quinta-feira, 25 de julho de 2019

iba áles, quatorze


Decisão. Após sete anos, três vistas de processos incluídas, o Supremo decidiu por cancelar o processo contra o Senador por vício formal em uma das provas. 

Demora. Esse processo já tinha passado pelas dezessete instâncias anteriores sempre com sentença desfavorável ao parlamentar. Mesmo assim, ele continuava a responder em liberdade durante o tramitar dos recursos. Obviamente, a maior parte das acusações já estavam prescritas quando o Supremo finalmente analisou o caso.

Posso? Uma das ações prescritas dizia respeito a 23 milhões de dólares que um banco suíço dizia ser do Senador, o que ele veementemente negava, chegou até a chorar em uma entrevista por conta dessa suposta injustiça. Ao saber da prescrição, ele só fez uma pergunta ao advogado: quer dizer então que posso ficar com o dinheiro?

Testes grafológicos. O vício formal que propiciou o cancelamento do processo e o consequemente retorno à primeira instância se deu por conta da carta de confissão que o Senador escreveu (e até assinou). Nela constava, em detalhes, muitas das atividades criminosas do parlamentar e ela foi escrita numa tentativa de negociação de uma cagoetagem premiada. No entanto, não foi o seu teor que levou o Supremo a se aprofundar na questão. Nem a assinatura foi questionada, visto que exames grafológicos foram feitos para confirmar a autenticidade tanto da carta quanto da assinatura.

Vício formal. Testes sofisticadíssimos, no entanto, identificaram a tinta da caneta utilizada pelo Senador para redigir essa carta como sendo comprada de um camelô da 25 de março. Como se tratava de mercadoria falsificada e provavelmente contrabandeada, era, de acordo com normas já bem estabelecidas, necessária uma autorização judiciária para a sua utilização como prova. Como isso não havia sido feita com a devida antecedência, tal documento, agora já devidamente incinerado, não pode ser usado como prova. E o processo deve voltar à fase de instrução. 

A procura continua. A Polícia Federal faz agora, a pedido do Supremo, um levantamento de todos os documentos assinados pelo Senador com a dita cuja caneta, cheques e bilhetes amorosos incluídos, visando seus cancelamentos e posteriores destruições. É preciso se trabalhar dentro das normas legais, nenhuma prova pode ser utilizada sem a devida e prévia autorização judicial.

