quinta-feira, 27 de agosto de 2020

sétimo

domingo,

a notícia a acordou,

acordou mais que o estridente toque do telefone.

ainda meio que madrugada,

hora de ligar?

a editora queria uma nota.

o jovem escritor...

foi difícil escrever.

naquele momento, naquelas circunstâncias.

segunda,

homenagens,

indignações facebookianas.

o tão jovem escritor...

o talentoso escritor...

o promissor!

detalhes?

só a boca pequena.

sussurros,

entreletras,

entrelinhas,

entrepalavras,

entresensações.

sétimo andar, céu azul, sem nuvens.

queda livre.

terça,

a mídia especula.

silêncio oficial,

os amigos se calam,

os invejosos espalham rumores.

quarta,

um texto aparece.

inacabado.

mas bem dele,

seu estilo,

sua caligrafia.

o tolo escrevia a mão,

alguém invejou.

mas o último bilhete,

o testamento,

a explicação,

ele ficou devendo.

outros pensamentos,

devia ter.

outras preocupações,

deviam estar presentes.

quinta,

três dias na mídia.

mais que a média

por aqui,

por um escritor.

algum sinal é!

apesar da dor,

é preciso pensar,

preparar uma coletânea

sair logo, é preciso.

sexta,

a polícia se mexe.

esclarecer, é preciso.

ninguém quedará impune.

mas aqui,

a punição,

essa, já se fez.

sétimo,

a igreja encheu-se,

de ateus e agnósticos,

de amigos e de invejosos.

o padre falou,

de mistérios falou.

olhos multicoloridos e úmidos,

abraços carinhosos,

abraços fingidos,

apertados ou não.

a gente se vê...


[[Em 2019, além de ter publicado "outros tantos" pela PENALUX, também publiquei um pequeno livreto chamado "as nuvens amortecem a queda" pela Sangre Editorial dentro da coleção 32. Feita artesanalmente em Buenos Aires e com 32 folhas apenas, esse livreto é bem especial, ainda mais que contém alguns contos que me agradam muito. Estou publicando aqui o seu conteúdo: cinco contos (ou assim eu os vejo) e seis aldravias (que publicarei todas juntas ao final). O dessa semana é o quarto conto. Espero que gostem.]]



[[Outra coisa. No dia 9 de agosto último, eu fui entrevistado por Adriana Mayrinck dentro do projeto Toca a Falar Disso coordenado por ela e pelo Emanuel Lomelino (ambos da In-Finita). A entrevista agora está disponível no YouTube, basta clicar aqui.]]

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

avô


- Pai, por que você é avô?

Os olhos amendoados daquele tiquinho de pessoa me pegaram de surpresa, seu sorriso, que merda! Olhos e sorrisos me lembravam constantemente da mãe, vontade de chorar de saudades, de desespero, de impotência... mas é hora de me recompor, isso sim, de sorrir de volta e sutilmente desviar o assunto.

Não tenho problema em parecer mais o seu avô que seu pai (a merda é parecer quase um bisavô...), mas essa pergunta, sei, levará a outra e a outra mais e chegaremos à mãe, essa sim mãe, e não avó.

Como dizer àquele tiquinho de gente, cabelos encaracolados, lábios grossos como os dela (e que saudades!) e olhar profundo, como falar o que realmente aconteceu à sua mãe? Falar de minha incompetência em lidar com sua depressão?

- Pai, por que você é avô?

- Não sou, sou o lobo que vai devorar a minha titikinha... – e me jogo em cima dela fazendo cócegas. Ela nem percebeu minha lágrima furtiva, tão compenetrada estava em gargalhar e sair correndo para o seu quarto deixando-me desconsolado no chão da sala...

Levantei-me, merda de juntas que resolvem doer nessas horas... enxuguei minha lágrima, olhei a janela por onde ela pulou...


