quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Se for n, nada... nadinha.

         Se há algo estranho na vida, é essa volta a ela. 
         Tudo começa quando você, assim do nada, tem um troço que o derruba, nem quer saber o que foi, melhor assim. Mas quando os médicos decidem, para salvar-lhe a pele, reduzir suas atividades mentais por alguns dias, é como se você estivesse semimorto, se é que me entendem.
          Pelo que pude perceber, a volta é como nascer de novo. Só que, dessa vez, lembranças já estão lá e você, em geral, sabe falar, sabe escrever, sabe andar, essas coisas básicas que uma vez aprendidas persistem em resistir. É só o cérebro que se afastou um pouquinho de sua vida.
          A sensação é muito estranha.
          Depois, é como renascer, sim, e só quem passou por essa experiência, como eu, sabe o que ela significa. Em meu caso, renasci sem a minha mãe por perto. Aliás, sem meu pai também, já que estamos indo nessa direção de mencionar os progenitores. Mas meu pai nem me faria mesmo tanta diferença agora, ele morreu quando eu era muito criança e, sem digressões muitas, fez bem em me deixar sem a sua influência. Meu pai tinha a ética própria de sua profissão, característica que eu descarto sem nem sequer pensar. Mas isso pouco vem ao caso hoje quando volto ao meu apartamento depois de dias no hospital, a maior parte do tempo com a mente desligada, e só acompanhado de minha tia, irmã de minha mãe.
          Não, minha mãe não acompanhou o meu renascimento, ela que desaparecera de minha vida anterior para ser feliz. Tomara que tenha conseguido, é o máximo que consigo pensar quando me lembro dela, eu me odiaria duplamente se me sentisse culpado pela sua infelicidade atual, já que claro está que fui por sua infelicidade anterior.
          - Ela conseguiu?- perguntei à minha tia assim que tive uma oportunidade, ela que se instalou sem problemas nesse imenso apartamento em que vivo.
          - O que, meu querido? Quem? - ela parecia realmente confusa com a minha pergunta.
          Deixei isso pra lá e mudei de assunto, falei das coisas práticas de meu cotidiano, contas a pagar, era preciso já que ela tinha decidido cuidar de mim. Acho que ela entendeu minha pergunta fora de hora, meu imediato desconforto e poupou-me de uma confirmação e poupou-se de um desmentido. Nunca mais voltamos a esse assunto, tabu a todos na família que restou ao meu redor desde quando minha mãe me deixou... pra ser feliz, em suas próprias palavras.
          Mas a tia não pode deixar de falar algo quando eu apresentei a ela a tartaruga Esperança que vive conosco junto ao gato que sabe cafunezar. Sim, tia, quem me deu a tartaruga foi a prima, sua filha, eu disse em um tom que, se não foi de tristeza, o foi de decepção. Ela me contou, então, que a prima estava viajando, por isso não viera me visitar ainda, tinha a certeza de que assim que voltasse, teríamos a grata surpresa de sua presença conosco, sorrisos e boas lembranças incluídas no pacote. Se não usou exatamente essas palavras, próximas eram. Porém, ao olhar a tartaruga, minha tia logo emudeceu e percebeu que aí estaria mais um tabu para se evitar falar, ainda mais com alguém que acaba de renascer. Esperança? será que ouvi bem? ela deve ter pensado, assim como deve ter vindo à sua mente os rumores que outros espalharam sobre nós quando éramos crianças e que, agora, já não vem mais ao caso. Melhor deixar a filha viajando.
          Com tantos assuntos proibidos e com tantas diferenças em nossas vidas, minha tia e eu aperfeiçoamos nossos silêncios mútuos e os cultivamos com afinco, como se deve fazer nessas horas. Por algum motivo que nunca soube, ela se propôs a cuidar de mim até que eu me sentisse realmente recuperado dos problemas de saúde que tivera. Acontece que a sua contabilidade do tempo era distinta da minha, logo já me sentia bem mas ela foi ficando como se ainda me devesse algo.
          Mas não reclamo, ambos notívagos, fazíamos companhia nesses momentos solitários. Nosso silêncio é bom, ao menos para mim que o aproveito para uma cuidadosa verificação de minha memória. Com esse desligar e ligar de meu cérebro era bem provável que parte de minhas lembranças se perdessem em algum beco desse emaranhado de preguiçosos e, por vezes, inúteis neurônios.
