quinta-feira, 30 de abril de 2020

Efemeridades



          Abro os olhos, mais um dia. E vejo os seus, oblíquos e claros, a me encararem, sorriso amplo esperando por mim. Você parece não envelhecer, o eterno brilho que deslumbra a tantos, ao contrário de mim que sinto as dores desses anos todos. Digo um expansivo bom dia e você só reforça seu belo sorriso. Sorrio de volta, não esperaria nada além disso nessa hora do dia.
          Sento-me na cama, mãos sobre o rosto, mais um dia, mais um, é preciso se acostumar com essa nova rotina. Sei lá quanto tempo fico assim, parado e pensativo, mãos sobre o rosto, sentado. Só sei que foi o suficiente para perceber a já presente luminosidade no quarto. Que horas seriam? Busco o celular no criado-mudo ao lado da cama e lá estamos nós, selfie frente ao prateado Rio Tejo de final de dia, nossa foto favorita. Quanto tempo isso? Sei lá, você parece não envelhecer, só eu. Onde teria parado essa camisa que então vestia?
          Distrai-me olhar para ti, mas logo encaro o quarto e já não te vejo por lá, o reflexo me faz virar e olhar para a porta como se a buscar ainda um rabicho de ti se distanciando naquele passo ligeiro que te é usual, vai preparar o café, não é? O meu com pouco açúcar, resmungo esperando ser obedecido desta vez. É a diabete, tu sabes, ou melhor, mesmo antes da diabete eu já achava teu café muito doce, mania essa que tens de coar o pó junto ao açúcar, tudo misturado. Lembras? Faz tanto tempo que nos conhecemos, tempo demais para tão poucas desavenças, como essa do café com açúcar. Foram mais do que poucas desavenças? Achas? Tá, concedo, foram mais do que poucas, mas o que importa isso agora?
Desavenças, mas também tantos segredos compartilhados, explícitos ou não, imagens reais ou sonhadas, lembranças, viagens...
Nós nos conhecemos naquela ida à fazenda da tia, não foi? Tempão isso, verão, né? Primos distantes, mas nem tanto assim que você demorou para me permitir um beijo. Sei, sei, eu era afobado, nem precisa dizer que eu sei. Ainda bem que o verão foi longo o suficiente para tal. Beijo esquisito, molhado, você ainda abria muito a boca e eu não sabia o que fazer com a língua. Você também deve estar rindo dessas lembranças, né? Perdoemos, éramos para lá de jovens, quase crianças.
Hora de levantar, cara!
          Busco o outro banheiro para me lavar, esse apartamento tem estado meio vazio esses dias. Sou mais ágil nessas coisas e logo estou na sala olhando pela janela, tempo voando feito essa andorinha que me distrai e me distrai, bom viver no sétimo andar, perto do parque. Deve ser domingo, tudo fechado. Não, é quinta, sim quinta pois ontem foi quarta e amanhã será sexta. Quinta, definitivamente, e logo nossos filhos deixarão na porta da frente algumas compras, ouviremos um toque de campainha, disseram que devemos esperar eles saírem para só então abrir a porta. Desinfetar tudo e pronto, mais uma semana de sobrevivência garantida. Quem imaginou na vida que seria preciso passar álcool em gel nos pacotes de bolachas Água e Sal? A propósito, não se esqueça de colocar na lista da próxima semana, mais bolachas.
          E mais alquingel, como se diz por aqui... rio, rimos, como é bom te ver rir, com a cabeça jogada para trás, dentes aparecendo, cabelos esvoaçantes e tudo imóvel, como se o tempo não estivesse passando. Não passa para ti, invejo...
Sim, teu riso preenche a sala, desde o canto ao lado do sofá até o outro extremo junto à porta da cozinha. Esse café sai ou não sai?
          Já deveriam ter chegado, nossos filhos demoram por demais hoje e me distraio olhando as fotos no aparador da sala. Lá estão vocês, nós quatro, a que nunca envelhece, nosso casal de filhos ainda sem netos e eu ainda com cabelo. Aproveito e conto um pouco de meus dias por aqui, não que eles estejam muito distintos dos do passado, mas vocês agora parecem me ouvir com mais atenção, talvez os netos tenham mostrado como a vida é de fato, talvez as perdas já tenham se acumulado a ponto de perceber que nem tudo é prazeroso como na praia em que estamos na foto, tomem cuidado com as ondas, filhos, aqui o mar é traiçoeiro. A casa alugada naquele verão já nem existe mais, a vida mudou desde então, cuidado com as ondas, filhos, é preciso ouvir os mais velhos, ouçam sua mãe ao menos se preferem me ignorar. Pé de areia, vigiamos, de longe, os dois entrarem na água, ainda meio adolescentes em busca da vida, qual nós já fomos um dia, conversamos debaixo do guarda-sol, relembramos o susto do ano anterior, por isso esse cuidado todo. Filhos, obedeçam, não se lembram de como foi difícil aquelas noites no hospital depois do acidente? Sorrimos agora, fora só um susto, mas não queremos de novo, né? Cuidado, filhos, o mar traiçoeiro... A foto me relembra a alegria daquele verão, do mar, da praia, de uma vida passada em um tempo que parecia não passar.
