quinta-feira, 28 de maio de 2015

A Turma do Costa e... - Capítulo 1


Abertura

A impaciência do Bebeto ia crescendo naqueles momentos de final de aula e a cada instante ele olhava discretamente seu celular para ver as horas. Os segundos passando lentamente como se quisessem irritá-lo. Era uma quinta-feira e a última aula era de História, Dona Mirtes era a professora. Ela, que tanto gostava de representar as historinhas do passado, aproveitava aqueles últimos instantes da aula para contar uma de suas prediletas sobre reis e rainhas. Neste momento, o sinal de término de aula já estava na contagem regressiva para tocar, espreguiçando-se todo para, a toda energia, anunciar o final de mais um dia no colégio. Mas, para o impaciente Bebeto e seus colegas, os segundos custavam a passar... Na realidade, Bebeto gostava muito daquela aula, sempre aprendia coisas interessantes, mas hoje o seu pensamento estava em outro lugar e ele voltava a olhar o seu celular para saber as horas. E Dona Mirtes falava e falava e o tempo custava a passar...
Era quinta-feira e o Bebeto sabia bem o que isto significava. Após um almoço rápido em casa, que é ali pertinho da escola, ele iria voltar correndo para lá. Essa quinta-feira era o dia de continuar a escolha da equipe para jogar o IX Desafio de Xadrez. Faltava pouco tempo para os dias dos jogos, pouco mais de duas semanas, e a equipe ainda se restringia a dois jogadores realmente competitivos, ele próprio e a Thaís, e um bocado de empurradores de peças, que é como os maus jogadores de xadrez eram chamados por ele. Sabia bem o Bebeto da dificuldade em se conseguir montar uma equipe com cinco bons jogadores até o início dos jogos. E o seu colégio, o Costa Manso, tinha que ganhar o Desafio aquele ano, tinha que! O Costa não podia nem se dar ao luxo de pensar em perder, pensava nisto o Bebeto, era a única coisa em que ele pensava realmente nesses dias, até que...
O sinal tocou anunciando o final da história que Dona Mirtes contava animadamente aos seus alunos, a história do pobre coitado do rei Luís que estava prestes a perder a cabeça na guilhotina durante a Revolução Francesa, e todos sabiam a correria que aquele sinal provocava nos impacientes alunos. Dona Mirtes também sabia, tanto sabia que ela sempre se preparava para esse momento. Ela gostava muito de contar suas histórias passeando pela sala, movimentando-se entre os alunos, representando para eles os reis e as rainhas que tanto gostava, fazendo suas caretas, prendendo a atenção de todos para a importância dos fatos históricos... Mas quando faltavam cinco minutos para o final da aula, ela já se posicionava em um canto da sala e lá permanecia estática, imóvel, ainda falando com o mesmo entusiasmo, é certo, pois a história precisava prosseguir, mas também ela ansiosa esperando pelo sinal... E hoje, como sempre acontecia após o sinal tocar, seguiu-se a correria e o atropelo barulhento dos alunos. Num instante, os corredores se encheram de jovens apressados e loquazes deixando para trás as salas vazias, deixando para trás a Dona Mirtes, no canto, olhar assustado, mais do que o do pobre do Luís prestes a perder a cabeça, final da história ainda em suspenso esperando um momento melhor para ser contado.
Rapidamente, Bebeto juntou todo o seu material, colocou-os na mochila e seguiu seus barulhentos colegas pelos corredores. Naquele dia, o assunto principal para quase todos os alunos, menos para o Bebeto, era o jogo de handebol que o Costa iria fazer no final de semana contra o colégio Porto Seguro pelas quartas de final das olimpíadas escolares paulistana. Nessas horas, era comum ouvir pelos corredores o animado canto de guerra do colégio:
Costa Manso existe apenas um... igual ao Costa Manso não pode haver nenhum... Costa Manso existe apenas um... igual ao Costa Manso não pode haver nenhum...
O Bebeto curtia muito ir aos jogos, principalmente os de handebol, que era o esporte onde o Costa se destacava mais, comandado pelo sempre animado Pio no gol. Mas por esses dias não conseguia se concentrar em outra coisa que não o Desafio de Xadrez. Andando mais lentamente que os seus colegas, ele foi ficando para trás, o grupo cantando animadamente e avançando à sua frente. E logo o corredor foi ficando cada vez mais vazio e silencioso, até que ele se viu de novo parado, sozinho no meio da escada, frente ao cartaz anunciando o IX Desafio de Xadrez, lendo-o pela enésima vez. Sempre parava lá, como se precisasse disso para se lembrar do Desafio (mas ele nunca esquecia) e de seu próprio desafio que era montar a equipe e todo o trabalho que teria para tal. Não precisava que o lembrassem de nada disso... ele sabia muito bem o que precisava fazer!
Mas ali, no meio da escada, olhando o cartaz, ele se lembrou mais uma vez que nos últimos anos o Costa tinha perdido aquele torneio de xadrez para o colégio vizinho Arquimedes Correia. Perderam apesar de seu empenho, seu e de sua colega Thaís.
“Bebeto, Bebeto, você sempre olhando este cartaz...” ele ouviu alguém falar quase ao seu ouvido.
Era a Thaís que tinha chegado silenciosamente e estava parada ao seu lado. Mas o Bebeto nem se virou, disse apenas:
“Precisamos achar ao menos mais um jogador bom para a nossa equipe...”
“Vamos ver se aparece alguém novo no teste que faremos. Você marcou para hoje, não é?” ela perguntou.
“É... marquei para esta tarde. Mas tô desanimado.” De repente, ele se dá conta da hora. “Vixe! Estou atrasado, senão nem almoço. A gente se vê depois.”
E saiu correndo, deixando a Thaís para trás.
“Até daqui a pouco, então,” ela gritou para ele, mas o Bebeto nem escutou, já descia a escada de dois em dois degraus, a mochila sambando em suas costas e o pensamento já longe.. 
====================
Este é o primeiro capítulo de meu e-book A Turma do Costa e o Desafio de Xadrez. Encontre o livro aqui.
====================

