quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Se for n, nada... nadinha.

         Se há algo estranho na vida, é essa volta a ela. 
         Tudo começa quando você, assim do nada, tem um troço que o derruba, nem quer saber o que foi, melhor assim. Mas quando os médicos decidem, para salvar-lhe a pele, reduzir suas atividades mentais por alguns dias, é como se você estivesse semimorto, se é que me entendem.
          Pelo que pude perceber, a volta é como nascer de novo. Só que, dessa vez, lembranças já estão lá e você, em geral, sabe falar, sabe escrever, sabe andar, essas coisas básicas que uma vez aprendidas persistem em resistir. É só o cérebro que se afastou um pouquinho de sua vida.
          A sensação é muito estranha.
          Depois, é como renascer, sim, e só quem passou por essa experiência, como eu, sabe o que ela significa. Em meu caso, renasci sem a minha mãe por perto. Aliás, sem meu pai também, já que estamos indo nessa direção de mencionar os progenitores. Mas meu pai nem me faria mesmo tanta diferença agora, ele morreu quando eu era muito criança e, sem digressões muitas, fez bem em me deixar sem a sua influência. Meu pai tinha a ética própria de sua profissão, característica que eu descarto sem nem sequer pensar. Mas isso pouco vem ao caso hoje quando volto ao meu apartamento depois de dias no hospital, a maior parte do tempo com a mente desligada, e só acompanhado de minha tia, irmã de minha mãe.
          Não, minha mãe não acompanhou o meu renascimento, ela que desaparecera de minha vida anterior para ser feliz. Tomara que tenha conseguido, é o máximo que consigo pensar quando me lembro dela, eu me odiaria duplamente se me sentisse culpado pela sua infelicidade atual, já que claro está que fui por sua infelicidade anterior.
          - Ela conseguiu?- perguntei à minha tia assim que tive uma oportunidade, ela que se instalou sem problemas nesse imenso apartamento em que vivo.
          - O que, meu querido? Quem? - ela parecia realmente confusa com a minha pergunta.
          Deixei isso pra lá e mudei de assunto, falei das coisas práticas de meu cotidiano, contas a pagar, era preciso já que ela tinha decidido cuidar de mim. Acho que ela entendeu minha pergunta fora de hora, meu imediato desconforto e poupou-me de uma confirmação e poupou-se de um desmentido. Nunca mais voltamos a esse assunto, tabu a todos na família que restou ao meu redor desde quando minha mãe me deixou... pra ser feliz, em suas próprias palavras.
          Mas a tia não pode deixar de falar algo quando eu apresentei a ela a tartaruga Esperança que vive conosco junto ao gato que sabe cafunezar. Sim, tia, quem me deu a tartaruga foi a prima, sua filha, eu disse em um tom que, se não foi de tristeza, o foi de decepção. Ela me contou, então, que a prima estava viajando, por isso não viera me visitar ainda, tinha a certeza de que assim que voltasse, teríamos a grata surpresa de sua presença conosco, sorrisos e boas lembranças incluídas no pacote. Se não usou exatamente essas palavras, próximas eram. Porém, ao olhar a tartaruga, minha tia logo emudeceu e percebeu que aí estaria mais um tabu para se evitar falar, ainda mais com alguém que acaba de renascer. Esperança? será que ouvi bem? ela deve ter pensado, assim como deve ter vindo à sua mente os rumores que outros espalharam sobre nós quando éramos crianças e que, agora, já não vem mais ao caso. Melhor deixar a filha viajando.
          Com tantos assuntos proibidos e com tantas diferenças em nossas vidas, minha tia e eu aperfeiçoamos nossos silêncios mútuos e os cultivamos com afinco, como se deve fazer nessas horas. Por algum motivo que nunca soube, ela se propôs a cuidar de mim até que eu me sentisse realmente recuperado dos problemas de saúde que tivera. Acontece que a sua contabilidade do tempo era distinta da minha, logo já me sentia bem mas ela foi ficando como se ainda me devesse algo.
          Mas não reclamo, ambos notívagos, fazíamos companhia nesses momentos solitários. Nosso silêncio é bom, ao menos para mim que o aproveito para uma cuidadosa verificação de minha memória. Com esse desligar e ligar de meu cérebro era bem provável que parte de minhas lembranças se perdessem em algum beco desse emaranhado de preguiçosos e, por vezes, inúteis neurônios.
          Mas aconteceu algo estranho. Por mais que tentasse outras lembranças, o que mais me vinha à mente era a figura de meus avós, eles que me criaram, eles que se dispuseram a me ver crescer quando muitos se foram de minha vida. Por noites e mais noites, a tia ocupada com a TV, que agora se surpreende com tanta requisição, a imagem e a voz de meu avô, mais do que o de minha avó, me inundavam  a mente. Se sou grato a ambos, se devo o pouco de sanidade que ainda tenho aos dois, o estranho é que é o avô que mais me visita nesses momentos de lembranças.
          E, por mais que tente pensar em outras pessoas ou situações, o que ocorre é que a mesma cena me vem à mente. Eu era criança, então, mas nem tanto e ele me mostrava alguns desenhos seus. Eram desenhos estranhos pra alguém como eu, criança demais, mimado demais, inculto demais. Estranhos mas bonitos, uma combinação de cores e traços que me agradavam então e ainda agora.
          Ele dizia, costumava dizer, que se arrependia de não ter mostrado aquilo a outras pessoas, que perdera o seu momento, de alguma forma imaginava que os desenhos, se divulgados, teriam feito sucesso. Ele sabia que tudo aquilo se perdera por conta de sua falta de coragem. O que era para ser deixado para a eternidade se escondia então em um par de baús guardados no quarto da bagunça.
          Não entendi direito o que ele queria, talvez me dizer algo que não me alcançava então. E terminava dizendo: você, garoto, sabe o quantidade de frases que se perderam em gavetas? Em folhas avulsas, em diários escondidos? A quantidade de cores, de traços dissolvidos no tempo? Papéis rasgados, telas jogadas fora, sons tirados de instrumentos vários?
          - Vê lá o que você vai fazer da vida! - olhava-me bem fundo e perguntava - O que você quer ser quando crescer, garoto?
          Noite seguinte, recordei a mesma cena e também da frase final, “o que você quer ser quando crescer, garoto?”
          O meu avô ainda viveria muitos anos mais, mas parecia que, naquele momento, ele fazia um balanço de sua vida. O que quer ser? O que fui? E, talvez, mais do que isso, ele tentava me fazer refletir sobre o que eu queria ser quando crescesse. Era criança demais para poder ter alguma resposta, para poder sequer me preocupar com isso.
          Talvez eu vá atrás dos desenhos dele, talvez os encontre, talvez até os mostre para alguém, talvez até eles façam sucesso. Mas, já foi, ele morreu, o que importaria isso? Talvez ele até se importasse, antes de morrer, em saber se algum dia os seus desenhos fizessem sucesso. Ou não, a que serviria então?
          A tia compenetrada na TV e eu, depois de noites me lembrando dessa cena, acho que sei agora a resposta que ele buscava. Mas também acho agora que ele nunca me fez a pergunta correta, a que realmente deveria fazer. Sua fala era “o que você quer ser quando crescer?” mas a pergunta real em sua mente era “o que você quer ser quando morrer?”
          Eu? O que eu quero ser quando morrer?
          Pensando bem, nada, nada... nadinha.




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