          Mas aconteceu algo estranho. Por mais que tentasse outras lembranças, o que mais me vinha à mente era a figura de meus avós, eles que me criaram, eles que se dispuseram a me ver crescer quando muitos se foram de minha vida. Por noites e mais noites, a tia ocupada com a TV, que agora se surpreende com tanta requisição, a imagem e a voz de meu avô, mais do que o de minha avó, me inundavam  a mente. Se sou grato a ambos, se devo o pouco de sanidade que ainda tenho aos dois, o estranho é que é o avô que mais me visita nesses momentos de lembranças.
          E, por mais que tente pensar em outras pessoas ou situações, o que ocorre é que a mesma cena me vem à mente. Eu era criança, então, mas nem tanto e ele me mostrava alguns desenhos seus. Eram desenhos estranhos pra alguém como eu, criança demais, mimado demais, inculto demais. Estranhos mas bonitos, uma combinação de cores e traços que me agradavam então e ainda agora.
          Ele dizia, costumava dizer, que se arrependia de não ter mostrado aquilo a outras pessoas, que perdera o seu momento, de alguma forma imaginava que os desenhos, se divulgados, teriam feito sucesso. Ele sabia que tudo aquilo se perdera por conta de sua falta de coragem. O que era para ser deixado para a eternidade se escondia então em um par de baús guardados no quarto da bagunça.
          Não entendi direito o que ele queria, talvez me dizer algo que não me alcançava então. E terminava dizendo: você, garoto, sabe o quantidade de frases que se perderam em gavetas? Em folhas avulsas, em diários escondidos? A quantidade de cores, de traços dissolvidos no tempo? Papéis rasgados, telas jogadas fora, sons tirados de instrumentos vários?
          - Vê lá o que você vai fazer da vida! - olhava-me bem fundo e perguntava - O que você quer ser quando crescer, garoto?
          Noite seguinte, recordei a mesma cena e também da frase final, “o que você quer ser quando crescer, garoto?”
          O meu avô ainda viveria muitos anos mais, mas parecia que, naquele momento, ele fazia um balanço de sua vida. O que quer ser? O que fui? E, talvez, mais do que isso, ele tentava me fazer refletir sobre o que eu queria ser quando crescesse. Era criança demais para poder ter alguma resposta, para poder sequer me preocupar com isso.
          Talvez eu vá atrás dos desenhos dele, talvez os encontre, talvez até os mostre para alguém, talvez até eles façam sucesso. Mas, já foi, ele morreu, o que importaria isso? Talvez ele até se importasse, antes de morrer, em saber se algum dia os seus desenhos fizessem sucesso. Ou não, a que serviria então?
          A tia compenetrada na TV e eu, depois de noites me lembrando dessa cena, acho que sei agora a resposta que ele buscava. Mas também acho agora que ele nunca me fez a pergunta correta, a que realmente deveria fazer. Sua fala era “o que você quer ser quando crescer?” mas a pergunta real em sua mente era “o que você quer ser quando morrer?”
          Eu? O que eu quero ser quando morrer?
          Pensando bem, nada, nada... nadinha.




[[ No próximo dia 01/09, estarei autografando o meu romance "Pigarreios" na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Das 14 às 15 horas no stand da Editora Chiado. Todos estão convidados!!!]]


quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Se for m, uma massagem.

            Acordei fora de hora, pensando em uma massagem. Mas foi pensamento ou foi resquício do sonho que estava tendo? Por vezes me confundo, inevitável não se confundir, nesses momentos em que tudo parece por demais nebuloso (a realidade, quis dizer, não o sonho...).
            Não que meus sonhos fossem estranhos, como muitos que já ouvi e ainda ouço por aí. Acontece que essa fase de sonhos desconexos já tinha se perdido nos anos, e fazia tempo que meu cérebro já não os escondia mais de mim, que tampouco tentava o velho truque de me enganar, de criar subterfúgios para, como dizem por aí, mostrar meu inconsciente através deles. Fazia tempo que sonhava claro e límpido, sem inconsciente para me deixar pensativo demais e tampouco perturbar meu dia a dia, relembrando questões mal resolvidas. Isso, límpido e claro, sem interpretações que sejam ou que queiram nos impingir.