          Mas susto mesmo foi com o senhor, né pai? Sabemos que essa calma com que se mostra agora na parede oposta, olhar tranquilo, sorriso maroto, é, nada disso, calma, tranquilidade ou marotice, pertenceu àquele fatídico dia do enfarte, nem quero pensar! Não devo, não quero...
          A campainha toca e eu grito em direção à cozinha: pode deixar que eu atendo. Ou não atendo, são eles, devo esperar que coloquem as compras na porta e só então abrir. Quem virá hoje? Ela ou ele? Vou até o olho mágico, nada me impede de tentar ver quem era, mas mal percebo a porta do elevador se fechar. Foi ela, com a neta, não foi? Ao menos pareceu, ou imaginei, ou esperei que fosse já que semana passada foi seu irmão mais velho. Tento confirmar com você, não consigo uma resposta sequer, mas tampouco você viu, né?
          Obrigado, grito sem esperança de ser ouvido a quem quer que tenha vindo hoje trazer nossa cesta semanal. Sei que vocês estão também muito atarefados, o tal do home office, as aulas à distância para as crianças, e sei que ainda não me perdoaram, sei que devo muitos pedidos de desculpas, sei que minha rabugice ofendeu muito vocês, mas não dá para relevar um pouco isso, não? Aparecer só para um alô, quanto tempo isso iria durar, nem atrapalha. É preciso insistir nisso por todo esse tempo? Por que vocês não me visitam mais? Não sabem como foi tudo tão difícil naquela época? Minha neta, a mais velha, mostra seu sorriso desdentado, vocês deveriam me perdoar como ela o fez, não é querida? Ela me olha com o olhar da avó e com a sua mesma convicção de que nada deve ser eterno, nem mesmo a raiva. Não queria ver ninguém naqueles dias, vocês não conseguem me entender mesmo? Não que as crianças me aborrecessem, nunca disse isso, ou não dessa forma, só quis dizer o que me incomodava realmente, mas errei no tom, vocês me entenderam errado, tão errado e aí, de pirraça, só pode ser de pirraça, não as trouxeram mais aqui para ver o avô.
          Nenhuma mágoa deveria ser eterna, entendam isso.
Tenho saudades, encaro a foto da escadinha, netos, netas e eu lado a lado em ordem cronológica, quando foi mesmo que tiramos isso? Estão todos felizes, sorriem, mas minha cara era de susto, não de contrariedade, entendam.
          O que não falta por aqui é foto, pregadas nas paredes ou em cima dos móveis, de tudo quanto é lugar onde estivemos, de todos nós, juntos ou separados. De todos, sem distinção, não há preferidos por aqui, reafirmo isso em voz bem alta enquanto dou banhos em pacotes de comida. Sei que você fará silêncio nessas horas, sim é preciso nos concentrarmos nos afazeres, uma bobeada e basta, estaremos contaminados. Grupo de risco, sei. E sei também que não gosta de discutir nada disso, mas para mim é importante dizer. Ficará muda no almoço que mais uma vez improvisarei enquanto eu insistir em lhe convencer do suposto mal entendido entre eles e eu. Me deixará sozinho vendo o final do jornal do meio dia, lavando a louça, cochilando no sofá de tanto esforço feito, fazendo minhas palavras cruzadas diárias, lendo aquele livro pela enésima vez, gosto dele, o que é que tem relê-lo uma vez mais? Tão pouco há a se fazer nesses longos dias. Pare de me olhar assim!
          Quando me dou conta, escuro, noite, o panelaço do dia me acorda, vou à janela, preciso comer algo, bem que você poderia ter me avisado que dormi tanto, encaro sua cara fingidamente carrancuda. Ou debochada, sei lá, são tantas caras que me divirto só de olhá-las. Mas sei que no meio de tantas caras apilhadas lado a lado no móvel da TV só você me aguentou até o final, só você ainda sorri para mim quando eu preciso de um apoio, eterno sorriso que não parece envelhecer nunca.
          Sim, os fantasmas ainda me contestam rudemente, agridem sem dó, mas você não, sinto seu respeitoso silêncio dia após dia, o silêncio de quem sente carinho, de quem perdoa. Ou me engano?


