Sempre que o calendário alcança o zero em seu último dígito surge a discussão se mudamos de década ou não. Ou não estive muito atento a essas coisas antes, ou essa discussão não existia de fato, mas acho que foi na passagem de 1999 a 2000 que ela tomou mais peso, pois trouxe consigo a grande questão de estarmos ou não mudando de séculos naquele momento. (Diga-se de passagem, o Thio Therezo nunca se conformou com o tal entusiasmo, à época, de se chegar ao ano 2000, afinal, numericamente falando, os dois números, 1999 e 2000, tinham mais em comum do que a maioria das passagens de ano. Ambos números compartilhavam o mesmo padrão: começavam com um dígito seguido por outro dígito que se repetiria três vezes. Vai entender o porquê de tanto auê!)
Mas a
questão da mudança de década e de século é que entusiasma as pessoas. E as
frustram também, pois 2000 ainda não era o século vinte e um, assim como a passagem de 2019 para 2020 não é
mudança de década, a tal década de 20 que só começará ao se iniciar o ano de
2021. Em todo o caso, é uma das tais exatidões que só empobrecem a vida, vai
entender!
Mas, por que
menciono isso? Pode ser besteira nessas épocas de pandemia e em tempos de
mentiras generalizadas, mas o ponto é que na primeira vez que ouvi tal
discussão eu percebi um repentino envelhecimento de década em meu corpo. Eu,
que sempre dizia que tinha nascido na década de 60, repentinamente me vi jogado
e abandonado, cruel e injustamente diga-se de passagem, na década de 50... Realmente,
isso não é justo! Não bastava o passar dos anos, o surgimento das dores, o
esquecimento das palavras, agora mais essa? Perder uma década assim sem mais
nem menos, por conta de uma besteirinha? Confesso que nem pude dormir direito no
dia da tal descoberta e, dia seguinte, cheguei a comentar isso com o Thio
Therezo. Após alguns minutos de reflexão, ele me sugeriu uma solução que
comecei a adotar desde então: nasci nos anos 60, já que não poderia
dizer mais que nasci na década de 60, mas isso, confesso, nunca me satisfez
totalmente.
Acontece que
outro dia mesmo o Thio, impaciente, antecipou-me o seu presente de aniversário desse
ano e surpreendi-me com ele. Sim, posso voltar a dizer novamente que nasci na
década de 60!
Foi assim.
Ano passado, tempos pré-pandêmicos, o Thio visitou o Vaticano. Muitas foram as
razões para tal visita. Por um lado, o Thio queria rever o Frei Chico, que era
assim como ele se referia ao Papa atual nos bons tempos da juventude de ambos.
É certo que, na primeira vez que se viram desde a escolha papal, o Thio usou o
tratamento Sua Santidade o que gerou uma estrondosa gargalhada
compartilhada entre ambos de tão estranho isso soou naquele momento. Desde
então, sempre que se encontravam em um ambiente mais informal, chamavam-se mutuamente
de Frei Chico e Thiozinho, trazendo assim e momentaneamente um tempo passado
que tanto os agradavam.
Mas não só
para revê-lo e relembrar velhos causos que o Thio visitou o Frei Chico. Ele
queria consultar alguns documentos na famosa Biblioteca do Vaticano e
aproveitou que passava por perto (o perto sendo a Europa) para tal. Claro deve
ficar ao leitor que, para desespero dos estressados assessores papais, antes que
pudesse fazer o pedido para visitar a Biblioteca (pedido pró-forma, o Thio
sabia, pois o velho Frei Chico certamente o autorizaria), foram horas de
conversas e risadas. Se, por um lado, o Thio aproveitou a ocasião para
pedir-lhe conselhos espirituais, por outro, a Sua Santidade queria ouvir a
opinião do Thio sobre um probleminha que ele estava tendo com o seu inoportuno
antecessor, o tal pastor alemão. Frei Chico bem sabia dos entreveros que o
Thiozinho tivera no papado anterior, que inclusive o levara a se afastar do
Vaticano por alguns anos, e queria dividir suas análises a respeito. Foi quase
como se os dois estivessem em um confessionário trocando papéis frequentemente:
o que lá se falou, lá ficou.
