quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Estrelinhas vermelhas


          Sabe quando você gosta de alguém ? E o sentimento é recíproco ? Vocês se encaixam muito bem e tudo o mais ? Pois era assim.
          Sabe quando ela usa um cabelo curtinho, era liso e negro, escorrido combinando com o seu corpo mignon e mal disfarçando o sorriso franco e o par de estrelinhas vermelhas tatuadas na nuca ? Ela gostava de usá-lo assim... e eu também, adorava gozar mirando as estrelas !!
          Sabe quando tudo é belo, mas uma palavra mal colocada estraga tudo? Pois é!
          Sabe quando você já tinha vivido quinze anos com alguém que quer controlar todos os seus passos ? É duro... sempre sobram efeitos colaterais mal resolvidos em seus sentimentos, o passado dura para sempre... Pois bem.
          Sabe quando o relacionamento de quinze anos termina finalmente e você se promete nunca mais viver assim? Tem a ver com maturidade, dizem. Pois foi o que aconteceu.
          Uma palavra mal colocada, quinze anos de memórias e esse encontro com as estrelinhas vermelhas não durou nem três meses. E olha que eu gosto muito de estrelinhas...
          Sabe como é?


[[ Esse conto apareceu publicado no meu livro "Contos&Vinténs", publicado pela Editora A Girafa em 2012]]


Ótimo 2K20 a todos !!!! 


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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Refúgio



          Homem não chora, ao menos não deveria, dizia o seu avô. Pensava nisto no momento em que atravessava aquela porta do asilo. Ele sabia muito bem o que esperar desta visita. Ver o avô, revê-lo, tentar inutilmente trazê-lo de volta ao seu convívio, tanta coisa aprendera com ele, o drible seco, a velocidade no arranque, a antecipação rápida do lance, o arremate. Nada de firulas, direto, seco, sucinto, como um bilhete de despedida.
          Mas, tudo isto, era passado, passado que queria de volta, um instante que fosse, para poder dividir com o avô aquele jogo do último final de semana, será que o avô o assistira ? O seu jogo, o que importava... Queria discutir com ele o resultado, sentir o carinho de avô pelo menino de 9 anos, o menino que já não era mais. Sua constante admiração, seu inevitável incentivo. A porta se fechou atrás de si, aquela grande sala onde o deixaram esperando por seu avô. Um silêncio e só.
          Não são todos que sabem o quão é escuro um túnel de vestiário em dia de decisão mas o avô, sim, iria entendê-lo, os dois dividindo as mesmas experiências. Sim, aquilo pesa, esmaga. Fica-se na boca do túnel séculos à espera, ouve-se perfeitamente a torcida, a gritaria. A gente quer entrar no campo a qualquer custo, começar logo o jogo, só se sossega com a bola rolando. Mas entre o túnel e o jogo há incontáveis segundos e o aquecimento final e a moedinha e, principalmente, a espera, a injusta e inacabável espera de séculos.
          E o jogo começa e tudo parece mais frenético, nem se pensa direito nestas horas... bola pro mato, cara !  Mas tem um instante, sempre tem, entre o chuá da bola na rede e o grito da torcida, um instante... até parece que não existe nada e, dizem, não existe mesmo; um instante em que tudo muda em sua vida, a linha tênue separando o sucesso e o fracasso, ou vice-versa ou tanto faz. Lá vinha ele, agora, passo arrastado, final do corredor, olhar distante, seu avô.
          Tentariam conversar, não conseguiriam, ele iria tentar contar ao avô sobre a final do campeonato, dividir suas emoções, mas iria também se exasperar com o seu distanciamento, parecia até que nem o reconhecia, seu avô falaria de várias coisas, do passado, de seu agora isolado mundo de lembranças, da final que participara, de como era difícil esperar pelo começo do jogo... Homem não chora, ele iria repetir vezes e vezes, sem esconder a emoção sublimada. Ao menos, não deveria.
          A bola no meio do campo para o recomeço, heróis e bandidos, juizes ladrões e bandeirinhas incompetentes. Todo o nosso imenso imaginário coletivo fazia parte de suas conversas com o avô, hoje restou o monólogo. Curto, seco, sucinto.
          E o silêncio da torcida, aquele mutismo frente ao gol do adversário, o grito inibido e constrangido do locutor local. Não há nada pior para se encarar do que o gol contra em uma final de campeonato. Nem mesmo chorar. De alegria ou tristeza que seja.
            Não esperou mais, não poderia. A porta se fechou atrás de si, frente ao olhar incrédulo do avô. Desta vez, definitivamente.