São Paulo, quarentena de 2020



quinta-feira, 23 de abril de 2020

iba áles, dezoito


          A menina e sua mãe, contrariadas por terem que estar ali naquele momento, passaram sem se deterem um segundo que fosse pelo cartaz anunciando a palestra do novo ministro da saúde da República de Hygina. Demorou pouco para começar a falação, pois mal elas terem sentado lá no fundão do auditório um sonolento apresentador guiado por um discreto ponto de orelha introduziu o palestrante da noite. Palmas protocolares precederam a fala:
          - Iba áles a todos!!!
          - Iba áles – responderam os presentes em um dessincronizado uníssono.
          - Desde que fui convidado pelo nosso grande chefe para assumir esse ministério, meu único pensamento foi o de maximalizar os recursos financeiros destinados à saúde. Como vocês sabem, sou um dos fundadores da organização social NRhealthcare, uma organização sem fins lucrativos...
          Gargalhadas generalizadas. Até o palestrante riu!
          - Caros, a organização é de fato sem fins lucrativos, mas isso não quer dizer que seus fundadores ou dirigentes não tenham o lucro como principal meta, são coisas totalmente diferentes... Pois bem, o ponto é que um dos nossos principais trabalhos nessa organização é o de otimizar os recursos destinados para o sistema de saúde visto que eles são gastos a fundo perdido, gastos inúteis como se diz no jargão lá de casa, visto que todos iremos morrer um dia. É claro que, dada a complexidade econômica das relações na sociedade, precisamos sim fazer esses gastos. O nosso grande chefe foi sensível a essa questão e contratou os nossos serviços sem licitação, utilizando-se de suas prerrogativas nesses tempos de emergência.
          Pequena pausa, pigarreios e um gole de água. O novo ministro continuou então a sua fala.
          - Pois bem, o sistema de saúde tem que estar preparado para fazer escolhas o tempo todo. É o velho dilema entre salvar um idoso ou salvar um jovem, mas aprofundado e estendido a outros patamares. Pode parecer muito romântica essa ideia de que a vida de todos é igual, mas ponderemos, voltando ao exemplo clássico, o que vale mais? A vida de um idoso, não gosto de usar essa palavra mas vá lá, inútil ou a de um jovem produtivo?
          - Mãe, o vô não é inútil, né?
          - Claro que não, filha, claro que não...
          - Então por que o moço com cara de fantasma quer que ele morra?
          A mãe olhou a filha sem saber o que dizer.
          - Mãe, eu gosto muito do vô!
          - Eu também, filha, eu também e vamos cuidar bem dele se ele precisar, tá?
          Nessa hora, a mãe viu que um bedel a olhava com cara de desaprovação, deveriam estar prestando atenção à palestra e não proseando em paralelo.
          - Mas esse dilema idoso versus jovem sempre me incomodou se posto dessa maneira simplista e vejo que incomoda a muita gente por aqui também. Porque o dilema idoso inútil versus jovem produtivo parece fácil de se resolver. Mas e o dilema idoso produtivo versus jovem inútil, como fazer? Não é e nem pode ser uma questão de idade. Como comparar um idoso que meritocraticamente tivesse o seu bom pé de meia investido em um banco, garantindo assim não só o seu próprio bem estar mas também o do sistema financeiro, como comparar esse cidadão do bem mas com idade mais avançada com um jovem que vive por aí, desgarrado da família e da religião? Qual salvar? Não é justo que nesse caso tentemos então salvar o idoso? Além de tudo, um deles teria condições de bancar a conta enquanto que para o outro a conta seria, injustamente, cobrada de toda a sociedade. Vejam vocês que os dilemas não são tão fáceis assim de serem resolvidos.