            Por vezes, minha mente se diverte nessas horas dormindo simplesmente inventando estórias, mostrando novos personagens, criando cenários que, se eu tivesse a arte, poderiam ser transpostas para o papel ou em imagens que fossem. Não tenho e tudo se acaba quando abro os olhos, estórias, cenários e personagens se evaporam sem piedade nessa névoa que circunda esse meu apartamento.
            Ou simplesmente não sonho, aí é que é bom: sem sonhos, apenas o leve ressonar de quem necessita de uma boa noite de sono. Já me disseram que era impossível não sonhar. Bobagem, há dias em que eu não sonho e ponto final, quem saberia mais de mim que eu mesmo?
            Mas sonhava sim naquele dia. Sonhava, agora tenho a certeza, sonhava que ela me massageava. Ela que agora, agora que acordo assustado, ouço claramente gemer no apartamento em cima ao meu. Não é justo, ela está agora com o chato do meu vizinho no andar de cima, já madrugada, gemendo e eu aqui, com esse coração assustado, batendo feito uma bateria mal treinada. Também pudera, o susto de acordar assim pensando em uma massagem e, de cara, ouvi-la gemendo sim, aquele gemido que já pude comprar também e que tanto me excita. Ouvi-la gemendo pro chato do vizinho, com certeza ela cobra bem mais dele do que cobrou de mim. É justo, sem dúvida alguma, a tal taxa de insalubridade mental.
            Levanto, o coração ainda descompassado. Titubeio pra achar a porta do banheiro, pra encontrar a da cozinha, a do quarto na volta para a cama. Ainda sonho com a massagem revigorante. Acordei sonhando com uma, necessitando de uma.
            O tempo passa, mas sem acalmar o meu coração ainda que segue batucando e afinal chega o silêncio, um dos possíveis nessas longas madrugadas. Fecho os olhos pra me concentrar, já não há ruídos estranhos nem gemidos, só passos suaves deixando o quarto, um andar acima do meu.
            Suo, mas sinto frio. Preciso de uma massagem, é o que eu preciso agora, com urgência. Nem penso duas vezes, coração descompassado, saio do apartamento e, frente ao elevador espero. Quanto tempo?
            Tuctuc... tuctuctuc... tuc... tuc... tudo descompassado, o ouvido zumbe minhas expectativas, o elevador passa por mim e para no andar de cima, deve ter sido ela que chamou. Meio da madrugada, esse prédio nem muito movimento tem durante o dia, imagina nessa hora... tuctuc... tuctuctuc... tuc... tuc...
            Ouço ela entrando e, sem pensar duas vezes, aperto o botão, o elevador irá parar aqui no meu andar, ela irá parar aqui e  terei a minha massagem revigorante.
            E não é que ele para mesmo? Suo frio, coração descompassando cada vez mais, sinto a vista turvar quando abro a porta do elevador e ela está lá. Sorri ao me ver, parece se lembrar de mim. Tanto tempo não nos vemos, mas mal trocamos olhares.
            Tuctuc... tuctuctuc... tuc... tuc...
            Quando consigo abrir meus olhos de novo, sinto uma mão pesada em meu peito, finalmente a massagem. Escuresse novamente.
            Noites depois, acordo em um lugar inteiramente desconhecido e quem sorri para mim não é ela mais, é uma anja de branco que velava sorridente o meu despertar.
            Quer saber? Não tive curiosidade de saber tudo o que se passou nesses dias em que fiquei desacordado, mas algo soube sim mesmo sem perguntar. Disseram-me que me colocaram em modo de espera, isto é, induziram um coma para que o meu cérebro diminuísse suas atividades. Até aí tudo bem, mas acontece que depois ele demorou a voltar ao que era antes, a princípio nem no tranco ele pegou direito. De certa forma, o inconsciente se aproveitou dessa folga e tomou conta de tudo, voltei então a sonhar suas mensagens difíceis de serem decifradas. Nada de estórias com sentido, de personagens coerentes ou cenários deslumbrantes. Muito pelo contrário, tudo se tornou nebuloso em meus sonhos e só muito e muito tempo depois, voltei a ter clareza nesses momentos. Mas isso ainda está longe a acontecer, voltemos ao hospital.