[[ Esse conto apareceu publicado no meu livro "Gambiarra e outros paliativos emocionais", editado pela Arte PauBrasil em 2007]]



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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Cepillos


          Par de meses atrás, fomos a Buenos Aires. Fazia um tempo que não a visitava sem compromissos outros que o de passear por ela, que o de me esquecer no tempo, que o de me perder em suas ruas e passado. E lá, convenhamos, é possível se fazer isso, se esquecer do tempo.
          Sem pressa, conto algumas coisas.
Uma delas? Fazia tempo que eu procurava um bom pincel para fazer a barba (sim, sou daqueles que usa creme de barbear, pincel e gillette...). Brocha de afeitar, assim aprendi a procurar por lá.
Em São Paulo, já tinha até desistido e quis aproveitar que estava em uma cidade como Buenos Aires, certeza de encontrar. Na realidade, deve até ser possível encontrar um bom pincel de barbear em algum lugar dessa minha cidade natal, seguramente, mas onde? Cidade dispersa em que nada tem seu lugar, onde somos (eu, certamente sou) pré-históricos, onde tudo parece conspirar contra você. As que achei, de fato, eram feitas de pelos de plásticos, que arranham a pele.
Mas em Buenos Aires, com seu incomparável ar histórico (principalmente no centro), eu sabia que encontraria um bom pincel para barbear. E não tardou muito, pergunta aqui e acolá, me indicaram uma loja, logo ali, duas quadras direto e virando à esquerda, não há como errar.
E lá estava ela, El rey del Cepillo, especializada em plumeros, escobillones, cepillos de ropa, de cabelo e, claro, brochas de afeitar.
 Entramos na pequena loja como se muda de dimensão temporal. Uma senhora muito simpática a atender. Na conversa, contou-nos que ela e o marido tinham aquela loja há muito tempo. Notava-se, loja simples, mas bem cuidada e suprida, loja especializada que deve ter mantido o sustento da família em todos aqueles anos. Viajo em meus pensamentos, imagino os filhos do casal já formados e exercendo profissões diversas, a primogênita é médica, o do meio virou artista e a caçula, ah essa ainda vai se achar na vida...
Viúva? pergunto-me. Pelo olhar saudoso com que ela nos diz a idade da loja tudo me leva a crer que sim. Sim, seu olhar nos transmite toda uma história desse casal, dessa família e de sua luta, de seus desafios, de todas as crises vividas e, quem sabe, da fome dos tempos piores, das esperanças e dos desesperos. E é certo que, mesmo triste, seu olhar traz a certeza de que ainda há espaço para uma loja artesanal de cepillos no centro de uma grande cidade como Buenos Aires.
Ela me mostrou todas, literalmente todas, as brochas de afeitar que tinha à disposição, todas muito parecidas, mas nunca iguais, nunca o serão é verdade, pelos de animais distintos não podem produzir o mesmo efeito em sua pele. E ela, consciente disso, passava em sua pele os pelos macios do pincel antes de me mostrar. Fez isso com todos os pincéis, abria a caixinha, retirava-o, passava ligeiramente em sua pele e só então eu teria permissão para testar e ver se gostava.
O que ela pensava enquanto passava ligeiramente o pincel na pele das costas de sua mão? Nunca saberei, mas sentia nisso um momento especial dela, uma lembrança, ou várias a depender de como o pelo alisava sua pele com história, a depender da carícia feita com lembranças.
Estávamos sem pressa aquele dia, mas, mesmo que estivéssemos apurados, nada na vida justificaria apressá-la em seu ritual, naquele momento que era só dela (e de quem mais participasse de suas memórias). Segundos que fossem, ela parecia se ausentar dali, esquecia nossa presença ao sentir o pelo alisando sua enrugada pele, o improvável pelo ativador de memórias.
Cada ruga, uma lembrança, não é assim que elas surgem? E não é na carícia que elas são reativadas?
Por fim, escolhi o que queria, depois de conversarmos sobre passados e presentes. Quanto tempo ficamos lá? Nem foi tanto, no registro do relógio, mas foi muito no da memória.
Dia sim, dia não, faço a minha barba no ritual de décadas. Mas agora, ao sentir o pincel espalhar a espuma em meu rosto, sinto a necessidade do tempo parado, do tempo passado e, segundos apenas, pareço voltar à lojinha e ao olhar da velhinha quando sentia o pelo do pincel acariciar sua pele ativando lembranças.
Sei que a barba continuará a crescer e que terei por algum tempo ainda à minha disposição essa rotina, esse momento especial. Ainda bem.