          Nova pausa, novo pigarreio.
          - Por isso, nós da NRhealthcare, uma sociedade sem fins lucrativos...
          Gargalhadas gerais.
          - ... fomos contratados por esse governo para implementar estudos e critérios desenvolvidos ao longo de anos de observação e que irão nos auxiliar na solução de dilemas como os mencionados acima e otimizar dessa forma os gastos do sistema de saúde. O que propomos é um sistema de pontinhos que mede essencialmente o quão produtivo uma pessoa é. Simples, não? É algo que mede, de forma precisa e científica, todos os aspectos da vida dessa pessoa, como gastos com cartão de crédito, viagens, o número de selfies em lugares exóticos, a quantidade de carros na garagem, as idas a restaurantes, a quantidade de camisetas amarelas da seleção brasileira, a participação em carreatas barulhentas em frente a hospitais públicos, esses itens que medem o quanto do bem uma pessoa é. Há também pontuações secretas que não vem ao caso, mas vocês podem confiar que elas são sempre pensadas em consonância com o intuito patriótico de nossos governantes. A idade, nessa análise, irá contar, sim, mas em um grau muito menor. Em suma, nossos algoritmos estarão escaneando todo o sistema produtivo da sociedade em busca de sinais que nos permitam ter um bom perfil de cada um de vocês e associar uma nota final. Essa nota é o seu valor na sociedade. Estamos em dúvida de como chama-la, se coeficiente de produtividade, se índice de meritocracia... mas isso pode ser decidido depois. Em todo o caso, quando precisarmos resolver algum dilema entre quem atender, bastaria acessar o sistema e ver qual a maior nota dentre os envolvidos e esse terá prioridade no sistema de saúde. Simples assim, né? Científico!
          O contentamento do palestrante de certa forma contrastava com sua feição de coveiro de filme de terceira categoria.
- É para isso que serve a inteligência artificial, não? - ele continuava -  Serve para que a tal inteligência natural não precise ser gasta com baboseiras e deixada para que possamos curtir lives de sertanejos nesses tempos difíceis ou votar nos paredões do BBB-Hygina. Deixemos as coisas sérias e mais aborrecidas para os computadores, não é mesmo? Gostaria de finalizar dizendo que esse sistema a ser implementado logo irá nos auxiliar também em escolhas que não envolvam a idade das pessoas. O que é melhor? Prover um conforto de hotel seis estrelas a uma cidadã de bem que irá parir, incluindo salas de espera e buffets a seus parentes e amigos, ou atender um rapaz baleado em uma briga de gangue de rua? Qualquer um sabe a resposta, nem preciso dizer. Ou, dilema, investir na infraestrutura de ambulatórios nos hospitais ou remunerar melhor os seus dirigentes? Imaginemos, por exemplo, um dirigente estressado e que, por conta disso, pode até cometer algum erro durante o seu serviço. O melhor é pagar logo umas boas férias a ele em alguma ilha paradisíaca e evitar um mal maior, não é verdade? Um último exemplo e já acabo. Como todos sabem, meus jalecos, assim como os ternos daquele juiz, são comprados em Miami, feitos sob medida. É natural e justo que eu precise ser bem remunerado para tal.
Pausa final, pigarreios, antes da última saudação.
- Iba áles a todos, e durmam bem que a república está em boas mãos...

