Algumas
semanas atrás, eu mencionei a atuação do Thio Therezo como chef de cozinha
e muitos leitores ficaram curiosos sobre os bastidores por trás da história das
quatro estrelas que seu restaurante recebeu no Guia Michelin.
O Thio já
era um chef famoso quando isso aconteceu, livros seus de culinária já
eram consolidados best sellers da área. Títulos como “As insanas
ousadias do senhor cozinheiro e suas cruéis assistentes” ou “Carnificinas
e veganismos” não só se tornaram clássicos da auto-ficção, onde parte de
sua infância é contada intercalada com receitas inovadoras, como também um legítimo
percursor da culinária saudável tão em moda nesses dias confusos. Ambos livros
foram ganhadores de prêmios Jabuti e ambos, aliás, ganhadores em três
categorias cada (as suas ilustrações, obras primas do próprio Thio, foram consideradas
imbatíveis nos anos em que disputaram o prêmio).
Aliás, tantos Jabutis ele
ganhou ao longo de sua vida, não só por seus escritos de culinária mas também
em inúmeras outras áreas, que ele em um dado momento até criou uma imbatível sopa
de Jabuti, carro chefe de um de seus restaurantes por muito tempo. Mas isso
é outra história, cá estou eu desviando-me novamente do assunto principal.
Pois bem, a história da quarta
estrela do Michelin começou depois do concurso internacional de Comida
Minimalista que o Thio ganhou (o famoso IMF- International Minimalist Food
Contest). O seu prato, chamado de Repasso Bandeirantes, não só, por
decisão unânime, abocanhou (esse é o verbo certo nessas horas) o primeiro
prêmio como também fez o maior sucesso ao longo dos anos que a ele se seguiram.
O prato?
Minimalista como requeriam as regras do concurso, o prato consistia de um
feijão carioquinha, sim, um grão de feijão, combinado com três grãos de arroz
branco, um grama de paçoca de carne e espuma de ovo frito. O diferencial, era
só provar para perceber, estava no extravagante e ultra secreto tempero do
feijão. Nada de extraordinário quanto ao arroz e mesmo a paçoca era uma simples
paçoca bandeirantes, tradicional como o que nossa avó fazia e que mamãe, irmã
do Thio, repetia em sua plenitude (coloquei essa receita na semana passada aqui
mesmo no blog). Quanto à espuma de ovo frito, uma daquelas usuais provocações
do Thio aos grandes chefs espanhóis.
Havia algo
de mágico na disposição dos alimentos no prato. Antes de mais nada, um prato
elipsoidal onde o feijão deveria ocupar um de seus focos (o Thio, aliás, mandou
um de seus mais diletos discípulos fabricar tais pratos, tendo entregue a ele
as medidas entres os focos e os tamanhos de seus eixos, tudo equilibradamente
proporcional). Bom, o feijão não deveria ser disposto nesse foco de forma
aleatória, deveria repousar lá formando um ângulo de 34,7º com relação ao eixo
principal. Os três grãos de arroz têm que estar dispostos de tal forma que
aparentassem aleatórios, mas isso se constituía como uma mera ilusão de ótica, pois
nada é essencialmente aleatório nesse mundão de deus. Eles deveriam sim, estar dispersos
no prato mas de tal sorte que suas distâncias ao feijão mantivessem uma exata proporção
áurea. Claro que os arrozes devem todos estar com seus eixos principais virados
para o centro do feijão. Dentro desse quadrilátero imaginário formado pelos
arrozes e o feijão estariam a paçoca e a espuma de ovo frito, esses sim
dispostos com uma total liberdade dentro desses limites (o Thio odiava o
autoritarismo culinário, por mais paradoxal que isso possa parecer ao se ler a
descrição acima). Apesar de toda essa tecnicalidade, o visual resultante era,
diziam, magnífico. Eu pessoalmente não tive a oportunidade de ver,
infelizmente.
Em todo o
caso, para ilustrar esse texto, fui atrás de uma imagem do prato vencedor e até
apelei para o Thio. Apesar do tempo que se passou e também das inúmeras
decepções que o abateram à época, o Thio ainda se recorda bem da história por
trás desse prato. Movidos pela inveja usual que muitos têm dos vencedores,
todas as imagens foram sendo destruídas por seus inimigos, em uma clara
tentativa de revisionismo histórico. Não só as imagens, mas também a reputação
do Thio era massacrada a partir do que a gente chamaria, nos dias atuais, de fake
news.
Era uma época ainda sem
internet, e nem mesmo as fotografias tiradas pelo Thio sobreviveram, visto que
sua máquina fotográfica, contendo o filme ainda a ser revelado, desapareceu do
hotel onde ele estava hospedado. Ganho o prêmio, houve um massacre midiático ao
Thio e seu restaurante patrocinado por uma dita elite culinária. Há quem diga
que haveria por trás disso uma preocupação econômica, aliás como tudo o que
move nossos dias. Se os pratos fossem minimalistas, haveria perdas para os
produtores de comida, tão acostumados em nossa sociedade ao desperdício. Com
essa motivação ou não, o ponto é que, baseados em fofocas, muitos ataques injustos
mas constantes foram direcionados ao Thio.
Por um tempo, por conta desse
prêmio e pela consequente quarta estrela concedida pelo Michelin, o restaurante
sobreviveu e bem. A propósito, a quarta estrela, raridade na trajetória deste
guia, era o mero reconhecimento da suprema qualidade que o restaurante do Thio
adquirira ao longo de anos de vida. Lembro-me bem, apesar de pequeno, da festa
que os promotores do guia fizeram quando da entrega.
Mas, vivemos
em uma comunidade onde informações distorcidas, desprovidas totalmente de bases
reais, de tanto serem repetidas por certos meios, acabam influindo a opinião
pública. Tanto bateram no Thio que, ao final, o próprio Guia Michelin rebaixou
a classificação para três estrelas. Houve comemoração generalizada e, ironia, o
único restaurante brasileiro com três estrelas do Michelin era considerado nos
meios jornalísticos como um perdedor, um perdedor de uma quarta estrela.
Nunca
ninguém tinha presenciado tal massacre midiático baseado em evidentes e
manipuladas falsidades. Claro que, muito tempo depois, na vizinha República de
Hygina, um massacre de iguais proporções levou a um golpe contra uma presidenta
legitimamente eleita, mas menciono isso apenas a nível de comparação, longe de
mim querer entrar em tais detalhes nesses tempos atuais.
O
restaurante foi alvo de ataques físicos e, para preservar os seus fiéis
clientes, o Thio acabou encerrando sua aventura culinária de então. Ele ainda,
para nosso imenso deleite, prepara suas receitas maravilhosas. Nada de
minimalista, no entanto, a melhor culinária do Thio baseia-se em fartura de
produtos naturais e um tempero que além de saboroso preenche a casa com sua
generosa fragrância.
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