[[Em 2019, além de ter publicado "outros tantos" pela PENALUX, também publiquei um pequeno livreto chamado "as nuvens amortecem a queda" pela Sangre Editorial dentro da coleção 32. Feita artesanalmente em Buenos Aires e com 32 folhas apenas, esse livreto é bem especial, ainda mais que contém alguns contos que me agradam muito. Estou publicando aqui o seu conteúdo: cinco contos (ou assim eu os vejo) e seis aldravias (que publicarei todas juntas ao final). O dessa semana é o terceiro conto. Espero que gostem.]]



[[Outra coisa. No dia 9 de agosto último, eu fui entrevistado por Adriana Mayrinck dentro do projeto Toca a Falar Disso coordenado por ela e pelo Emanuel Lomelino (ambos da In-Finita). A entrevista agora está disponível no YouTube, basta clicar aqui.]]


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

certezas



a porta, aberta.

ela e a menina. 

as duas, me olhando.

olhar de uma e de outra, mesmo olhar, porém.

saudades dela, não digo.

ela tampouco disse algo. 

disse nada, muda.

só o olhar, os olhares, das duas.

entraram. 

a porta, agora, fechada.

ficaram.

um dia, quero saber.

é sua, insinuou-me um dia.

outro dia, me disse, nossa. 

é nossa, garantiu.

fez sentido.

faz sentido, até parece meu sorriso. 

parece sim.

ficaram.

era minha, agora insistia, certeza tinha.

mas será que conto? 

será que estrago suas ilusões?

medroso, calo. 

mudo fico.

apesar de tudo, bom tê-la, bom tê-las por perto.

mas a menina não é minha, certeza tenho eu.

vivemos, então, par de anos.

mas nenhuma nuvem, 

nenhuma delas amorteceu a queda.

nem a dela, nem a minha.



[[Em 2019, além de ter publicado "outros tantos" pela PENALUX, também publiquei um pequeno livreto chamado "as nuvens amortecem a queda" pela Sangre Editorial dentro da coleção 32. Feita artesanalmente em Buenos Aires e com 32 folhas apenas, esse livreto é bem especial, ainda mais que contém alguns contos que me agradam muito. Estou publicando aqui o seu conteúdo: cinco contos (ou assim eu os vejo) e seis aldravias (que publicarei todas juntas ao final). O dessa semana é o segundo conto. Espero que gostem.]]



[[Outra coisa. No dia 9 de agosto último, eu fui entrevistado por Adriana Mayrinck dentro do projeto Toca a Falar Disso coordenado por ela e pelo Emanuel Lomelino (ambos da In-Finita). A entrevista agora está disponível no YouTube, basta clicar aqui.]]



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

as nuvens


 

eles se cruzavam no corredor, final da tarde.

na terça, se beijaram.

na quinta, novo enrosco.

barulho, ela se assustou.

escuro de uma sala, ruído.

na sexta, ainda assustada, ela sugeriu um drive-in.

ele sugeriu um motel, mais confortável.

ela disse que ainda não,

ainda não queria fazer amor com ele.

ok, prometeu.

foram ao motel, ele respeitou, cumpriu.

se enroscaram, se acarinharam.

conversa furtiva.

ela seguiu ao banheiro, a porta translúcida.

ele a viu, fixou o olhar.

ela fingiu não perceber.

ela ainda de vestido, sapatos jogados ao canto.

ele ainda vestido, sapatos jogados ao canto.

viu a sombra dela se despir, no translúcido,

ligar o chuveiro,

quase que sentiu a água em seu corpo.

ele entendeu.

despiu-se, entrou no chuveiro.

ele a viu se banhar, corpo tão jovem.

ela não abaixou o seu olhar, mas sorriu.

o olhar só olhou seus olhos, mas só daquela vez.

viriam outras, mais confiantes.

amaram-se.

e muitas outras noites mais.

dia, soube sua opinião dele: “um cafa, você é!”

que fizera amor com ele por curiosidade.

“mas gostou?” ele perguntou.

“se não tivesse, nunca mais”, a resposta.

 

frequentemente discutiam, brigavam.

após mágoas mútuas, “tudo acabado”, ela dizia.

nunca mais vê-lo, nada mais ter com ele.

rogava pragas e completava:

“não se preocupe, as nuvens amortecem a queda...”

tão frequente quanto, voltavam a se entender.

reconciliação, amavam-se.