iba áles.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

iba áles, treze


          A menina atravessou a porta do salão e foi logo esbofeteada por imensos cartazes anunciando a palestra do Sr. Ministro. Opção de ficar em casa não havia nesses dias atuais. O Comando Global há tempos a anunciava como essencial para o bom andamento da nação e quem, em sã consciência, iria desobedecer uma tal ordem?
          Mas a menina olhou com calma todos os detalhes do cartaz que mais a tinha esbofeteada enquanto seus pais se divertiam em conversas nos aplicativos governamentais. Em sua análise minuciosa, ela notou que a organização da palestra tinha ficado a cargo de uma tal “LJ Eventos e Palestras Filantrópicas”. Lembrou-se então do que dizia um tio seu, meio distanciado do convívio de seus pais por conta de certas ideias radicais que se traduziam na expressão estado de direito e que, aparentemente, tinham saído de moda.
          Pois sim, lembrou-se que o tio dizia que tudo era muito caro quando a palavra filantropia estava envolvida... a maioria das organizações sem fins lucrativos tinha justamente como objetivo gerar lucros a seus administradores, o que era um contrasenso apenas para esses pobres mortais perdidos nesses novos tempos tão promissores.
          Mas já a palestra ia começar e a menina foi arrastada para dentro da sala, ela e a horda presente ao evento filantrópico. Luzes baixas, sobem ao palco o apresentador e seu vasto sorriso.
          - iba áles a todos!!!!
          - iba áles - todos responderam, muitos já sem a animação de outrora.
          - ... pois bem, desculpem o atraso, acontece que estávamos esperando pelas novas diretrizes de comportamento, mas até o momento o zapzap não nos indicou quais seriam. Precisamos começar mesmo sem elas...
          O silêncio prevaleceu.
          - ... entendemos todos que é um momento difícil, o Comando Global ainda não se convenceu da gravidade da situação, se é que é de fato grave e há de haver aqueles, e são muitos ainda esses aqueles, que acham tudo isso muito natural, quem poderia me contestar? Esses tantos indivíduos estão convencidos, essa é a palavra jurídica apropriada, convencidos, que não há nada de estranho ou ilegal nas falas proferidas na escuridão dos porões. Provas, evidências, quem se importa? Convicção é a palavra chave do momento. Mas, mesmo o Comando Supremo está confuso depois das últimas revelações, é preciso saber a direção que a biruta apontará os ventos das ideias, é preciso esperar pelo último DataGazeta para saber o que a maioria pensa, e talvez reinterpretar mais uma vez a constituição para não cair em desgraça frente à opinião global, o que seria desastroso para as pretensões político-financeiras de todos. Adiamento de decisões foram necessários, melhor esperar por mais um dos recessos, ou quiçá alguns poucos anos, pressa há apenas para os apressados, já dizia minha avó. E, acima de tudo, é importante não melindrar quem não deve ser melindrado. Os Comandos esperam, eles têm suas razões, mas nós não podemos, devemos começar, já é hora, mesmo sem as novas diretrizes.
          Os ouvintes já estavam impacientes com tantas justificativas, queriam voltar a seus afazeres. A menina, por sua vez, divertia-se pensando no boi de piranha, no tucano de piranha, nesses animais todos...
          - Em todo o caso, melhor não tomarmos partido já que sabe-se lá o que virá, quem ganhará essa peleja. Recebamos, pois, nosso ilustre convidado com uma salva de palmas comedidas pontuadas por pitadas de indiferença e ocasionais vaias respeitosas.
          Iba áles a todos.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Tribunal das Águas de Valência



