso não esquecer, é preciso se ter memória, é preciso deixar claro o absurdo das ditaduras.

          A caminho da Praça do Comércio, o Thio Therezo comentou comigo que a ditadura de 1964 no Brasil não teve um marco que simbolizasse o seu final, não teve uma ruptura, só uma transição incorporando no novo regime o velho, o de sempre. Temos marcos para o início, para os vários recrudescimentos, mas não para o seu final. Nada de cravos, nada de 25 de abril.
          E se o final está em aberto, em aberto estará.
          Talvez por isso alguns defendem os crimes de tortura, de estupro e de fuzilamentos sumários sem sequer receber uma advertência institucional, como se propagar tais crimes fosse uma mera questão de liberdade de expressão. Talvez por isso revisionistas supremos rebaixam o status da ditadura a mero movimento. Talvez por isso o silêncio das tais instituições que, dizem, estão em pleno funcionamento.
          Talvez por isso, talvez, talvez.
          Passamos pela Sé e pela Santo Antônio e o Thio cantarolou enquanto observávamos as pombas na pracinha:
                    Grândola, vila morena
                    Terra da fraternidade
                    O povo é quem mais ordena
                    Dentro de ti, ó cidade
          O céu nublado da tarde de Lisboa chorava o nosso desânimo.

                    Lisboa, outubro de 2K18

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Mestres treineiros



          Dia outro, Thio Therezo chegou entusiasmado e, assim, contou-nos que tinha recebido o seu certificado de treinador de tartarugas de corrida, grau mestre. Finalmente, diz ele, pois simples não é, nem corriqueiro, imagine-se se poderia ser!
          Recordou-nos, mais uma vez, todo o processo que era chegar a tal honraria. O primeiro passo é convencer um dos três mestres supremos que estão habilitados a ministrarem treinamento para treinadores de tartarugas de corrida. E não é fácil isso, pois por conta da dedicação inerente a tal treino, eles não podem aceitar mais do que dezenove alunos por vez e, sabe-se, candidatos não faltam.
Dezenove alunos, divididos entre todos os três mestres supremos. Claro que por esse número não ser divisível por três, há entre eles uma silenciosa mas republicana porém encarniçada disputa por espaço. Quem tem mais alunos, é sempre melhor visto nessa sociedade, pois aqui, ao contrário de outros lugares, quem ensina está no topo da cadeia de prestígios sociais.
          O primeiro critério a ser analisado é o da maturidade. É coisa séria, é preciso ter vivência, e muita diga-se de passagem. Não é como assumir um desses cargos de poderes ilimitados pouco após sair da adolescência e decidir qualquer coisa que lhe venha à cabeça baseado apenas em suas convicções. Prá certas coisas, importa muito já ter vivido, ter experiências outras, ter assimilado o respeito ao outro e à sociedade, saber ouvir além de saber falar sem arrogância, não ser dono da verdade. E uma dessas coisas é justamente, ensina-nos um supremo mestre, a arte do treinamento de tartarugas de corrida.
          Não menos que quarenta anos de idade serão necessários para sequer ter a primeira lição. Aqui não há exceções, nem auto intitulados notáveis garantindo que alguém de menos idade está preparado, que é um gênio da raça e coisa e tal. Sem exceções, portanto. E, em geral, não menos que outros vinte anos serão necessários para se conseguir o grau de mestre, o grau que o Thio tanto se orgulha em ostentar agora.
          Nem custa dizer o alto grau de desistências, nesse mundo de tantas urgências.
          Pois a primeira fase do treinamento consiste de uma imersão espiritual de seis meses na colina sagrada Tãr Toul (norte da China, onde mais?). Nesse momento, de profunda meditação, é permitida apenas a emissão de dezenove palavras ao dia, o que nos leva a considerar muito bem o valor de cada sílaba pronunciada. O número dezenove, diga-se de passagem e o leitor atento já deve ter desconfiado disso, é considerado um número sagrado para os mestres treinadores e o motivo para tal perde-se nas incertezas do passado. Para qualquer uma das inúmeras versões da real razão, e versão não falta, há contestações e discussões históricas. O Thio, curioso que é, tentou uma vez esclarecer as verdadeiras origens dessa sacritude, mas não resistiu a tantas pré-mentiras e pós-verdades e sucumbiu finalmente à aceitação pura e simples de que o dezenove é de fato um número sagrado. E ponto final.
