quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

e mais outras aldravias, que fazer?


estranho
como
formiga
num
bolo
formigueiro



me
conta
o
que
foi?
curiosidade...



mergulha
em
si
feito
estrela
ca(n)dente



até
aqui
tudo
bem,
até
quando?



sorrir
amizade,
piscar
intriga,
bocejar
traição



daqui
pra
frente,
sua
inteira
responsabilidade



[Aldravias. O movimento aldravista nasceu em 2000 em Mariana (MG). Seus poemas se caracterizam pela estrutura em seis versos univocabulares.]

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

iba áles, seis



          A parte mais perigosa da excursão é fundear o navio.  Apesar do “iba áles II” ser uma embarcação totalmente preparada para esse tipo de viagem, esse momento é sempre tenso e preocupante. Não se pode fundeá-lo muito perto da borda que há sempre o perigo do navio ser arremessado ao espaço sem fim. Por outro lado, se muito distante dela, não se tem a visão exata do término do oceano e do planeta.
          Não que, de qualquer forma, alguém deixará de usufruir dessa maravilhosa experiência. Há a natural gradação de castas meritocráticas e quem não tem o status suficiente só poderá contribuir financeiramente e, com sorte, ouvir os excitados gritos de exclamação vindo de cima, além dos tilintares das taças. Algo que, em todo o caso, poderá ser narrado aos netos com orgulho.
Dizia da dificuldade de se escolher o lugar exato da fundeação do transatlântico e, por não outra razão que a inexperiência dos tripulantes da embarcação original, o “iba áles I” se perdeu para sempre em sua inicial mas derradeira viagem, tal qual o Titanic (uma emissora de TV, aliás, até prepara um filme, épico, sobre o acidente daquele original “iba áles”, efeitos visuais é que não faltarão). Desde então, todos os tripulantes são exaustivamente treinados na conceituada escola de filosofia Olavão e, à distância, um astronauta dá todo o suporte técnico. Como essa escola concede até título de neo-doutorado (acadêmico e espiritual), há muitos especialistas desse nível dando suporte ideológico no decorrer desse interessante passeio.
Por razões óbvias, não se usa o usual GPS pois ele foi projetado para funcionar na hipótese absurda de uma terra não plana. Por conta desse sistema diabólico, atestam todos os entendidos a bordo, é que se tem a ilusória impressão de que a terra não é plana, mera conspiração contra o verdadeiro saber. O navio sai do principal porto da República de Hygina no meio da madrugada e faz despiste perto da costa para que ninguém consiga saber para que lado irá realmente. Não que isso importasse, todos inteiramente entretidos nas notícias vinculadas pelo grupo de zapzap náutico.
A viagem é agradabilíssima, claro que dentre as condições meritocráticas de cada um. São distribuídos kits rosa-azul e, de entretenimento, há inúmeros campeonato de tiro esportivo (mas com figuras humanas como alvo) e jogos de videogame. O melhor mesmo são as palestras:
·       Plana, mas como é mesmo? Nessa palestra, discute-se a falsa ideia de que o planeta é um quadrado vagando impunemente no espaço. Nada mais inexato que isso. A borda é irregular, representando as famosas linhas tortas. E, é claro, qualquer idiota sabe disso: a terra está parada com o resto do universo rodando ao seu redor.
·       E a borda? Discute-se aqui o mito de que a água transborda ao espaço sideral continuamente. A borda, como só poderia ser, se esconde atrás de geleiras e de montanhas e só uma absurda falta de fé fará crer que a água se perderia no espaço.
·       O sangue é realmente vermelho ou isso é mera ilusão de ótica?
A propósito, de decoração, nada em vermelho, assim determinou o capitão. Só, exceção, aquele grande capacho à entrada dos andares superiores para diversão de seus habitantes.
Seria engraçado se não fosse trágico. Mas, pensando bem, nem engraçado seria...



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

e mais dois vinténs!


Manifesto rabugento


            O que você vê agora são só os detalhes, as sombras que a luz difusa permite. O que você lê, o que permitimos que você leia, são só as sobras do pensamento codificadas em símbolos pré-determinados. O essencial, felizmente, ficou com a gente, bem-guardado. Não espere mais do que isso, caro leitor! Não permitiremos que nos decifre, audácia sua, que descubram nossos segredos, nossas faces ocultas, que leiam nossas entrelinhas, que conheçam as coxias de nossos pensamentos.
            O que você lerá será apenas o que permitimos que seja lido, o que finalmente sobrou após longas e insanas noites de revisão e desespero. E contente-se com isso!

Montreal, junho de 2008.


 


É o que dizem...


            Depois daquele longo e incômodo silêncio, ela acrescentou:
“É o que dizem por aí....”
“Dizem tantas coisas...”
            E permaneceram assim por algum tempo, mas ela não aguentou aquela situação e perguntou afinal.
“O que eu gostaria de saber é o que é verdade em tudo isso.”
“Em tudo o quê?”
“No que dizem por aí...” ela respondeu já irritada.
“Não dá para acreditar em tudo que dizem, não é? Dizem tantas coisas...”
            E continuaram a tomar o seu café da manhã.

São Paulo, julho de 2007






[[Esses vinténs apareceram inicialmente em meu livro "Contos&Vinténs" publicado pela Editora A Girafa, 2012.]]

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

um par de vinténs



Nostalgia


          Foi no exato instante em que o ônibus de excursão chegou àquela fatídica esquina que um persistente e incômodo clima de nostalgia tomou conta do guia que, segura mas imperceptivelmente, gaguejou naquele momento a sua explicação. Todos tão entretidos com a excitante cidade que nem notaram o embaraço do moço naquele momento tão pessoal quanto misterioso. Tão somente a garotinha sardenta da terceira janela à direita percebeu a sutil mudança no tom de sua voz e imediatamente desviou seus olhos para dentro do ônibus, cruzando-os com os dele em uma embaraçosa cumplicidade.

          Por muitos anos ainda, ela seguiria se perguntando o que de tão especial teria acontecido naquela esquina aparentemente sem graça...





O adeus no papel pardo


          A primeira vez que ela escreveu um adeus foi no papel pardo da padaria, ainda meio engordurado de manteiga, resquício do último café da manhã deles juntos.
          Hoje, o papel pardo que ela usa é o reciclado, sem gordura mas com história, reciclado como o adeus que ela agora escreve... 




[[Esses vinténs apareceram inicialmente em meu livro "Contos&Vinténs" publicado pela Editora A Girafa, 2012.]]