            Como disse, soube pouco do que realmente aconteceu comigo.
            Mas de algo a mais eu soube, soube que ela, além de me socorrer e me acompanhar até o hospital, veio também me ver em alguns dias depois disso. Lembro, ou foi sonho, de sua mão apertando a minha. Lembro, ou foi sonho, de um beijinho de leve em meus lábios secos. Lembro, ou foi sonho, de seu sorriso carinhoso. Contaram-me que na véspera do dia em que acordei, ou fui acordado dessas minhas férias mentais, ela ainda esteve me visitando. E agora, as enfermeiras estavam estranhando a falta de visita de minha namorada, assim ela se declarou no dia em que me acompanhou até lá.
            - Bonita namorada você tem - me disse uma delas. Só mesmo concordando, o que fiz ainda por trás dos tubos que me rodeavam.
            Mas, como eu me mantinha calado sobre sua ausência, elas também pararam de mencionar coisa que fosse. Minha mente então se voltava para a primeira gaveta da mesa do escritório em casa, lá estava o cartão dela, já a tinha chamado algumas vezes mas não decorara o seu número. E, não via a hora de chegar em casa e ligar para ela, agradecer, dizer que já estou liberado, estou?, e chamá-la para uma interminável sessão de gemidos mútuos.
            Em todo o caso, minha esperança de vê-la chegando para me visitar ainda persistia em igual medida que essa nova leva de sonhos estranhos. Nunca soube exatamente o que tive, só sei que isso me custou quase duas semanas de hospital e uma longa recaída no domínio desse tal inconsciente.
            Ela não veio, mas sim a minha tia, a mãe de minha prima, minha namoradinha de quando éramos crianças, eu mais do que ela, ao menos todos assim diziam. Acharam-na fuçando em minhas redes sociais e, na falta da namorada que sumira assim sem deixar rastros, nada melhor que uma tia recém-descoberta.
            Ela me levou para casa e cuidou de mim lá por quase um mês antes de decidir que melhor seria voltar a cuidar de sua própria vida. Nesse aspecto, igual à irmã dela, minha mãe, que me deixou na mão quando eu ainda era o namoradinho de uma de suas sobrinhas.



[[ No próximo dia 01/09, estarei autografando o meu romance "Pigarreios" na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Das 14 às 15 horas no stand da Editora Chiado. Todos estão convidados!!!]]

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Se for l, o meu livro de volta.

 [[ Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "l"]]

           - Oi...
            Era ela, pouco tinha ouvido de fato a sua voz, mas sabia que era ela.
            - Oi – convincentemente, respondi. Desde nosso pequeno desentendimento, quase que não tínhamos nos comunicado. Disse pequeno? Acho que o foi para mim, pois para ela tinha sido monumental a contar por sua reação.
            - Você recebeu o meu arquivo? – ela foi direta ao ponto.
            - Sim, vi pela manhã, mas...
            - Quero resolver isso logo...
            Mas eu não tinha tido tempo para ler com calma, era isso que eu gostaria de ter dito quando ela me interrompeu. Minha vida é corrida, vida de desocupado que vive de herança, nunca sobra tempo para nada...
            - Me dê alguns dias para ler com calma...
            - Já disse, não me enrole, quero resolver isso logo.
            - Tá, é que eu queria ler antes o que você mandou, parecia um contrato...
            - Não seja irônico... não era um contrato, apenas um termo para estabelecer o que é de cada um depois da... de... de nosso desentendimento.
Estava confuso. Mal nos conhecíamos, nunca compramos nada em conjunto, nada tínhamos para ser separado, na realidade nem nos encontramos pessoalmente, só trocávamos mensagens, agradáveis a meu ver. Certo é que essas mensagens nos levou a começar a escrever um livro a quatro mãos, numa brincadeira que, esperava, nos levaria a nos conhecer melhor.
Ah... entendi, o livro.
- Vamos fazer assim - ela retomou – Eu digo a você quais são os pontos principais pra facilitar a sua leitura do termo de separação que eu mandei.
Entendi? Um termo de separação? Começava a achar tudo isso um pouco sui generis demais, mas vamos tocando.
- Ãhn... de acordo... toca!
