quinta-feira, 6 de agosto de 2020

as nuvens


 

eles se cruzavam no corredor, final da tarde.

na terça, se beijaram.

na quinta, novo enrosco.

barulho, ela se assustou.

escuro de uma sala, ruído.

na sexta, ainda assustada, ela sugeriu um drive-in.

ele sugeriu um motel, mais confortável.

ela disse que ainda não,

ainda não queria fazer amor com ele.

ok, prometeu.

foram ao motel, ele respeitou, cumpriu.

se enroscaram, se acarinharam.

conversa furtiva.

ela seguiu ao banheiro, a porta translúcida.

ele a viu, fixou o olhar.

ela fingiu não perceber.

ela ainda de vestido, sapatos jogados ao canto.

ele ainda vestido, sapatos jogados ao canto.

viu a sombra dela se despir, no translúcido,

ligar o chuveiro,

quase que sentiu a água em seu corpo.

ele entendeu.

despiu-se, entrou no chuveiro.

ele a viu se banhar, corpo tão jovem.

ela não abaixou o seu olhar, mas sorriu.

o olhar só olhou seus olhos, mas só daquela vez.

viriam outras, mais confiantes.

amaram-se.

e muitas outras noites mais.

dia, soube sua opinião dele: “um cafa, você é!”

que fizera amor com ele por curiosidade.

“mas gostou?” ele perguntou.

“se não tivesse, nunca mais”, a resposta.

 

frequentemente discutiam, brigavam.

após mágoas mútuas, “tudo acabado”, ela dizia.

nunca mais vê-lo, nada mais ter com ele.

rogava pragas e completava:

“não se preocupe, as nuvens amortecem a queda...”

tão frequente quanto, voltavam a se entender.

reconciliação, amavam-se.

“foi curiosidade ou vontade?” ele perguntou.

resgatar o começo, resgatar o vivido.

imensa expectativa de não perdê-la.

curiosidade ou vontade?

“curiosidade... já te falei...”

“... falou...”

“... mas depois vontade, muita vontade...”

trocavam então sorrisos

e toques

e carícias

e gozos.

frequentemente brigavam...

não se preocupe, as nuvens amortecem a queda...

amor, amavam-se.

a ele, ela parecia bem ao seu lado.

olhar, toque, carícias e gozos, tudo indicava isso.

“curiosidade ou vontade?”

“curiosidade, você sabe...”

“... eu sei...”

silêncio incômodo, dessa vez nada mais que silêncio.

briga, mágoas, as nuvens,

a expectativa, o amor.

“curiosidade ou vontade?”

“curiosidade... você sabe...”

“sei...”

“... e vingança...”

o complemento veio rápido demais.

“vingança? como assim?”

“é, vingança... vingança... dela...”

“como assim, vingança? ela? quem?”

“... você sabe... ela...”

brigaram, algo mal resolvido.

ela se disse vingada, ele ficava confuso.

não se preocupe, as nuvens...

o incômodo durou, mas passou.

ela se reafirmou vingada, ele acreditou.

não faria sentido o contrário.

“curiosidade ou ...?”

“curiosidade... vingança... e...”

ela não lhe permitiu o final da frase.

“... só isso?”

silêncio absurdo, ele percebeu, se retraiu.

ela era assim, manipulava.

“as nuvens amortecem, não se preocupe!”

uma cama especial e inesperada.

um vinho antes, um colo, uma noite e a expectativa.

“curiosidade?”

“é...”

“só?”

silêncio.

“só?” ele insistiu.

“... não, tem mais...”

“mais o que? vingança?”

“... não, vamos mudar de assunto...”

dessa vez, ela o esnobou por mais tempo...

quase que não havia nuvens, queda livre com certeza.

tempo sem se verem.

por fim, ela o procurou,

já tinha se aborrecido demais por aí.

queria testar fazer amor com ele,

ver o que ainda sentia.

ele, surpreso,

ele, ansioso,

ele, muita vontade.

amaram-se.

gosto amargo em sua boca, dele.

“curiosidade?”

silêncio.

“me fala? o que foi?”

mais silêncio.

“me diz?”

“digo... medo!”

“medo? como assim?”

“medo... medo... você nunca sentiu?”

“sei o que é medo, mas medo do que? me diz...”

silêncio, confusão.

“me diz, por favor...”

“medo de você...” ela sem pena,

aos olhos úmidos dele.

“de mim? como assim? você teve medo de mim?”

silêncio, espanto, agonia.

“... medo... medo... não entendo...”

“medo de você me bater!”

“eu? te bater? de onde tirou isso?”

“... medo de você me prejudicar...”

“ãh? eu? prejudicar? parece que não me conhece...”

silêncio.

o excesso de nuvens talvez até ajude,

talvez amorteça a queda...

“curiosidade?”

“medo, já disse, tive medo...”

“e ainda sente?”

silêncio.

“... e ainda sente?”

lágrima escorrendo por seu rosto.

olhar firme o dela, lábios confiantes.

silêncio, e mais silêncio. e mais silêncio...

ela o esnobou pela última vez.

quer saber?

a última decepção que sobrou,

as nuvens não amortecem a queda.



[[Em 2019, além de ter publicado "outros tantos" pela PENALUX, também publiquei um pequeno livreto chamado "as nuvens amortecem a queda" pela Sangre Editorial dentro da coleção 32. Feita artesanalmente em Buenos Aires e com 32 folhas apenas, esse livreto é bem especial, ainda mais que contém alguns contos que me agradam muito. A partir dessa semana, vou publicar aqui o seu conteúdo: cinco contos (ou assim eu os vejo) e seis aldravias (que publicarei todas juntas ao final). Espero que gostem.]]




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