          Sim, após uma delicada análise, os mestres supremos o aceitaram como aluno e um deles foi designado para o não corriqueiro treinamento. O Thio o descreveu como sendo aquele cara de idade indefinida e sabedoria consolidada, o que mais dizer?
E o treinamento começou. Além do estágio de reflexão, passaram-se dois anos de intensas leituras e conversas antes que o Thio tivesse sequer algum contato com a tartaruga escolhida para ele. Uma das bases do treinamento é a exclusividade. Nem duas, nem dez, nem centenas de tartarugas, mas sim uma a ser treinada a cada vez. Poucos sabem, mas elas são muito sensíveis nesse aspecto e se suspeitarem que o treinador não está se concentrando somente nela, o boicote acontece e dessa tartaruga treinador algum, mestre, grão mestre ou supremo, irá fazê-la readquirir a confiança necessária.
          E assim vai o treinamento. Uma vez ao ano, há uma corrida quando são concedidos os graus de maestria aos treinadores. O de mestre é dado ao melhor colocado na corrida, dentre os que ainda não o sejam, e o de grão mestre àquele que, sendo mestre, consegue ganhar uma corrida com uma tartaruga distinta da qual conseguiu ascender à maestria. Nem precisa ser dito que há pouquíssimos grãos mestres, principalmente que não é bem visto no mundo dos treinadores que alguém, ao adquirir o título de mestre, abandone de imediato a tartaruga responsável por tal feito. É de bom tom que a parceria ainda permaneça por alguns anos, até a tartaruga dar sinais inequívocos de que não quer mais competir. Só aí, o agora mestre pode se sentir à vontade para treinar novas tartarugas.
          Houve um famoso caso de abandono imediato da tartaruga que foi severamente punido com um silêncio dos pares que durou os quinze anos que o mestre ainda viveu, tornado alcoólatra por remorsos de sua insensibilidade.
          Mas não queremos aqui dissertar mais sobre as tartarugas de corrida. Qualquer googleada inconsequente trará informações as mais variadas sobre isso (acompanhadas, em igual número, de fake news que esses são os sinais dos tempos). Informações para todos os gostos, inclusive e principalmente listando os tipos mais apropriados para uma tal competição.
O que queremos agora é relembrar a celebração do Thio quando conquistou o grau de mestre, merecido sim, pois não só a tartaruga que ele treinou foi, em sua primeira corrida, a real vencedora, deixando muito para trás inúmeros mestres que almejavam o posto superior. Tal o impressionante desempenho da tartaruga treinada pelo Thio que os três supremos cogitaram dar-lhe não somente o título de mestre mas promovê-lo diretamente a grão mestre. Ao saber dessa discussão, o Thio fez saber a eles que não merecia tal distinção e, além do mais, para o bem dessa tradição multimilenar não convinha, justo com ele, abrir exceções. Estaria imensamente feliz com o título alcançado pelo resultado da corrida.
          A tartaruga, chamada Esperança, aposentou-se depois dessa famosa e única corrida e ainda viveu conosco alguns anos. Por meio de uma amiga dileta, a Esperança foi parar no imenso apartamento de um solitário jovem onde pode, com suas andanças, procurar a paz que todos buscamos.
          E quanto ao Thio, quando perguntam se ele almeja chegar a grão mestre, ele simplesmente sorri e muda de assunto. A vida é curta demais para tanta ambição, ele diria se não se calasse sobre isso, se seus olhos quase úmidos não revelassem uma pequena mas duradoura decepção...

Lisboa, outubro de 2K18

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

E agora, quem os recolherá?

Dois anos e meio que publiquei o texto abaixo e parece que muito se escureceu desde então (à época, não falei do medo da escuridão naquelas noites no sítio, mas agora bem que caberia). Achei que valia republicá-lo agora.

Soltá-los, pode até ser divertido. Alguns até acham conveniente, a depender das intenções. Mas, quem os recolherá agora que não param de latir e atacar?