- Tá certo que o livro ainda estava longe de ter alguma forma final e graças a deus que a gente escrevia os capítulos separadamente, fica mais fácil assim dizer quais frases e parágrafos pertencem a cada um de nós, não é?
- Concordo plenamente...
- ... pois bem... esse é o primeiro ponto do termo de separação que eu mandei. Cada capítulo é de quem escreveu...
- ... ceeerto... mas eles eram escritos em sequência, estavam ligados de alguma maneira.
- ... é... esse é exatamente o ponto que precisamos discutir, há alguns detalhes que se misturam. Mesmo quando a gente escrevia separadamente, parte do que escrevíamos refletia algo do outro, ou era inspirado no que o outro pensou. É preciso esclarecer isso muito bem...
Surreal isso, por mim ela poderia finalizar o livro e publicá-lo do jeito que quisesse, mas, por outro lado, estava curioso para saber até onde isso iria chegar.
- ... por exemplo?
- Te dou um... aquela ideia do encontro no café perto da estação de metrô, fui eu que escrevi isso, mas se você não tivesse mencionado no capítulo anterior que gostava tanto de café, nem teria me ocorrido algo do tipo...
- ... não eu, eu nem gosto tanto de café, gosto de vinho... é o personagem que não conseguia viver sem beber café...
- É mesmo? Achei que fosse algo seu isso...
- Não mesmo, o personagem é inventado...
- Que coisa, eu gosto de café, assim como ela...
- Ela?
- Sim, a Paula...
- Ãhn, nossa personagem!
- Nossa... vírgula, minha personagem!
- ... desculpa, sua personagem...
- Fui eu que a criei logo no primeiro capítulo, ela é minha... apesar de você querer impor características  a ela... você sabe que eu não gostei dessa sua interferência!
- ... ainda mais que ela se parece muito com você...
- O que você quer dizer com isso? Você nem me conhece! Mas voltando, aquele encontro foi escrito por mim, mas a ideia foi sua. Se você quiser, com outras palavras é claro, ficar com esse encontro, tudo bem, seria justo, já que me inspirei em suas ideias.
- Por mim, você pode ficar com esse trecho, sem problema...
O carinho que eu sentia por ela voltava, por que é que certas pessoas complicam tanto a vida? A menina que buscava entender porque fora feliz no passado para replicar no presente estava ali, do outro lado do telefone, procurando, a meu ver, um contato comigo, mas de uma forma tão bizarra...
Tivemos expectativas distintas enquanto escrevíamos a estória e isso levou a um desentendimento quando eu impingi algo a um personagem que ela não concordava. Não teria problema algum em retomar ao rumo que ela queria para a estória, nem era tão importante assim esse tal livro que escrevíamos juntos, era sim aquela troca de mensagens, criar a estória conjuntamente, o tempo que gastava pensando nela (ficou ambíguo em quem eu pensava?), imaginá-la... Nem sei por que, mas parecia não haver volta agora e, por outro lado, se eu dissesse que ela poderia ficar com todo o livro, mais nada sobraria para falarmos ao telefone e eu a perderia de vez.
- Obrigado – ela disse e continuou – a propósito, fui eu que nomeei os dois personagens principais logo no primeiro capítulo, mas você, parágrafos depois, arranjou um apelido ao personagem masculino... apelido e nome estão tão coerentes...
- ... o que você quer dizer?
- ... é que... se você não se importar... mas se importar, tudo bem, vou entender perfeitamente.
- ... eu me importar com o que?
- Posso usar esse apelido também? Sei que foi você que criou...
- Pode, sim... faço questão que fique com você...
Vontade de convidá-la a vir me visitar. Sei que ela mora longe, essa foi sempre a desculpa para não nos vermos até então, mas queria agora dar-lhe um abraço, sentir seu calor aquecendo minha solidão. Sua voz cada vez mais tranquila me indicava que sim, que ela também gostaria. Mas vamos seguindo para saber até onde isso vai.
- Legal, obrigada. Tem uma frase...
Ela insistia, isso era bom, adia o momento de dizer aquele adeus definitivo.
- Qual?
- Vou ler: “E então, seu olhos, castanhos de nascença mas quase verdes por conta do por de sol, diziam muito mais que seus lábios carnudos poderiam sequer imaginar...”
- O que tem? Você escreveu isso, ou não?