          Os canais de irrigação do rio Túria nas portas da cidade de Valência na Espanha foram muito provavelmente construídos durante o califado de Córdova (929-1031) e funcionam até hoje. Desde 1238, eles são administrados, por ordem de Jaime I, pelos campesinos. Para resolver disputas envolvendo a alocação das águas desses canais, existe, desde os primórdios, o Tribunal das Águas de Valência que se reúne, até hoje, toda quinta-feira ao meio dia na Porta dos Apóstolos, parte exterior direita da Catedral da cidade.
          Formado por oito síndicos representando os oitos canais de irrigação e presidido por um deles, em um rodízio semanal, o tribunal resolve de pronto as denúncias de irrigação abusiva. O processo é gratuito e oral e sua decisão deve ser cumprida imediatamente. Todos os envolvidos, síndicos e campesinos, respeitam as decisões e há um sentimento geral de justiça.
          Apesar da eficiência e agilidade, ou talvez mesmo por conta disso, há sempre vozes tentando acabar com essa jurisdição que é garantida tanto pelo Estatuto de Autonomia da Comunidade Valenciana quanto pela constituição espanhola de 1978. Também, é parte do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Muitos não conseguem conceber como é possível se fazer justiça sem uma imensa e morosa estrutura por trás e muito menos como se confiar em algo baseado em uma secular sabedoria popular.
          O que acontece é que, tempos atrás, motivados por um dos inúmeros ataques que o tribunal sofreu, os seus membros resolveram fazer consultas internacionais para ver como funcionavam outros sistemas jurídicos. E veio a calhar consultarem o Thio Therezo sobre o sistema brasileiro.
          Lisonjeado com o convite, lá foi o Thio para mais uma estadia na agradável Valência, mesmo ciente de que pouco ou quase nada poderia contribuir para o aprimoramento do tribunal. Não que o seu conhecimento das entranhas (palavra mais do que adequada) do sistema judicial brasileiro não fosse suficientemente profundo, mais do que isso, o Thio é um especialista renomado, não há quem duvide disso. O ponto é que o nosso sistema se apoia sobre, digamos assim, outros princípios éticos.
          Após dar mais uma volta pelo centro da cidade que tanto gosta e se deliciar no Mercat Central, o Thio foi se reunir com os membros do tribunal. A conversa, ninguém duvidaria, foi em valenciano, língua que o Thio conhece muito bem, é famoso o seu tratado linguístico sobre ela. Antes de mais nada, ele quis deixar clara a sua admiração pelo secular tribunal e enfatizou sua crença de que nada poderia ajudar em possíveis aprimoramentos a partir da experiência brasileira.
Tomando essas palavras como gentilezas normais em tais situações, os campesinos valencianos pediram inicialmente que o Thio descrevesse, em linhas gerais, os procedimentos jurídicos no Brasil. Após meia hora de fala, acharam que era chacota do bem humorado Thio a descrição de todas as instâncias a que deve se submeter um pobre coitado que necessitasse de justiça. O Thio, tentado dourar um pouco as dificuldades que os mortais enfrentam em nossa justiça, disse que havia um grupo de pessoas que não precisava passar por tudo aquilo que descreveu, havia fóruns privilegiados para elas além de penas específicas. Exemplificando, mencionou o grupo de especiais cujos membros, quando pegos em crimes e, na incrível eventualidade de serem condenados, poderiam até sofrer a pena máxima, qual seja a de se aposentarem com rendimentos integrais.
O Thio então percebeu uma troca de olhares entre eles. Completando a sua descrição, o Thio disse, agora sim meio que na chacota, que algumas pessoas especiais eram até isentas do melindre de serem processadas.
          - Como assim? – perguntaram incrédulos.
          - Acontece que certos juízes preferem não processar certas pessoas para não as melindrarem...
          - Mas isso está nas leis?
          - Jurisprudência, jurisprudência... – respondeu o Thio. O que o Thio não disse foi que era uma decisão do IBAMA para a preservação de certas aves em vias de extinção, não estava seguro de que os valencianos iriam entender essa piada.
          Calaram-se todos por um momento. A essa altura da conversa os locais já desconfiavam que o sistema jurídico brasileiro não serviria como modelo caso fossem forçados a reformular o Tribunal das Águas. Mas, mesmo assim, mesmo que fosse só por curiosidade, continuaram a conversa. Ao que um dos membros do tribunal perguntou para quebrar o silêncio e desanuviar o ambiente:
          - Ouvimos certos rumores de que é normal o juiz combinar com a acusação procedimentos e estratégias na ação em que está atuando. É claro que isso é piada, não?
          - Bom... digamos que legal isso não é...
          - Mas... acontece? – um outro perguntou um tanto quanto indignado.
          - É... veja bem... digamos que sim – agora era o Thio que estava constrangido.
- E ninguém reclama?
- Sim, as pessoas que acreditam em um estado de direito justo reclamam, mas você tem que entender que no Brasil as leis em geral só são reconhecidas se forem usadas contra os seus inimigos...
          Foi aí que alguém propôs irem comer, já era tarde e não poderiam perder a oportunidade de se deliciarem com a especialidade da culinária valenciana.
          - Eu avisei que não valia a pena... – o Thio ainda teve a oportunidade de falar antes de se dirigirem ao restaurante.
          Foi uma noite extremamente agradável onde o prato principal foi, claro, a paella valenciana regada a muita orxata. Assuntos jurídicos, obviamente, não fizeram parte da conversa, animada e sincera.


[[ foto do Tribunal tirada por Carlesmari ]]