quinta-feira, 9 de abril de 2020

iba áles, dezessete



          Por razões que nenhum infectologista pode explicar direito, o vírus covid-19 entrou na República de Hygina em uma pequena cidade que até então só era conhecida como um resort de inverno à elite do país, e era verão. Mas o governo central de Hygina agiu rapidamente e isolou a pacata cidade, ninguém entra ninguém sai, o que salvaguardou o sistema financeiro nacional. Nem custa enfatizar que era baixa temporada, o que ajudou na aprovação da medida pela sociedade higienista.
          Identificado o paciente contaminado, na realidade uma paciente, uma velhinha de seus oitenta e três anos, não restou nada a não ser isolá-la em sua casa dentro da cidade isolada, dando por encerrado o processo de contenção da disseminação do tal vírus. Foi o que técnicos do governo federal chamaram de isolamento em segundo grau.
A velhinha, aposentada professora de antigas gerações, quedou-se em casa junto à sua invejável biblioteca, invejável a uns, chacotas a outros que não entendiam a necessidade de tanto papel ser acumulado. Acontece que o isolamento trouxe fome à moradora, visto que ela não costumava estocar comida. Isolada e faminta, perdia-se em pensamentos que seguramente não seriam compartilhados por outros, não era uma sociedade dada a muitas extravagâncias mentais.
          Frente à velhinha morava uma menina que, estranhando tanto isolamento, achou, sei lá por que pois tais achismos não se ensinam nas escolas de Hygina, a menina achou que a pobre mulher deveria estar com fome e ficou com pena dela. Preparou então um prato de comida e, atravessando a rua, deixou-o frente à entrada principal da casa depois de um leve mas firme toque na campainha. A velhinha recolheu o prato e ainda teve tempo de agradecer à distância, com o olhar e um tímido gesto à menina, pela gentileza.
Estava com fome mesmo, a velhinha. Devorou a comida, saboreando em paralelo antigas recordações de suas aulas e diletos alunos e rezando pelo bem estar da pequena garota que ousara sentir pena dela. Por sua vez, a menina, por detrás da cortina de sua casa, imaginava o prazer que a velinha deveria sentir nesses momentos. Nem poderia imaginar, tão pequena que era, que na realidade sonhava por algo diferente. Mas isso, em Hygina, era ousadia demais.
          Assim seguiu, menina e velhinha, a viverem suas vidas, a pequena garota levando um bom prato de comida, duas vezes ao dia, à que ela identificava agora como uma terceira avó, mesmo sem ter tido a oportunidade de conhecê-la realmente. Bastava a ela o olhar vibrante e o sorriso sincero que recebia de volta por sua ação. A velhinha, por sua vez, sonhava com o dia em que o isolamento acabasse para poder convidar a pequena a entrar e desfrutar sua companhia e memórias.
Mas a rotina não durou por muito tempo, porém. Em um dia, semana ou pouco mais depois de iniciado o isolamento, a menina não teve tempo de ver a velhinha ir à porta de sua casa recepcioná-la pois tão logo depositou o prato no banquinho que agora fora disponibilizado para isso, um bando de encapuçados surgiu correndo da esquina e chutou a comida e banquinho. Gritavam e cantavam o hino do iba áles! De passagem, um deles disse à menina que ela se ocupasse só de seus afazeres.
Vendo a comida espalhada pelo pequeno jardim e até na rua a brava menina não se intimidou. Com carinho, preparou outro prato de comida e levou para a velhinha. Desta vez, não só o prato foi chutado e destruído como ela própria levou uma surra dos encapuzados que poucos se atreveriam a parar, ainda mais naquela república, naqueles tempos de arminhas e tesourinhas.
          Pela madrugada, enquanto a menina, sonhando com os livros da aposentada professora, lutava pela vida em um coma induzido, encapuçados pararam seus carros de luxo em sua rua e incendiaram a velhinha, sua casa, sua biblioteca e o que sobrava de esperanças nos que a conheciam. Cinzas se acumulavam, na tonalidade predileta do novo governante da pequena cidade encrustada no vale lá ao norte da capital de Hygina.
          Quis o destino que antes do incêndio dizimar velhinha e entornos o vírus tivesse tido a oportunidade de infectar um comerciante na rua de baixo. E um padre na igreja da esquina. E um morador da periferia. E uma enfermeira do único hospital. Um morador de rua.
O governo central ficou preocupado com tantos infectados, afinal o seu pib não ia lá muito bom a despeito do golpe que tanto prometera e, após cuidar da silenciosa e secreta evacuação do capitão, do pastor, do juiz e da prefeita, decretou que todos os outros habitantes do pequeno vilarejo deveriam permanecer em casa por mais um dia, o suficiente para que as forças armadas pudessem agir com a presteza necessária.
          Cercado, o pequeno vilarejo perdeu o acesso a toda notícia que viesse de seu exterior. Ao invés, uma calma música ecoou pelas ruas que, estranhamente, acobertou o barulho das imensas labaredas de fogo e dos gritos desesperados. Consumida após um intenso mas breve incêndio, a cidade sumiu do mapa, escafedeu-se, levando encapuçados e a gentil menina consigo.
          Dizem que o vírus sobrevive nas cinzas por ainda um par de dias. Sem problema, assegura o porta-voz do governo central de Hygina, esse é justamente o tempo necessário para chegarem as máquinas que transformarão a terra arrasada do vilarejo em um grande empreendimento comercial.
          O capitão, o pastor, o juiz e a prefeita, todos eles, já garantiram suas cotas e esperam ansiosos pelas vendas que se anunciam esplendorosas.  A bolsa voltou a subir e há até uma previsão de crescimento do pib.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Mero, parte IV

4. ALEGRETTO


            Só cinco dias depois daquela quinta-feira, uma terça, se não me engano, foi que ele começou a pensar de novo nisso tudo e, como era de se esperar, resolveu voltar à casa do amigo. Final de expediente, rumou para lá; entrou calmamente na casa, com a calma que só é possível quando se entra em uma casa que não se conhece bem, com a tranquilidade de quem espera que tudo esteja em seus respectivos lugares, lugares de ontem e de sempre e por isso não estranhou nem um pouco ao entrar no pequeno sobrado que o amigo não dividia com ninguém entre todas as pessoas conhecidas ou desconhecidas por ele e constatar que tudo parecia igual, estático a não ser por aquela ligeira impressão que ele teve, que normalmente se tem, de que algo aconteceu, de que falta algo ou sobra alguma coisa como se alguém tivesse voltado rapidamente àquele lugar apenas para buscar o casaco de que esquecera pois lá fora vai esfriar, está claro que vai esfriar, ou porventura deixar o guarda-chuva, este trambolho, que definitivamente hoje não chove. Tudo igual a não ser pelo casaco que não estava mais por lá e o guarda-chuva que agora está mas que, pensando bem, já não se tem mais a certeza de que fora realmente diferente alguns dias atrás.