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quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

iba áles, dezesseis


          - iba áles a todos nessa noite magnífica...
          - iba áles – respondeu em uníssono a plateia desentusiasmada.
          - para a nossa palestra semanal, tenho o prazer hoje de anunciar o nosso querido Dr. Duplais, eminente acadêmico e autor do premiadíssimo “O reverso da bala”. PhD por uma prestigiada universidade americana, ele recentemente ganhou o prêmio PsiHum que é considerado por muitos como o Nobel em sua área de pesquisa. Atualmente ele vive na República de Hygina onde suas ideias têm servido como base principal de vitoriosas políticas públicas. Sem mais delongas, quero que recebam com calorosas palmas, o Dr. Duplais!
[calorosas palmas, ninguém é bobo por aqui...]
          - iba áles a todos os presentes e obrigado por suas amáveis palavras.
[mais palmas, essas menos calorosas, faltou ensaiar melhor essa parte]
          - como começar? sei que a violência é um assunto de interesse de todos e, por isso, vou começar com a tal da excludente de ilicitude que, para muitos, é um termo polêmico. pela expressão, até parece que não haverá punição para certos crimes ou, de acordo com certos extremistas que precisam ser alijados de nossa sociedade, haveria até uma tal permissão para matar como se vivêssemos na década de sessenta e fôssemos um tal de 007... quem vive no passado é justamente essa oposição desorientada mas perigosa. pois bem, vamos imaginar uma cena corriqueira de nossa sociedade: uma bala perdida atinge em cheio um marginal ou mesmo alguém, uma criança que seja, a quem irão depois, em uma total inversão de valores, imputar inocência... abro um parêntesis aqui. nosso grande líder já disse que não existem inocentes vagando impunes por esses locais onde agem as balas perdidas, e isso é fato comprovado, basta perguntar a qualquer amigo seu de twitter! pois bem, a bala perdida acerta o elemento e ele morre. morreu, o que fazer? é definitivo, esse elemento agora irá responder por suas ações, e seguramente há culpas a serem respondidas, com Deus, isso é lá entre os dois... já não cabe mais à sociedade se meter em algo que é agora privado.
          [pausa para o palestrante beber um copo da água patrocinadora do evento]
          - ... mas, pensem bem, e como estará o autor do disparo da bala perdida? acham que ele estará bem? que ilusão, estará um frangalho, eu diria, totalmente arrasado, destruído emocionalmente, alguém previsivelmente acometido de medo, surpreso e frente a uma violenta emoção. sim, amigos, assim estará o autor do disparo da bala perdida, há estudos detalhados sobre isso... e, cá para nós, qual punição maior do que isso? é exatamente isso que chamei de bala reversa em meu estudo, pois ele pode ter disparado a bala perdida, assumamos que assim foi, mas quem é de fato atingido por ela, metaforicamente falando, é ele mesmo, o dito sobrevivente mas que será cruxificado impiedosamente pela opinião pública e por essas ONGs financiadas por atores estrangeiros desocupados. a bala reversa o atingirá inevitavelmente e é preciso levar isso em consideração, o autor do disparo da bala perdida é a verdadeira vítima dessa história.
            [mais uma pausa para que a plateia, em transe, se convença do argumento usado. o palestrante olha demoradamente os vários setores da audiência agora muda]
            - por isso, excludente de ilicitude, mas como, se não há ilicitude? e se alguém disser que poderia haver, só o sofrimento do autor do disparo, a real vítima dessa ação, naquele momento se configuraria uma punição. mas não há ilicitude e, portanto, ela deve ser excluída, esse é o espírito da lei, a definitiva exclusão da responsabilidade por uma inexistente ilicitude, nada mais claro que isso. pessoalmente, acho até que isso dá margem a uma longa discussão e releituras por parte de nossos supremos magistrados. para mim, não se pode excluir algo que não existe, como excluir uma ilicitude que não existe? mas entendo as precauções jurídicas envolvidas, direito não é uma ciência exata, e melhor que isso esteja escrito de forma inequívoca.
            [mais uma pausa, outro gole na água.]
            - pois bem, amigos, não vou cansá-los com tecnicalidades e estudos nessa linda noite. agradeço a presença de todos... e iba áles!
            [palmas esfuziantes e o apresentador retorna, abraça o palestrante, trocam sorrisos...]
            - iba áles, Dr. Duplais! quem quiser comprar o livro A bala reversa, e tenho a certeza de que todos vão querer uma cópia autografada, a obra está à venda em nossa lojinha à entrada do auditório. e hoje, com uma promoção: 20% do preço do livro podem ser pagos usando parte do dízimo mensal devido por cada um.
            [manifestações de prazer e entusiasmo]
            - só me resta agradecer novamente o novo ilustre convidado e desejar a todos um grandissíssimo iba áles...