Tutti e Frutti (publicado em 28/04/2K16)

Éramos de crianças a jovens e nessa época fomos muitas vezes a um sítio que nossos tios tinham perto de Itu. No começo, muitas vezes, apressadamente que imagens estão até desbotadas. Com o tempo, as lembranças são mais nítidas.
            Lembro do pangaré que havia por lá no princípio e lembro da lição que aprendi com ele, de que nunca teria o controle de minha vida, as coisas aconteceram e aconteceriam como se conduzidas por um pangaré no final da vida, teimoso e preguiçoso. Pois lembro-me de, montado nele, não conseguir de forma alguma fazê-lo ir para onde eu queria. Ele se meteu debaixo da pequena construção que abrigava um poço, queria que queria beber do balde de água que lá estava. E nada de ele me obedecer e eu tive, ao final, que me curvar para não topar com o telhado, tive que me esgueirar para desmontá-lo, quase um tombo. Ele ainda olhou-me de relance com o mesmo olhar que a vida me dá quando me prega dessas peças, quando tento, inutilmente, ter algum controle dela...
            Voltei a pé para a casa principal do sítio mastigando minhas frustrações.
            Lembro da água fervente na máquina de moer cana, uma coleção invejável de insetos fugindo de suas entranhas. A farra para se fazer a garapa sagrada de todo final de semana.
            Lembro da roldana que o primo mais velho instalou em uma árvore alta para brincarmos de gangorra.
            Lembro da jabuticabeira, do lençol branco embaixo dela, da sacudidela com força e da chuva de jabuticabas. E de comê-las até enjoar.
            Das mangas, rosa e espada, que, na sobra, eram vendidas para os passantes da estrada, pura diversão no final do dia.
            Das pinturas de minha tia, das caixinhas marcadas delicadamente a fogo e que a todos, primos incluídos, éramos permitidos experimentar.
            E lembro da Tutti e da Frutti, duas cadelinhas da cidade deslumbradas com aquela imensidão que lhes parecia o sítio de Itu. Uma de cada uma de nossas tias, a Frutti era um pouco maior do que a Tutti. E nem me perguntem a raça, sou ignóbil nisso também, cachorros para mim são divididos em pequenos, médios ou grandes, pelos curtos ou longos, ranzinzas ou tranquilos...
            A Tutti e a Frutti eram pequenas, pelos curtos marrons e tranquilas. Isto é, tranquilas a menos que não vissem alguma das galinhas que se achavam no direito de desfilar livremente pelo sítio. Por isso, a Tutti e a Frutti ficavam presas quando estavam de visita por lá.
            Lembro, e isso era frequente, de uma delas, alternadamente a Tutti ou a Frutti, saindo correndo inesperadamente atrás de uma galinha que, afoita e desesperada, tentava fazer o que sonham todas elas, voar.
            Mas a Tutti, ou seria a Frutti, não estava amarrada? perguntavam os adultos. E a correria não parava com a Frutti, ou seria a Tutti, latindo e percorrendo os caminhos afoitos já percorridos pela galinha. Iam agora, atrás da Tutti, ou seria a Frutti, alguns adultos preocupados com a saúde do galináceo e, é claro, atrás de todos, os primos fazendo alvoroço e aumentando os decibéis da confusão.
            Tudo terminava com a Frutti, ou seria a Tutti, espumando penas de galinhas, olhar satisfeito, no colo da tia, com a galinha ofegante à beira de um ataque cardíaco e com todos se perguntando quem teria soltado a Tutti, ou seria a Frutti...
            Sobrevivíamos todos ao final, talvez com um pequeno trauma para a galinha da vez, nada que muito durasse. Não me lembro de vez alguma em que a galinha não tenha sobrevivido a isso. Não sobreviveriam, porém,  por razões, digamos, mais culinárias.
            Todos sabíamos qual dos primos era o rebelde responsável pela libertação da Tutti-Frutti, mas nunca o vimos ser repreendido. Essa correria fazia parte de nosso final de semana, assim como a garapa, a gangorra e a manga, idílio naqueles tempos em que no sítio não entravam todas aquelas sombras que tanto assustavam o país. A gente se isolava do mundo para comungar alegrias e família. E os primos, éramos de crianças a jovens.

            Lembrei-me disso outro dia. Tempos distintos, parece que porteira alguma de sítio nos protege mais, lugares idílicos já não deveriam esconder o que se passa ao nosso redor. Lembrei-me disso ao ver tantos pitbulls sendo soltos por aí, espumando de ódio a perseguirem os incautos. E agora me pergunto, quem é que irá recolhê-los ao final?