- Escrevi, sim... quer dizer, mas eu queria que ficasse com você, essa frase me diz tanto sobre esse tempo que nos correspondemos... Você promete usar em seu livro? Uma forma de você se lembrar...
Prometi, como recusar tal pedido. Mas livro não há, nem haverá, para ser sincero, estou longe de escrever algo que possa ser publicado. Sou só um leitor compulsivo e esse é o meu único contato com a literatura.
O silêncio se impôs por um tempo mais do que necessário, eu pensando nos tais olhos castanhos e em seus lábios carnudos, mas e ela, em que pensava? Ela, por fim, falou.
- ... bom, preciso ir... tem algumas outras coisinhas no termo sobre frases e ideias que precisamos dividir, mas acho que você irá entender o que escrevi...
O que fazer? Tinha medo de tentar mudar o rumo dessa estranha conversa, de tentar mudar o rumo de nossos destinos. Estava confuso, deveria convidá-la a retomar nosso contato? E uma recusa, tantas tive... deveria pedir-lhe um abraço? E uma negação, tantas tive... que merda ser tímido e inseguro!
- Mas posso te ligar se tiver alguma dúvida? – tentava deixar alguma porta aberta...
- Pode... – ela disse, voz meio tristonha e completou – ah! queria te perguntar algo.
- ... sim? – esperançoso respondi.
- Você está com alguém agora?
- Não, sozinho... estou sozinho em casa...
- Quero dizer, você anda saindo com alguém?
Estranhei.
- ... não, com ninguém...
- É que nunca se sabe, somos todos viventes... se você estivesse com alguém, eu pediria que essa pessoa também assinasse o termo... só para garantir que ela depois não vá interferir... achar que tem algum direito sobre o meu livro, sabe como é...
Ainda melancólico e com a voz embargada, só me ocorreu responder ao susto dessa última frase com ironia.
- Quer que eu reconheça minha firma nesse documento em cartório?
- ... se não for dar trabalho...



[[ No próximo dia 01/09, estarei autografando o meu romance "Pigarreios" na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Das 14 às 15 horas no stand da Editora Chiado. Todos estão convidados!!!]]

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Se for k, kkkkk

[[Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "k"]]

            A noite já estava até cansada de existir e eu piscava meu desânimo frente ao monitor. Garimpava, é preciso garimpar nessa serra por demais pelada, algo que me motivasse. Horas à frente do monitor sugam a energia do mais valente, do mais otimista, o que dizer então da minha?
             Mas foi nesse instante que, no meio de tantos posts coloridos, surpreendeu-me uma sugestão de amizade feita pelo Mark. Pisquei, tentei me animar e lá fui eu. É preciso garimpar e garimpar é esperar pelo bônus que virá, seguramente virá, é esperançar pelo cavalo selado passando atropelando tudo e nos convidando a seguir com ele, pela estrela cadente, pela nova música que soará inesperada no canto obscuro de nossa vida. É ver pagar todo o esforço que se faz por meses e meses por meio de tantos kkkkazes e rsrsrsresses, de infindáveis curtidas e intermináveis compartilhadas. É o momento em que dizemos que valeu a pena as horas rolando e rolando a tela do monitor pra baixo e pra cima, clicando o refresh de tempos em tempos. Com quantos amigos virtuais irei efetivamente dividir uma taça de Merlot ou compartilhar uma poema regado a beijos? É preciso garimpar.
            Um clique e fui para a página dela.
            O bônus tinha chegado, convenci-me disso, bastou olhar o seu incompleto perfil. A frase, quase nenhuma informação, mas a frase, poucas fotos, a maioria na penumbra da vida, mas a frase, a frase! Dito assim, até parecia alguma frase extraordinária, mas naquele momento, garrafa de Tannat no seu quarto final, horas a rolar a tela, séculos à espera no vazio da madrugada, ela até que me fez sentido, trouxe-me uma estranha intimidade com a minha possível mais nova amiga e pareceu-me que a conhecia há muito. Apaixonar-se, bastava pouco agora.
            “parece-me que até já fui feliz... se ao menos me lembrasse do que isso é feito, tentaria replicar...