            Demorou um pouco antes de se decidir e ir ao andar de cima e examinar o que realmente o interessava, que era aquele quarto cheio de papéis e como se a justificar um pouco o porquê de estar lá foi à cozinha, olhou o quintal ao fundo, tomou um copo de água, ajeitou o jornal na sala. Sentado no sofá olhava a escada enquanto os seus dedos faziam o longo e infindável e absolutamente desnecessário arco até chegarem aos óculos e empurrá-los naquele tique que tinha desde a infância e enquanto isso teve todo o tempo para não pensar em nada, como efetivamente fez.

            Após ter terminado de não pensar lembrou-se de sua curiosidade e ela o empurrou até o andar de cima. Diante da porta, uma grande ideia, perguntou:

            – Você sabe a diferença entre um cientista e um pesquisador diante de uma porta trancada? - olhou em volta e percebeu que falava sozinho, tinha sido abandonado pelos amigos. Nem se interessou em responder pois já sabia de cor a resposta.

            Sentiu-se bem ao entrar naquele quarto e resolveu ficar um pouco que fosse só para apagar a má impressão do outro dia. Responsabilizou a perturbação que sentira dias atrás ao cansaço, não tinha dormido direito a noite anterior. E para mostrar toda a sua confiança e tranquilidade pegou um dos inúmeros papéis que se quedavam naquele quarto misterioso que todos nós sabemos qual é e leu um estranho conto com o estranho título de O conto que o Rosa não contou:

            Em uma noite qualquer entre algumas daquelas tantas noites, Assis voltou para casa estranho, cansado de tanto trabalhar na lavoura de outros. Mas o máximo que conseguia perceber de errado nisso era que trabalhava para outros. Queria trabalhar para si mesmo, mas o seu desconforto com a situação começava e acabava nesse ponto.

            Comida requentada, comeu calado e acompanhado apenas pelo silêncio mudo e subserviente da esposa que costurava.

            Mas o conto que o Rosa não contou integralmente, nem deixou por escrito, começa quando Assis se sentiu um pouco estranho depois da janta. Não quis dormir mas também não falou nada a ninguém. Se acocorou em um canto a pensar e a temer que se dormisse hoje poderia desaprender a acordar. Acordar é tão fácil (quando se saber) e, além do mais, já o fizera por anos a fio, quase um terço de século já, quase um cristo de vida. Mas hoje é diferente, teme dormir e não saber o truque certo para acordar e continuar a dormir e a dormir…

            Muito tempo ainda ficou acordado. E, como o tempo passa, finalmente já era tempo de se levantar mesmo e ir trabalhar. E foi e voltou e os seus temores não lhe saíam da cabeça.

            Vários dias e Assis não dorme. Resignado foi vivendo assim. Fingia dormir para que não tivesse de se explicar, para que não o enchessem as paciências, o pior destas horas é ter de se explicar, e assim Assis ia levando a vida.

            No entanto, a cada dia voltava mais e mais cansado, e mais e mais cansado fingia dormir e mais e mais cansado se levantava. Até o dia em que fingindo dormir, dormiu de verdade. E durante o sono ele desaprendeu a acordar e, como esqueceu, não acordou mais.

            O Rosa já morreu faz tempo e Assis ainda dorme hoje. Em uma cabana, perdida em uma destas tantas terras de um destes tão poucos donos de tantas terras que ainda são permitidas neste sertão.

            Confiante que estava continuou a ler e buscar. E folheou de verdade agora os livros que o amigo tinha, muitos cortázares e borges e scorzas e rosas e ramos e coelhos e muitos outros e muitos outros mesmo que ele sequer ouvira falar e passou um tempão a lê-los. E muitos dias lá ele voltou para lê-los todos, com aquela vontade toda e sem se preocupar mais, por um instante que fosse, com aquele sentimento de perda que o amigo citara e que ele firmemente associava àqueles símbolos todos espalhados pelo quarto.

            No sexto dia em que lá voltou leu tanto que perdeu a noção das horas e dormiu lá mesmo, na mesma cama em que deve ter dormido várias vezes a silenciosa e ainda misteriosa Susan.

            Abriu lentamente os olhos, olhou para o lado e a companheira não estava mais lá, a silenciosa Susan já não estava lá, tinha ficado com ele aquela longa noite de sonhos e agora ele estava sozinho a pensar, a tentar acordar e tentando se lembrar de onde é que tinha parado na noite anterior. Há de haver pessoas a achar… Acordou com um sabor de conto na boca. Rever Rebeca.