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Rádio Colo-Colo


Rádio Colo-Colo



Há os que são Barcelona e há os que são Madrid, os que gostam de Paris e os que preferem Londres. Há os Berlim e os Munique, Buenos Aires ou Cidade do México... há de tudo e pelas mais misteriosas razões.

A minha lista é longa, mas há uma cidade, pelos motivos que descrevo abaixo, da qual sempre me lembro: Santiago do Chile. Não diria que é a minha predileta (qual seria?), mas ela me traz um sentimento difícil de se descrever. 

Era um julho daquele longínquo final da década de 70, e estávamos, um bando de mochileiros, com a estranha intenção de, a partir de São Paulo, chegar a Machu Pichu. Saindo da Estação da Luz, iríamos cruzar todo o Pantanal, ingressar na Bolívia, o chamado trem da morte, cruzá-la toda até o Peru, ponto final da aventura. E voltar pelo mesmo caminho. Éramos três saindo de São Paulo e logo, em Campinas, se juntaram mais quatro... Idas e vindas, o grupo crescia ou diminuía a cada estação ou cidade (em uma noite, éramos treze procurando hospedagem, dormindo todos apertados em um quarto coletivo).

Mas vamos ao final. Acontece que, no dia 17 de julho, lembro bem da data, metade de nós estávamos (a essa altura, o grupo de São Paulo e Campinas) já entrando no Peru, quando estoura um golpe militar na Bolívia e as fronteiras se fecharam, deixando muitos para trás. Por sua vez, os planos de volta teriam que ser revistos e, depois de Machu Pichu, a turma se dispersou. Alguns voltaram ao Brasil pelo Amazonas, outros, como eu, decidiram ir para o Chile e, de lá, um luxo imprevisto, voltar ao Brasil de avião. 

Lembro de Arica, norte do Chile, onde passei um dia inventando um cais, lembro da viagem de ônibus pelo deserto, e lembro chegando a Santiago sozinho, cansado, já de noite. E lembro de um endereço onde buscar pousada, mas impossível àquela hora, e lembro de já estar sem dinheiro e lembro da sugestão do motorista do ônibus: ir até a esquina, à Rádio Colo-Colo, pedir ajuda. Lembro de um anúncio indo ao ar avisando sobre um estudante brasileiro que precisava de um lugar para dormir aquela noite, lembro de esperar, incrédulo, no banco do corredor da rádio e de ser avisado de que, lá, não poderia passar a noite. E, lembro bem, de alguém que veio socorrer. Pude dormir, naquela primeira noite de Santiago, em um sofá confortável na casa de um casal desconhecido...

