quinta-feira, 30 de julho de 2020

Máscaras

            O corredor agora está cheio de máscaras mas nem sempre foi assim. Quando crianças, quadros de ancestrais e pinturas de artistas de ruas ornamentavam suas paredes e nos atormentavam enquanto, a contragosto de nossos pais, disputávamos corridas de patins, meu irmão e eu. Eufemismo, eu sempre perdia para ele, assim como ainda hoje perco, sempre.

            Hoje, na casa imensa, mas felizmente renovada, só vivemos minha filha adolescente e eu seu pai tardio e solteiro e isso graças às benevolências dos parentes ainda vivos mas que nunca aparecem para nos visitar. Herdeiros como eu, eles, vez ou outra, me recordam de suas participações na casa e no quanto são generosos em me deixarem viver aqui sem pagar aluguel.

            Sorrio de tudo isso e sigo vivendo. Em todo o caso, por precaução, mantenho uma autêntica carranca de metro e meio virada para a porta da rua. Dizem que afugenta os maus espíritos e ajuda na navegação tranquila.

E o corredor, agora, exibe parte de minha expressiva coleção de máscaras, cores, feitios e utilidades os mais variados possíveis.

            A primeira, lembro bem, comprei de uns índios no Peru, naquela viagem maluca que fiz até Machu Picchu. O índio velho e enrugado contou-me a história daquela máscara colorida e com chifres que me chamou a atenção tão logo eu a vi. Algo relacionado a uma antiquíssima festividade religiosa em que os participantes a vestiam para afugentar os maus fluidos e pedir a boa colheita que tanto necessitavam. Era uma máscara até que comum no grande mercado de Cusco mas aquela específica, o índio enrugado garantia, tinha sido usada pelo grande... (não insistam, não conseguiria lembrar ou mesmo repetir tal nome), ancestral de inúmeras décadas, talvez séculos atrás. Por isso, o preço que cobrou, mesmo depois da usual negociação comum naquelas bandas em que os valores caem em geral a um terço do inicial.

            Cobrou caro a primogênita máscara, quase todo o extra que tinha para a viagem foi-se naquela compra, mas eu precisava muito de algo que me recordasse para sempre essa  aventura. Tão logo cheguei ao hotel, ansioso, eu a vesti. O espelho refletiu, e ainda reflete nas vezes em que me atrevo a vesti-la, toda a minha esperança por boas colheitas. Elas ainda virão, tenho a certeza, mesmo me tornado mais e mais descrente a cada dia que vivo.

            Tempos depois, em um desses tais Guias Michelin lá estava a foto de uma máscara igual à que comprei ilustrando a história que ouvi do enrugado índio. Nunca soube se o guia tinha feito também o mesmo trajeto que eu e ouvido esse relato lá no mercado de Cusco ou se foi o índio que conheci que o lera no Michelin.

Tanto faz, na realidade. Nada se cria, tudo se reconta...

O que não tanto faz foi eu contar à minha pequena essa, e outras, histórias que acompanham as tantas máscaras agora pregadas e aparentemente inertes nas paredes da grande casa. Sou um colecionador sim, de máscaras e de suas histórias, encantam-me saber o que há por trás delas e dessa nossa eterna necessidade de ser algo que não se é.

Foi a pequena, porém, que desmascarou (se me permitem o abuso linguístico) meus desejos quanto a essa mania. Depois da enésima máscara que vestia para impressioná-la, ela me disse do alto de seus oito anos de então que eu era um pai diferente a cada máscara vestida.

- Então você tem centenas de pais diferentes – foi o que consegui responder.

- E eu gosto de cada um deles – seus olhinhos brilharam e os meus se umedeceram.

O fato é que depois daquela primogênita máscara peruana envolvi-me em uma busca alucinada e, a cada lugar que visitei e foram tantos por conta das viagens que minha profissão permitia, a cada lugar, exótico ou não, eu procurava em bazares, mercados ou mesmo em lojas para turistas, tudo que pudesse ser uma máscara. Pretendemos sempre ser algo distinto e a máscara nos permite isso, foi o que ouvi de um psicanalista uma vez. Um tanto quanto lugar comum, mas vá lá, serve para o gasto desse inofensivo relato.

Com o tempo, os quadros dos ancestrais e dos pintores de rua foram dando seus lugares às máscaras compradas aqui e ali. Tantas foram que as paredes do longo corredor de casa não foram suficientes e, hoje, elas estão por todas as partes, todos os cômodos, banheiros inclusive, nos observando a cada passo que damos, a cada gesto que insistimos em fazer, trazendo sorte ou não, impingindo suas expectativas positivas ou não, interferindo em nossos cotidianos.

Só de máscaras da fertilidade tenho uma centena e, por alguma razão, foram as que mais atraíram a curiosidade de uma jovem amiga que me visitou um dia. Uma coisa leva a outra e nos amamos aquela noite, vestidos cada um uma correspondente máscara da fertilidade. A dela, vindo do extremo oriente e a minha, asteca.

Não sem razão, a bebê nascida dessa exótica experiência traz em seus genes um misto de características que só se explica por essa combinação, quiçá esdrúxula, no momento de sua concepção.

A diferença de idades entre nós dois, minha amiga e eu, até justifica nossa precoce separação e a menina ficou morando comigo. Mesmo porque, um ano e pouco depois do nascimento, a mãe dela despencou do alto de um prédio junto ao namorado quando tentavam fazer um selfie aventureiro. No dia nublado, nem as nuvens amorteceram a queda dos dois.

Paciência, pude desfrutar do crescimento da pequena em sua plenitude. E, na medida em que ela crescia, fui introduzindo-a às máscaras, muitas das quais infantis, e por que não seriam? A cada dia, a cada tarde de férias passada naquela casa, escolhíamos algumas delas para vestir e brincar, inventar estórias e seguir vivendo nossas fantasias, pretendendo sermos seres distintos, entes imaginários.  E sigo buscando e comprando máscaras por onde passo, agora com novas motivações. Estão sendo sim os melhores anos de minha vida.

            Se pudesse, sairia à rua com uma máscara apropriada a meus sentimentos do dia, uma que combinasse com a maneira que eu gostasse de ser visto naquele dia, e máscaras não faltariam para tal variedade de humor. A cada dia, todos veriam um novo eu, imagem refletida de porcelana, papel ou até mesmo plástico, que variedades não faltam em minha coleção.

            Hoje, eu retornei de mais uma viagem, sempre me prometo que será a última, cansado que estou. Chego em casa escutando o silêncio da solidão e penso que minha pequena deve ter saído. Malas ao chão e ouço um zumbido vindo da sala ao final do corredor, convencendo-me do contrário, ela está sim em casa.

Percorro-o mais uma vez, vigiado por tantas histórias de esperanças penduradas em suas paredes até chegar aonde se encontra a minha adolescente filha. Ela testa um tal de VR, virtual reality. Eu a vejo atrás daqueles óculos que mais parecem um equipamento de mergulho e isso nada diz sobre ela. Ela sim me olha e, em uma realidade transformada, deve ver um pai diferente, moldado agora à sua vontade. Quase que não vejo o seu pequeno sorriso enquanto fico parado à porta. Mas sinto que não faria efeito algum vestir agora qualquer das máscaras que possuo, impossível mascarar minha imagem frente ao que aquele aparelho diz à minha filha.

            Eu me submeto então a essa nova realidade e resigno-me.



[[Escrevi esse conto para a coletânea Ideários organizada pelo poeta português Alvaro Giesta e publicada em 2019. Foi uma alegria participar dela, em ótima companhia literária.]]

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