            Ainda sonolento atribuiu o estranho gosto que sentia ao fato de ter estado a ler até mais tarde, isso dá ressaca. Todos aqueles escritos e rabiscos a passear agora em sua cabeça daquela maneira maravilhosa que ela sempre descobria para contá-los e achou que deveria afinal se levantar, não adiantava ficar ali a tentar dormir que não iria conseguir, não tinha sono e o motivo principal para se levantar era um só e ele sabia disso e o motivo era algo que o amigo deixara na terceira gaveta à esquerda e que ele ainda não abrira, algo em forma de um diário, um diário descontínuo e incompleto e que tinha a ver com o desaparecimento do amigo, deveria ter a ver sim.

            Olhou em volta e tudo lhe parecia estanho em um mundo familiar, ou melhor dizendo, familiar em um mundo estranho. Levantou-se, banheiro, tomou um bom café da manhã, o jornal deixado à porta misteriosamente, banheiro, uma completa higiene bucal, já se sentia em casa, limpou a bagunça na cozinha, preciso comprar algo para o almoço, pensou. Sentado no sofá leu as notícias do dia, que, por aqueles tempos, eram sempre as mesmas, e descobriu que já era hora de subir e abrir a gaveta e de lá tirar aquele diário e se pôr a ler e decifrar e a tentar descobrir que diabos estava ele a fazer por aqui.

            Toda esta perda de tempo inicial foi a maneira que o seu inconsciente achou para evitar isto, mas-qual-o-quê, não há nada a evitar, o que há para fazer é subir já aquela escada e entrar no quarto e finalmente fuçar aquela porta à procura dele, que ele há de estar lá e tolo é aquele que acredita que tudo isso, o subir e o fuçar, está sendo decidido agora, ou ontem; tudo já estava decidido desde o instante em que se vive, desde o instante em que se sente esta toda impaciência e não adianta negar que o que tem de ser feito é justamente o que não dá pra se evitar.

            Mas bem que o inconsciente dele tentou. Tentou fazê-lo desistir de tudo e ir embora para casa, que o melhor é ficar no aconchego do lar a ler, e a assistir à televisão. Mas por que ir embora para casa? Sentia-se tão bem por aqui.

            Por fim, subiu as escadas resignado. Não podia evitar ser do jeito que era, assim como não pôde evitar sentar-se naquela cadeira, na mesma em que já deve ter sentado o amigo várias vezes a escrever, e abrir a gaveta, a terceira à esquerda, sempre a terceira à esquerda e pôr-se a procurar e começar a ler e perceber que cada um daqueles símbolos rabiscados naquele diário tinha um significado por si só, eram letras, como já sabemos, e juntas formavam, digamos, palavras, símbolos ou garranchos (dependendo da exigência estética do leitor) que juntos fazem o sentido das palavras e a perceber que o amigo ía mais longe com esta brincadeira, a ele não interessava só o significado das palavras e fazia frases que nada mais eram que muitas palavras juntas e com muitas frases ele fazia um texto, um conto, uma carta, um algo qualquer e que os colecionava sem saber muito bem se aquele mero ajuntamento fazia algum sentido a alguém. E agora aquela coleção toda de escritos parecia fazer sentido ao um dos amigos dele e, com certeza agora, foi no meio de todos aqueles papéis que o amigo deveria ter-se perdido e na certa há de achá-lo agora que sabe onde ele está e pôs-se a ler desesperadamente e a perder-se também ele um pouco no meio disso tudo; o diário era uma porção de frases que não faziam o menor sentido intercaladas por outras que faziam ainda menos sentido. Mas leu-o cuidadosamente e por fim chegou aonde queria chegar.

            No começo não notei muito isto. Era algo lento. Em um instante lembrei-me de que tinha nascido às onze horas da manhã do dia dois de julho e lembrar nada mais era que uma simples questão de ter ouvido falar, alguém contou e já agora é uma lembrança. Porém alguns instantes depois tive a certeza de que não fora bem assim. Tenho a certeza agora, nasci às dez e meia da manhã e não às onze. De um momento a outro senti pesar em meu corpo esta meia hora a mais. É engraçado, não me assustei e até gostei desta sensação de mais maduro, esta sensação que vem do fato, da certeza de que se tem de que se chegou meia hora antes a algum lugar, meia hora é muito importante pois se vê o final da preparação da festa, vê-se tudo, desmistifica-se tudo.           11/91

            Já faz alguns dias que senti aquilo ocorrer, não pensei muito nisso desde então mas hoje pesou-me uma hora e quinze a mais em mim. Que fique registrado aqui que tenho a certeza agora, nasci efetivamente às nove horas e quinze minutos da manhã do dia dois e não às onze horas como há de insistir uma porção de papéis pelo mundo afora.                                                              12/91