            Convidei-a. Ainda fuçava sua pouco informativa página quando recebi a esperada resposta, aceitava-me como amigo, rapidez essencial nessas horas de furtiva expectativa. De quebra, descobri outra notívaga nesse mundão. Nesses tempos atuais, quem é que não tem trocentos amigos pra prosear, para curtir e ser curtido? Trocar selfies de felicidades, invejar a todos com paradisíacas viagens? E agora eu tinha mais uma. Só que essa era especial, alguém que procurasse a matéria prima da felicidade só pode ser especial...
            Sou tímido, já disse, não? Agradeci inbox sua aceitação e ela respondeu imediatamente com um coraçãozinho...
            Muito tímido, já reforcei isso, né? Seguimos trocando mensagens curtas e desenhinhos via inbox. Tem gente que já parte para o explícito, mas eu não, fui lento e lendo fui me aproximando dela, lendo e escrevendo, lento como convém. Talvez, em outros tempos, perguntasse logo pela cor da calcinha, se ela estava sozinha no quarto, se vestia sutiã. Mas não me ocorreu nada disso naquela nossa conversa incial. Quando se chega à fase do bônus, essas perguntas já não fazem mais sentido, já são perguntas de adolescentes, perdidas em um passado longínquo. E olha que minha adolescência não completou ainda duas décadas.
            Par de dias, passamos ao e-mail quando aquela telinha minúscula do inbox já não comportava mais nossas frases mais extensas, nossa troca de ideias poéticas, nossas expectativas. Suas poucas fotos publicadas, uma sorridente (devia ser do tal passado que ela não consegue recordar direito), outras distorcidas pelas luzes de fundo, essas poucas fotos me satisfizeram por um bom tempinho e, a ela, talvez as minhas poucas disponíveis também fossem suficientes. E acontece que fomos nos conhecendo assim, sempre uma troca de e-mails lidos e relidos antes de enviar. Tínhamos o zapzap pra avisar quando tínhamos escritos um ao outro. O seu barulho característico soando no começo da madrugada, livro no colo já cansado de ser lido e eu, que já piscava meu sono, me animava novamente e, sob o olhar do gato que sabe cafunezar e que mal entendia esse novo hábito, ia lá eu para o computador ler sua mensagem.
            Um dia, ela me manda um conto, nas palavras dela um projeto de conto. Não sabia que ela escrevia, descobri então, mas poderia ter desconfiado... a quantidade de escritores que há hoje em dia excede até o dos leitores. Se cada escritor comprasse e lesse dez outros, seríamos todos bestsellers.
            E o conto dela me despertou. Era uma estória em torno de um tijolo que uma moça manda a um amigo. Bem escrito, ao menos nessa minha visão de leitor assíduo.
            Li e reli e pareceu-me que poderia haver uma continuação bem natural àquilo que ela tinha começado. Respondi então a ela que leria o conto no dia seguinte com calma, que a faria ter a minha opinião, e escondi-me no escritório escrevendo e reescrevendo, pensando e repensando sua estória, a estória do tijolo, da garota e do amigo.
            Dois dias depois, ganhei coragem e enviei a ela o que seria, na minha opinião, uma continuidade natural ao que ela tinha escrito.
            Fui ousado, sei disso, se bem que talvez essa não seja a melhor palavra... temos destas coisas, um ciúmes do que escrevemos, a ninguém é dado o direito de se meter muito em nossos escritos, no máximo aceitamos, a contragosto, a contragosto, uma revisãozinha gramatical. Aceitamos, sim, forçados e com a garganta presa e sorriso imprudente, qualquer crítica mais profunda, como sobreviver nesse universo sem fingir aceitar isso?
            Uma melhor palavra? Imprudente. Outra? Cafa! E lá ia eu procurando palavras para a atrocidade que tinha feito quando ela me escreve dizendo que gostara da continuidade pensada por mim e...
            Por que não? Iríamos escrever uma estória a quatro mãos, cada um enviando ao outro o que seria o seu próximo capítulo. Ninguém, ao menos no começo, mexeria no que o outro escreveu, bastava esperar chegar a sua vez e tentar uma coerente continuidade. Ao final, revisaríamos tudo juntos.
            Pensando em retrospecto agora, creio que ela até torceu para que eu escrevesse alguma continuação ao seu conto inicial. Um novo tijolo, ela esperava, e outro seguiria da parte dela...
