quinta-feira, 2 de julho de 2020

Anos 60, dois de julho

          Sempre que o calendário alcança o zero em seu último dígito surge a discussão se mudamos de década ou não. Ou não estive muito atento a essas coisas antes, ou essa discussão não existia de fato, mas acho que foi na passagem de 1999 a 2000 que ela tomou mais peso, pois trouxe consigo a grande questão de estarmos ou não mudando de séculos naquele momento. (Diga-se de passagem, o Thio Therezo nunca se conformou com o tal entusiasmo, à época, de se chegar ao ano 2000, afinal, numericamente falando, os dois números, 1999 e 2000, tinham mais em comum do que a maioria das passagens de ano. Ambos números compartilhavam o mesmo padrão: começavam com um dígito seguido por outro dígito que se repetiria três vezes. Vai entender o porquê de tanto auê!)

          Mas a questão da mudança de década e de século é que entusiasma as pessoas. E as frustram também, pois 2000 ainda não era o século vinte e um,  assim como a passagem de 2019 para 2020 não é mudança de década, a tal década de 20 que só começará ao se iniciar o ano de 2021. Em todo o caso, é uma das tais exatidões que só empobrecem a vida, vai entender!

          Mas, por que menciono isso? Pode ser besteira nessas épocas de pandemia e em tempos de mentiras generalizadas, mas o ponto é que na primeira vez que ouvi tal discussão eu percebi um repentino envelhecimento de década em meu corpo. Eu, que sempre dizia que tinha nascido na década de 60, repentinamente me vi jogado e abandonado, cruel e injustamente diga-se de passagem, na década de 50... Realmente, isso não é justo! Não bastava o passar dos anos, o surgimento das dores, o esquecimento das palavras, agora mais essa? Perder uma década assim sem mais nem menos, por conta de uma besteirinha? Confesso que nem pude dormir direito no dia da tal descoberta e, dia seguinte, cheguei a comentar isso com o Thio Therezo. Após alguns minutos de reflexão, ele me sugeriu uma solução que comecei a adotar desde então: nasci nos anos 60, já que não poderia dizer mais que nasci na década de 60, mas isso, confesso, nunca me satisfez totalmente.

          Acontece que outro dia mesmo o Thio, impaciente, antecipou-me o seu presente de aniversário desse ano e surpreendi-me com ele. Sim, posso voltar a dizer novamente que nasci na década de 60!

          Foi assim. Ano passado, tempos pré-pandêmicos, o Thio visitou o Vaticano. Muitas foram as razões para tal visita. Por um lado, o Thio queria rever o Frei Chico, que era assim como ele se referia ao Papa atual nos bons tempos da juventude de ambos. É certo que, na primeira vez que se viram desde a escolha papal, o Thio usou o tratamento Sua Santidade o que gerou uma estrondosa gargalhada compartilhada entre ambos de tão estranho isso soou naquele momento. Desde então, sempre que se encontravam em um ambiente mais informal, chamavam-se mutuamente de Frei Chico e Thiozinho, trazendo assim e momentaneamente um tempo passado que tanto os agradavam.

          Mas não só para revê-lo e relembrar velhos causos que o Thio visitou o Frei Chico. Ele queria consultar alguns documentos na famosa Biblioteca do Vaticano e aproveitou que passava por perto (o perto sendo a Europa) para tal. Claro deve ficar ao leitor que, para desespero dos estressados assessores papais, antes que pudesse fazer o pedido para visitar a Biblioteca (pedido pró-forma, o Thio sabia, pois o velho Frei Chico certamente o autorizaria), foram horas de conversas e risadas. Se, por um lado, o Thio aproveitou a ocasião para pedir-lhe conselhos espirituais, por outro, a Sua Santidade queria ouvir a opinião do Thio sobre um probleminha que ele estava tendo com o seu inoportuno antecessor, o tal pastor alemão. Frei Chico bem sabia dos entreveros que o Thiozinho tivera no papado anterior, que inclusive o levara a se afastar do Vaticano por alguns anos, e queria dividir suas análises a respeito. Foi quase como se os dois estivessem em um confessionário trocando papéis frequentemente: o que lá se falou, lá ficou.