quinta-feira, 4 de julho de 2019

doisdejulho - Coelhão



          Há inúmeros motivos para se festejar o dia dois de julho e certamente pouca concordância sobre o principal. Há quem insista, por exemplo, que o mais importante é o aniversário do Thio Therezo mas é justo dizer que nesse grupo o próprio Thio não se inclui, humilde que é e sempre foi. Quando perguntado sobre quando aniversaria, o Thio responde que é no dia dos bombeiros, o que, além de dar um charme todo especial à data, acrescenta credibilidade. Faz todo o sentido, ainda mais que o seu ascendente zodíaco é libra.
          Mas vá lá você mencionar ao pessoal da cidade baiana de Guanambi a data dois de julho e dificilmente conseguirá se livrar tão cedo das histórias envolvendo o estádio de futebol local. Ouvirá de tudo e mais um pouco, mas pouca convergência, no entanto, sobre o principal jogo lá disputado, é claro que os torcedores dos dois times que lá mandam seus jogos jamais iriam chegar a um acordo. Dizem muitos que foi o jogo entre Flamengo de Guanambi e o Esporte Clube de Vitória no dia dezenove de março de 2016. Outros apontam os jogos do Guanambi Atlético Clube que, de 2004 a 2011, disputou a segunda divisão do campeonato baiano tendo, por duas vezes, sido o seu vice-campeão.
          Mas, historiadores isentos de paixões futebolísticas não se digladiarão sobre a importância do primeiro jogo noturno daquele estádio em quatro de março de 2016 e que abrigou um Flamengo de Guanambi versus Fluminense de Feira de Santana.  O, por que não, clássico valeu pela quinta rodada do campeonato baiano de 2016 e foi vencido, no sufoco, pelo time local pelo magro placar de dois a um.
          Não só a iluminação noturna fora inaugurada nesse dia mas também a mais completa das reformas do cinquentenário estádio. De acordo com os registros da imprensa local, foram construídos não só novos vestiários como também novas cabines de rádio. Gramado novo e uma até então ausente tribuna de honra completavam, com louvor, a reforma, motivo de orgulho da cidade naqueles anos difíceis.
          Sei que o Thio não gosta que eu comente, mas seria injusto não mencionar a sua presença na tribuna de honra naquele importante dia. Disputado pelas duas torcidas, a sua presença no estádio se devia não só ao fato de ser um especialista da história do futebol baiano mas, também, à coincidente data, aniversário de um, nome de outro. A propósito, não deveria contar uma indiscrição por aqui, mas consta que naquele dia inaugural um dos vereadores, já devidamente alcoolizado e sem noção alguma do passado baiano, discursou no intervalo do jogo atribuindo, em sua fala, o nome do estádio ao aniversário do Thio. Foi meio constrangedor, mas como conhecimento histórico não é o forte desse pessoal, tudo foi perdoado.
          Mas acontece que, jogo em andamento, muitos se voltavam ao Thio para que ele contasse e recontasse e voltasse a contar as histórias do estádio e dos clubes de Guanambi. De como, por exemplo, um antigo jogador, o Isaías Cotrim, fora o responsável pela viabilização da construção do estádio inaugurado em 1964. Do chute inicial do jogo inaugural dado pela meiga Doralice Cotrim naquele longínquo dia. Dos jogadores locais que, injustamente, não se tornaram ídolos nacionais: o goleiro Idalício Teixeira, o Pedro da Morte, o José Ciríaco ou mesmo o Horácio Fernandes.
O Thio, a bem da verdade, estava mais interessado no jogo que transcorria por trás de tantas pessoas que o cercavam, queria vivenciar aquele ambiente de festa, confraternizar com os torcedores e tentou até ir para o meio da arquibancada junto à torcida do Flamengo de Guanambi. Mas, noblesse oblige, não houve maneira de escapar da paparicação inconsequente de seus anfitriões.
          Acabou não vendo o jogo, cercado que esteve o tempo todo de inconvenientes de plantão. Sabemos nós que ele, depois, se arrepende de não ter sido mais enérgico e ido fazer o que mais lhe apetecia. Mas o Thio é o Thio, um de seus defeitos é justamente tentar se adequar às circunstâncias, era um convidado de honra lá e assim deveria se comportar, distribuindo sorrisos.
          Consta que, findo o jogo, ele conseguiu, em um descuido dos anfitriões, escapar para o Bar-rracão, onde, em companhia saudável, pode beber à vontade e conversar com quem lhe interessava, os verdadeiros torcedores do rubro-negro local. Foi lá que lhe contaram um dos segredos da cidade, o porquê do estádio ser também conhecido como Coelhão... e até hoje o Thio se diverte com essa estória.