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Thio Therezo em Óbidos


          Se há algo no Thio Therezo que eu realmente gosto é a sua preocupação em estar sempre presente nos momentos especiais. Final de semana lá estava ele em Óbidos para me prestigiar na Fólio. Foi um convite em cima da hora, pois só de última hora os organizadores do Colóquio de Literatura e Matemática souberam que eu estaria por perto. Muito gentis da parte deles me encaixarem entre duas falas. Decidimos que seria mais para uma conversa do que outra coisa, falar um pouco sobre minha experiência em Literatura e em Matemática, dois caminhos que tenho trilhado há um certo tempo.
Dois caminhos que o Thio conhece tão bem... Não que o Thio seja um profissional da matemática, mesmo assim ele me surpreende com a sua visão crítica e filosófica e frequentemente me põe em xeque-mate com as suas opiniões. E, de Literatura, ele se diz um mero contador de estórias, quem diria.
Chegamos de véspera lá e eu, em um daqueles momentos de silêncio, tentei puxar assunto perguntando se ele já conhecia Óbidos. Mal terminei minha pergunta e vi que ela era uma total idiotice. O Thio, olhar que conheço tão bem, sorriu e respondeu que sim, que já tinha vindo algumas vezes, sim...
E contou-me que muito mudara desde a primeira vez em que lá estivera. Nada dessa fila interminável de orientais tirando selfies, nada de ginja a cada dois passos ou de espadas medievais de madeira em cada esquina, nada de autor de novela dono de pousada no centro da cidade. Mas sim, havia o famoso queijo de Óbidos, feito do famoso leite de Óbidos, vindo das famosas vaquinhas de Óbidos. O queijo que comemos no café da manhã e que ninguém quis dizer onde poderíamos comprar mais. O Thio contou que, naquela imprecisa primeira vez em que esteve por lá, podia-se andar sem atropelos pela cidade, só o pessoal local, simpático e tagarela, e, de estranho, cruzava-se no máximo com uma ou duas vaquinhas, aqui ou talvez acolá.
Hoje, ao olhar à nossa volta, é difícil imaginar um outro cenário naquela charmosa cidade que não fosse esse atropelo todo de cidade grande.
Não posso deixar de mostrar algumas fotos de minha fala em Óbidos e um por do sol numa praia lá pertinho, pouco além da Lagoa de Óbidos. O Thio, sabemos todos, odeia aparecer em fotos, mas algum dia eu ainda consigo uma.




quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Nini - parte 2


            Mas esse jogo me excita. Tiro o que me resta de roupa e me acaricio, te imaginando aqui ao meu lado a me beijar, a me tocar, sim Nini, a beijar o que estou tocando. Mas não, Nini, por uma crueldade tua, ou do destino, ou do arquiteto que não fez o meu quarto no mesmo lugar da tua sala, sim por causa disso não estás aqui ao meu lado agora. Estás, isto sim, consideravelmente longe para aquilo que quero e imagino. Infinitamente longe e não é apenas física esta distância.
         Por um instante eu te perdi, Nini, pois sumistes para dentro do apartamento enquanto o teu bigodudo namorado ficava no sofá errado com as calças um tanto quanto mais justas do que quando chegou, provavelmente vindo naquela moto cuja marca eu não sei mas na qual estavam vocês dois, sim os dois, parados em frente à Brunella do Ibirapuera, naquele domingo em que eu também estava lá, não percebestes, é claro, mas eu estava lá na companhia dela. Mas eu te percebi e, disfarçadamente, às vezes te olhava sem sequer receber um sorriso, um único sorriso ao menos como troco. Crueldade, Nini.
            E tu demorastes a voltar à cena, Nini. Talvez, minha mente funcionava, tu espantada estivesse olhando a tua calcinha molhada pelos desejos, tão molhada quanto eu com este suor que percorre o meu corpo. Ou talvez até estivesses te excitando longe do teu bigodudo namorado, talvez até por vergonha ou recato. Ou não. Talvez, Nini, não sei, só estou especulando.
            E tu não voltastes à cena, àquela pequena cena que eu, com um pouco de esforço, consigo ver por detrás da fresta da janela. Além da sala consigo ver o quarto de teus pais, pelo menos eu acredito que aqueles dois os sejam. Ou talvez, quem sabe, tu serias uma órfã adotada por aquele simpático casal que já tinha duas filhas gordinhas e um rapaz como filhos. Mas isso, mania minha, seria complicar demais esta estória que para todos os efeitos é irreal porém verdadeira (ou ao contrário, não importa). Vamos então supor que aquele casal que dorme no quarto que eu consigo ver daqui sejam teus pais e em cujo quarto eu já flagrei tua mãe, mãe por suposição, trocando de roupa. Assim também como já flagrei tua irmã mais gordinha, sempre ela, experimentando uma roupa, talvez nova, na sala. Na certa a aproveitar o espelho que tem na sala em cima de certo sofá certo que vocês evitaram esta noite e que é o melhor para a minha visão como todos nós já sabemos.
            Mas não importam, Nini, nem a tua mãe, suposta mãe, nem a tua gordinha irmã, agora já inconfundível e sim tu Nini, que agora retornas à cena para alegria e espanto da galera vestindo aquele shorts que eu gosto tanto e que talvez ele, o bigode, também goste.
            E eu sei que tu, Nini, nunca irias vesti-lo para mim, tu que sequer sabes o nome daquele que te olha por detrás da fresta da janela e sequer desconfias disso, pelo menos assim penso eu. E mesmo que o soubestes, que soubestes que há alguém a te espreitar por detrás da janela do prédio ao lado do teu, mesmo assim não haverias de descobrir o meu nome. Não terias a mesma sorte que tive ao descobrir o teu nome em uma ruidosa festa de aniversário. E nem terias meios de me vigiar pois a dita cuja janela eu a mantenho fechada e, a menos que tu peças, assim ficarás. Não pedirás, não é Nini? Pois sequer sabes que…
            E o shorts com o qual entrastes na sala é aquele que me faz ter as melhores visões de ti e o que permites fazer com que o meu sangue irrigue as regiões apropriadas com maior intensidade. E que de costas, tu, Nini, me permites sentir melhor, mesmo à distância, tuas belas e joviais curvas que eu tanto gostaria de tocar e que alguém toca em meu lugar e tu Nini, charmosamente se desvencilha até o próximo ataque, que virá certamente e logo. Doce jogo do qual só participo à distância, me excitando.
            E o clima se aquece, tu por vezes cede um pouco mais e as mãos dele que não são as minhas percorrem por mais tempo a tua bundinha e tu rebolas, Nini, de um jeito que nunca tinha visto, pois sim tu estás em uma boa posição agora e com certeza ele também concorda com isto pois suas mãos te percorrem com mais intensidade e intimidade e tu Nini agora te permites ser acariciada e por vezes rebolas se esfregando no bigode que já não vejo mais pois ele está deitado no presentemente mal escolhido sofá, contigo por cima. Mas quem se importa em não vê-lo? O que importa é que te vejo, vejo tuas pernas arrepiadas ao menor toque, toque dele que não é melhor que o meu, tu sabes, Nini e só vejo o teu shorts diminuir a cada passada de mão dele pela tua bundinha, bela bundinha tu tens, Nini. E vocês se beijam e o calor me provoca mais suor. E tu Nini entreabre as pernas, esticadas e arrepiadas pernas, o bigode põe uma mão por entre elas até chegar onde eu queria chegar e agora, quando ainda estou de pau duro, tu rebolas toda, estás excitada Nini, posso ver que estás, tanto quanto eu estou. Mas não deixo de te olhar, não consigo evitar, tu não paras mais quieta, tu rebolas, te esfrega toda nele e ele te ajuda acariciando, eu me acariciando e o teu shorts, Nini, fica cada vez menor e me permite ver, quase, toda a tua bundinha e tu abres um pouco mais e mais as pernas e os dedos, os deles que por uma crueldade do destino não são os meus, os dedos chegam até onde deve estar molhado e tu gemes, não ouço, como poderia Nini? mas sinto.
            Vocês gemem.
            Eu também.
           E aquela cena ficou em minha mente. Tu, Nini, que fizestes que eu acordasse no meio da noite, suado e que só permitistes que eu dormisse três horas depois, tu, Nini, deve ter gozado no mesmo instante que eu. Eu senti isso. Tu apertastes tua bundinha, Nini, e os dedos do bigode, que na certa não são  melhores que os meus, tenha a certeza disso, eles chegaram ao molhado que tu até agora só permitira em sonhos. Eu ainda sonho, Nini.         
            Naquele dia que deve ter sido um sábado ou uma sexta-feira, deixei estes papéis em cima da mesa, bocejei e três horas após ter acordado, suando, dormi. Sozinho como em tantas noites anteriores daquele início de fevereiro do verão de 1986. E como as outras tantas seguintes em que ela não dormiria comigo. Noites em que dormiríamos mais sozinhos que todas as outras daqueles tempos.
            Ela não dormiria mais comigo.
            Nem tu, Nini.           
            Crueldade.

março/86 – maio/87
São Paulo - Liverpool



[[Esse conto, Nini, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada aqui no blog na semana passada]]