“foi curiosidade ou vontade?” ele perguntou.

resgatar o começo, resgatar o vivido.

imensa expectativa de não perdê-la.

curiosidade ou vontade?

“curiosidade... já te falei...”

“... falou...”

“... mas depois vontade, muita vontade...”

trocavam então sorrisos

e toques

e carícias

e gozos.

frequentemente brigavam...

não se preocupe, as nuvens amortecem a queda...

amor, amavam-se.

a ele, ela parecia bem ao seu lado.

olhar, toque, carícias e gozos, tudo indicava isso.

“curiosidade ou vontade?”

“curiosidade, você sabe...”

“... eu sei...”

silêncio incômodo, dessa vez nada mais que silêncio.

briga, mágoas, as nuvens,

a expectativa, o amor.

“curiosidade ou vontade?”

“curiosidade... você sabe...”

“sei...”

“... e vingança...”

o complemento veio rápido demais.

“vingança? como assim?”

“é, vingança... vingança... dela...”

“como assim, vingança? ela? quem?”

“... você sabe... ela...”

brigaram, algo mal resolvido.

ela se disse vingada, ele ficava confuso.

não se preocupe, as nuvens...

o incômodo durou, mas passou.

ela se reafirmou vingada, ele acreditou.

não faria sentido o contrário.

“curiosidade ou ...?”

“curiosidade... vingança... e...”

ela não lhe permitiu o final da frase.

“... só isso?”

silêncio absurdo, ele percebeu, se retraiu.

ela era assim, manipulava.

“as nuvens amortecem, não se preocupe!”

uma cama especial e inesperada.

um vinho antes, um colo, uma noite e a expectativa.

“curiosidade?”

“é...”

“só?”

silêncio.

“só?” ele insistiu.

“... não, tem mais...”

“mais o que? vingança?”

“... não, vamos mudar de assunto...”

dessa vez, ela o esnobou por mais tempo...

quase que não havia nuvens, queda livre com certeza.

tempo sem se verem.

por fim, ela o procurou,

já tinha se aborrecido demais por aí.

queria testar fazer amor com ele,

ver o que ainda sentia.

ele, surpreso,

ele, ansioso,

ele, muita vontade.

amaram-se.

gosto amargo em sua boca, dele.

“curiosidade?”

silêncio.

“me fala? o que foi?”

mais silêncio.

“me diz?”

“digo... medo!”

“medo? como assim?”

“medo... medo... você nunca sentiu?”

“sei o que é medo, mas medo do que? me diz...”

silêncio, confusão.

“me diz, por favor...”

“medo de você...” ela sem pena,

aos olhos úmidos dele.

“de mim? como assim? você teve medo de mim?”

silêncio, espanto, agonia.

“... medo... medo... não entendo...”

“medo de você me bater!”

“eu? te bater? de onde tirou isso?”

“... medo de você me prejudicar...”

“ãh? eu? prejudicar? parece que não me conhece...”

silêncio.

o excesso de nuvens talvez até ajude,

talvez amorteça a queda...

“curiosidade?”

“medo, já disse, tive medo...”

“e ainda sente?”

silêncio.

“... e ainda sente?”

lágrima escorrendo por seu rosto.

olhar firme o dela, lábios confiantes.

silêncio, e mais silêncio. e mais silêncio...

ela o esnobou pela última vez.

quer saber?

a última decepção que sobrou,

as nuvens não amortecem a queda.



[[Em 2019, além de ter publicado "outros tantos" pela PENALUX, também publiquei um pequeno livreto chamado "as nuvens amortecem a queda" pela Sangre Editorial dentro da coleção 32. Feita artesanalmente em Buenos Aires e com 32 folhas apenas, esse livreto é bem especial, ainda mais que contém alguns contos que me agradam muito. A partir dessa semana, vou publicar aqui o seu conteúdo: cinco contos (ou assim eu os vejo) e seis aldravias (que publicarei todas juntas ao final). Espero que gostem.]]