            Metáforas, óbvias mas indispensáveis.
            Avançamos e, quando tínhamos uma boa dúzia de capítulos escritos, quase meia parede de tijolos, um livro começava a tomar forma, no melhor estilo da autoficção. Era sim, definitivamente, um livro de autoficção escrito a quatro mãos, só que duas, as minhas, se concentravam apenas na ficção, enquanto que as outras duas, as delas, escreviam no modo auto.
            Hoje sei que foi essa divisão impensada que nos levou àquele inacabado livro.
            A personagem principal, após colecionar tijolos imaginários, engravida nas mãos dela enquanto que, par de capítulos depois, as mãos da ficção a levam a um aborto após um acidente de trânsito.
            Sei, agora sei, nenhuma autoficção sobreviveria à minha pesada mão ficcional. A princípio, estranhei o seu silêncio, ainda insisti um contato mas a realidade se sobrepôs afinal.
            Hoje, eu também passo as noites tentando replicar aqueles momentos que tinha vivido com ela...

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Vertigens


            Vertigem.
            Desde então eu não consigo mais chegar até o final da varanda, sequer até ela chego. O gradil me assusta. A altura. O som do baque no chão me inibe, me arrepia, me atemoriza.
            Sinto vertigens agora. Mas já sentia antes?
            Nem sei por que foi ela que caiu, estávamos os dois desequilibrados.
            Mas foi ela. E não eu. Caiu rasgando a escuridão e o silêncio daquelas horas.
            Acidente decretado, seguimos a vida. Eu, quero dizer.
            Acidente decretado, ninguém precisa saber. Sofrimentos desnecessários, evitam-se.
            Acidente decretado, sobrou a vertigem. E o som do baque a subir por esses tantos andares, acendendo luzes e propiciando sustos, o som a ecoar em minha mente confusa. Ainda hoje.
            Nem sei por que, foi ela que caiu. Bêbados e ansiosos, ambos estávamos. Ansiosos e a paz a ser refeita entre nós depois das brigas de sempre, eu te odeio voando de lado a lado junto a peças de decoração. A paz, a expectativa da paz, e um tesão por recomeçar. Bêbados, sim. O resto, como foi mesmo?
            Vertigem, foi ela que caiu, o acidente decretado, o copo de vinho se espatifou ao chão. Co(r)po espatifado(s). O copo foi o de menos, ela diria. Não mais diz, nem poderia, garganta inundada por líquidos e por silêncios.
            Acidente a ser decretado, afastei-me da varanda, ouvi o baque, ouvi o grito, ouvi os gritos apesar da altura. Descalço, cortei-me no copo quebrado, quebrei-me no corpo cortado ao longe. Perícia, meu sangue, minha versão. Acidente decretado, em segunda instância, transitado em juízo.
            Sobram a vertigem, o medo da varanda, o conjunto incompleto de copos no barzinho da sala recém mobiliada. Sobra a dúvida.
            Bêbados, nos despimos. Ansiosos, fomos nos exibir pras estrelas na varanda, o corpo dela tão jovem... Celebrar a paz que ela acreditava que ainda teríamos, celebrar, suas palavras, mesmo ainda não ser a hora para tal, meus pensamentos, mesmo com nossas mágoas ainda expostas, brotando na pele em carne viva.
            Mas foi ela a cair. Vertigem, desequilíbrio, acidente decretado.
            Bebo agora pra recordar, não para esquecer. Só bêbado igual conseguirei recordar, só bêbado igual reviverei, nós dois nos desequilibramos, mas foi só ela a cair.
            Bebo mais e já consigo chegar à varanda. Mais um passo, o gradil se aproxima. Mais um passo, vertigem. De bêbado ou do trauma? Ou sempre senti?
            Bêbado, nada sinto, tudo nebuloso demais. Nada é modo de dizer, sinto a vertigem me assolando a cada passo que dou em direção ao gradil, em direção ao baque, ao(s) grito(s), em direção ao passado.
            Acidente aceito, decretado, luto pelo luto que deveria ter vindo mais fácil.
            Dou mais um passo frente ao gradil, ele se aproxima sem ser chamado. Passo de bêbado, passo de desequilíbrio, passo das vertigens, eu passo dos limites.
            Mais um passo e chegarei...