          Olha eu aqui me desviando novamente do assunto, deve ser a tal da idade chegando, acúmulo de coisas para contar leva-nos a essa confusão e dispersão. Deixemos essa questão interpapais de lado e voltemos ao assunto principal. Em certo momento, os desesperados assessores interromperam a conversa dos dois velhos amigos pois o Papa estava atrasado para a famosa benção semanal, já a praça estava cheia e coisa e tal. A caminho para a janela papal, o Thio contou ao amigo sua necessidade de consulta a antiquíssimos documentos da Biblioteca e foi prontamente autorizado.

O Papa ainda tentou convencer seus assessores de que não custava nada a ele acompanhar o Thio até a Biblioteca e mostrar-lhe os arquivos. Mas, o trabalho obriga, não conseguiu tal feito pois os assessores o pressionaram novamente e, ao invés de acompanhar o Thio, ele seguiu para a benção. Como o Thio já sabia de cor o caminho, Frei Chico deixou-o ir sozinho não sem antes fazê-lo prometer que jantariam juntos naquela noite. O Vaticano havia recebido justamente no dia anterior uma remessa do famoso vinho Latte Amorevole feito pelas freiras do convento do norte da Itália e eles precisavam abrir uma garrafa e compartir um gole que fosse antes do Thio retornar ao Brasil.

          E lá foi o Thio consultar os documentos referentes à bula Inter gravíssimas do Papa Gregório XIII que tratava do que seria depois chamado de calendário gregoriano. Todos sabemos que o calendário anterior levava a pequenos desvios que vinham se acumulando ao longo dos anos e séculos. Dada a usual imperfeição matemática frente à realidade, ajustes sempre foram necessários independentemente do calendário proposto. O calendário gregoriano tampouco era perfeito, mas minimizava sobremaneira os erros. Tudo por conta dos 317 ajustes que constam na famosa bula, a maioria deles quase irrelevantes se os olharmos do ponto de vista de nosso corrido e estressante cotidiano. Claro que todos se lembram dos ajustes que estabelecem os anos bissextos e, pela recente aplicação, do fato de que os anos múltiplos de 400 não serem bissextos, apesar de serem múltiplos de quatro. Outros ajustes passam mais despercebidos e era isso que o Thio queria checar. Seguramente, já tinha lido aquela bula um par de vezes antes, mas a idade, sempre a idade, o impedia de lembrar de todas as palavras lidas ao longo da vida.

          Mesmo com o seu latim meio enferrujado (ainda mais o latim escrito no século XVI), o Thio conseguiu achar o que queria. Pediu para fazer uma cópia do documento para me trazer (não conseguiu, na pressa em que estava, um copista para tal e trouxe uma fotocópia colorida mesmo). Como ainda teria um par de horas antes do jantar com o amigo, ele aproveitou que estava naquele paraíso bibliográfico e fez outras consultas em documentos da mesma época, estava finalizando uma pequena biografia do Gregório XIII e precisa checar alguns dados, desfazer mitos, essas coisas.

          O presente que o Thio me deu nesse dois de julho foi um quadro emoldurando a parte do texto da bula papal que menciona um dos ajustes feitos no calendário gregoriano. Vou fazer uma tradução livre aqui: “por conta de ajustes estritamente necessários, é estabelecido que os anos múltiplos de 1960 devem ser considerados como inícios de décadas, ao contrário de todos os outros finalizando com o dígito zero.

          Com isso, rejuvenescido de novo, posso dizer com orgulho que nasci na década de 60! Mesmo com os vários desvios de caminho que ela traz, há de se considerar como sendo a melhor década desses, digamos assim, últimos séculos...

          Obrigado a todos pelos parabéns!


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