Já era o regime militar, lá e cá, já toda aquela violência institucional conhecida, mas nunca me senti tão aconchegado pelo povo local de uma cidade como naquela noite em que a Rádio Colo-Colo me conseguiu um sofá para dormir.


[São Paulo, março de 2K13]

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Inauguração



Hoje é quinta-feira e, por que é quinta, é um excelente dia para se inaugurar um blog literário. Quero dividir aqui meus escritos e pretendo, a cada semana, postar algo diferente. Pode até ser um conto antigo que tenha aparecido em algum dos meus livros esgotados ou algo recém saído do forno, um vintém curtinho ou um conto mais longo, uma crônica ou algo que não seja nada disso, mas afim a todos eles...
Começo com um texto que escrevi para a revista Espaço Aberto (USP) em 2013, onde comento um pouco sobre os meus dois ofícios.
Espero que gostem e, se for o caso, comentem, divulguem e compartilhem o material aqui postado.
Boa leitura!

O difícil ofício

No meio de uma conversa descontraída, um colega matemático me aconselhou certa vez a abandonar a matemática e me dedicar à literatura. Tenho a certeza de que haverá críticos literários que me aconselhariam a não me meter na literatura e me concentrar na matemática. Enquanto não há consenso, eu tento fazer os dois: matemática, que é a minha profissão, e literatura, que é o que me completa emocional e intelectualmente.
Mas, na realidade, não há muita diferença entre se fazer matemática e escrever, pois, em ambos, o importante é ter uma ideia e desenvolvê-la, o resto são tecnicalidades próprias de cada área, simples assim... Brincadeiras à parte, não creio que sejam atividades assim tão distintas.
O curioso é que muitas ideias para contos surgiram exatamente nos momentos em que mais estava envolvido com a minha atividade matemática e, em uma interessante simetria, trabalho melhor com matemática quando estou também envolvido no lento processo de finalização de algum conto. Lembro-me de vários contos que surgiram durante viagens de trabalho, ou no meio de congressos científicos. Normalmente, nesses momentos, só tenho o tempo de anotar as ideias em um bloquinho, se há algum por perto, ou até mesmo em um guardanapo para depois, algum dia, com calma, poder trabalhar nelas. Às vezes, a inspiração vem tão forte que, mesmo estando no meio de uma palestra, o melhor a fazer é mesmo se concentrar no desenvolvimento de uma ideia, quer seja ela matemática quer seja literária.
Uma colega uma vez me disse, após ler o meu livro Contos que conto, que minhas histórias eram muito matemáticas, talvez se referindo às suas estruturações internas. Sei lá se concordo com isso, visto que apesar de alguns deles terem nomes que possam remeter à matemática, como Conto, O algebrista, O ponto de Euclides, Simetria ou O entusiasta do sistema decimal, nada neles foi escrito pensando-se em matemática. O conto O algebrista (do meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais) nada tem a ver com essa especialidade e, sim, com um significado já fora de uso dessa palavra: um algebrista, antigamente, era um especialista em consertar ossos. Por sua vez, o mote para O entusiasta do sistema decimal veio de uma frase de Jorge Luis Borges sobre a sua mãe que morrera aos 99 anos.
O meu primeiro conto, Postal, por outro lado, tem como tema a rotina de um aposentado e leva a um comportamento cíclico (que muito tem a ver com certas estruturas matemáticas) de seu dia a dia e que é a base para todo o texto.
Na realidade, não penso muito nas relações entre essas minhas duas atividades, seria teorizar demasiadamente algo que, acredito, é bastante natural. Ah, há outra semelhança entre fazer matemática e escrever, para mim (ao menos para mim): é que nunca estou totalmente satisfeito com os resultados conseguidos.

===============


Esse texto foi publicado inicialmente na revista Espaço Aberto (Universidade de São Paulo), número 147 em março de 2013: "O difícil ofício"