Olha eu aqui
me desviando novamente do assunto, deve ser a tal da idade chegando, acúmulo de
coisas para contar leva-nos a essa confusão e dispersão. Deixemos essa questão
interpapais de lado e voltemos ao assunto principal. Em certo momento, os
desesperados assessores interromperam a conversa dos dois velhos amigos pois o
Papa estava atrasado para a famosa benção semanal, já a praça estava cheia e
coisa e tal. A caminho para a janela papal, o Thio contou ao amigo sua
necessidade de consulta a antiquíssimos documentos da Biblioteca e foi prontamente
autorizado.
O Papa ainda tentou convencer
seus assessores de que não custava nada a ele acompanhar o Thio até a Biblioteca
e mostrar-lhe os arquivos. Mas, o trabalho obriga, não conseguiu tal feito pois
os assessores o pressionaram novamente e, ao invés de acompanhar o Thio, ele seguiu
para a benção. Como o Thio já sabia de cor o caminho, Frei Chico deixou-o ir
sozinho não sem antes fazê-lo prometer que jantariam juntos naquela noite. O
Vaticano havia recebido justamente no dia anterior uma remessa do famoso vinho Latte
Amorevole feito pelas freiras do convento do norte da Itália e eles precisavam
abrir uma garrafa e compartir um gole que fosse antes do Thio retornar ao
Brasil.
E lá foi o
Thio consultar os documentos referentes à bula Inter gravíssimas do Papa
Gregório XIII que tratava do que seria depois chamado de calendário gregoriano.
Todos sabemos que o calendário anterior levava a pequenos desvios que vinham se
acumulando ao longo dos anos e séculos. Dada a usual imperfeição matemática
frente à realidade, ajustes sempre foram necessários independentemente do
calendário proposto. O calendário gregoriano tampouco era perfeito, mas
minimizava sobremaneira os erros. Tudo por conta dos 317 ajustes que constam na
famosa bula, a maioria deles quase irrelevantes se os olharmos do ponto de
vista de nosso corrido e estressante cotidiano. Claro que todos se lembram dos ajustes
que estabelecem os anos bissextos e, pela recente aplicação, do fato de que os
anos múltiplos de 400 não serem bissextos, apesar de serem múltiplos de quatro.
Outros ajustes passam mais despercebidos e era isso que o Thio queria checar.
Seguramente, já tinha lido aquela bula um par de vezes antes, mas a idade, sempre
a idade, o impedia de lembrar de todas as palavras lidas ao longo da vida.
Mesmo com o
seu latim meio enferrujado (ainda mais o latim escrito no século XVI), o Thio
conseguiu achar o que queria. Pediu para fazer uma cópia do documento para me
trazer (não conseguiu, na pressa em que estava, um copista para tal e trouxe
uma fotocópia colorida mesmo). Como ainda teria um par de horas antes do jantar
com o amigo, ele aproveitou que estava naquele paraíso bibliográfico e fez
outras consultas em documentos da mesma época, estava finalizando uma pequena
biografia do Gregório XIII e precisa checar alguns dados, desfazer mitos, essas
coisas.
O presente
que o Thio me deu nesse dois de julho foi um quadro emoldurando a parte do
texto da bula papal que menciona um dos ajustes feitos no calendário gregoriano.
Vou fazer uma tradução livre aqui: “por conta de ajustes estritamente necessários,
é estabelecido que os anos múltiplos de 1960 devem ser considerados como
inícios de décadas, ao contrário de todos os outros finalizando com o dígito
zero.”
Com isso,
rejuvenescido de novo, posso dizer com orgulho que nasci na década de 60! Mesmo
com os vários desvios de caminho que ela traz, há de se considerar como sendo a
melhor década desses, digamos assim, últimos séculos...
Obrigado a todos pelos parabéns!
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