            (ilegível)… nesta noite quente, o efeito estufa deve estar me envelhecendo duplamente… por um lado com esta irritante mania que o tempo tem de não esperar, de sempre correr, de não querer saber de nada, de não querer parar sequer para ouvir uma música do Egberto, parar por um instante e escutar (desenvolver isso, gostei), só por um instante e talvez ficar suspenso por um tempo mesmo que isso fosse difícil de se medir visto que não haveria tempo…; e não bastasse isto, agora envelheço pelo simples fato de a cada instante que vivo, a cada instante que passa por mim, eu descubro que nasci antes.                                                                                                          1/92

            Hoje acordei exitado com a ideia de que meu aniversário não é mais o dia dois e sim o dia primeiro de julho, sim agora tenho um dia diferente para comemorar após tanto tempo, já estava até me chateando isso de todo ano o mesmo dia, o mesmo dia ano sim e outro também. Se continuar assim logo logo eu ganho um mês novo também.                                                          2/92                                                                                

            Ainda faltam quatro meses para o meu próximo dia primeiro de julho, mas já estou ansioso (pois) não sei como explicar às pessoas que o meu aniversário mudou de dia depois de tanto tempo, como fazer isso sem parecer ridículo nem receber de troca aquele sorriso malicioso, como encarar o olhar que meu irmão me faz sempre que me ouve falar… desânimo repentino.           2/92

            Comemoro dia primeiro, sábado, e tudo bem. Não preciso explicar a ninguém o que aconteceu…                                                                                                                            2/92 (ainda)

            Paradoxalmente, me sinto mais novo com este dia a mais em minha vida.

            Estava lendo até agora e senti uma vontade de escrever um pouco. Só hoje é que percebi, mas a minha mente muda a cada instante, o fato de eu ter nascido antes altera totalmente o meu passado; estranho, mas minhas experiências são outras agora, uma mudança dinâmica ocorre, minha mente muda a cada instante, a cada instante mudo e tenho a impressão de já ter escrito isso antes e há de haver pessoas a jurarem que sim.

            Ganhei ou perdi um dia? ora bolas um dia não é nada comparado com a porção deles que já vivi e certamente ele se dissipará em minha memória, em meus pensamentos, em meu passado, em suma em mim. Mas é estranho, sem dúvida nenhuma é estranho.                                           3/92
        
         Parece que tudo voltou ao normal, hoje voltei a nascer no dia dois. Pareceu um sonho apenas, destes que se impregna. Escrever um conto algum dia, antes que me esqueça.               3/92

            Aqui acabava este diário. Olhou em volta e viu um mundo diferente daquele com o qual estava acostumado, sentiu-se mais velho e de repente cansado mas não se moveu, ficou sentado naquela cadeira a pensar e a olhar aqueles papéis, aqueles rabiscos que há de fazer sentido a alguém, isso há. Finalmente levantou-se com calma, estava cansado e foi fazer um café, já era de casa. Ao pé da escada o gato manhoso o esperava e ele o alimentou. Café e voltou a seu lugar que era no andar de cima. Umas bolachas e subiu as escadas. No banheiro, um cabelo branco que não estava lá antes, e lavou o rosto. Um cansaço imenso e sentou-se de novo na cadeira de leitura. Revirou de novo a gaveta e achou uma outra folha.

            Sem tempo para escrever, mas tudo estabilizou afinal, não só recuperei o tempo perdido como também ganhei algumas semanas a mais, já faz mais de dez dias que eu nasci no dia sete de agosto, sou mais jovem e um pouco assustado com tudo isso, espero que pare afinal.                4/92

            Aquilo voltou com mais intensidade, mas só hoje no almoço é que eu percebi que nesta última semana envelheci mais de dois meses.                                                                          5/92

            Sem esperanças de estabilização: envelheci anos de ontem para hoje.                             5/92

         Não achou mais nada nesta gaveta a respeito da existência intermitente do amigo e ficou curioso para saber o final da estória e pôs-se agora a remexer a última gaveta que faltava remexer com a certeza de que lá encontraria a última frase, a derradeira e definitiva explicação para tudo isto e ao mesmo tempo em que fuçava a gaveta ele ficava com um olho atento esperando pelo amigo, esperando que o amigo fosse entrar por aquela porta daqui a pouco, tão logo tivesse voltado a nascer em um dos inúmeros momentos que permitisse tê-lo vivo hoje a entrar por aquela porta e a poder finalmente conversar com ele.


Liverpool-Diamantina
1989-1992



[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]