quinta-feira, 2 de abril de 2020

Mero, parte IV

4. ALEGRETTO


            Só cinco dias depois daquela quinta-feira, uma terça, se não me engano, foi que ele começou a pensar de novo nisso tudo e, como era de se esperar, resolveu voltar à casa do amigo. Final de expediente, rumou para lá; entrou calmamente na casa, com a calma que só é possível quando se entra em uma casa que não se conhece bem, com a tranquilidade de quem espera que tudo esteja em seus respectivos lugares, lugares de ontem e de sempre e por isso não estranhou nem um pouco ao entrar no pequeno sobrado que o amigo não dividia com ninguém entre todas as pessoas conhecidas ou desconhecidas por ele e constatar que tudo parecia igual, estático a não ser por aquela ligeira impressão que ele teve, que normalmente se tem, de que algo aconteceu, de que falta algo ou sobra alguma coisa como se alguém tivesse voltado rapidamente àquele lugar apenas para buscar o casaco de que esquecera pois lá fora vai esfriar, está claro que vai esfriar, ou porventura deixar o guarda-chuva, este trambolho, que definitivamente hoje não chove. Tudo igual a não ser pelo casaco que não estava mais por lá e o guarda-chuva que agora está mas que, pensando bem, já não se tem mais a certeza de que fora realmente diferente alguns dias atrás.

            Demorou um pouco antes de se decidir e ir ao andar de cima e examinar o que realmente o interessava, que era aquele quarto cheio de papéis e como se a justificar um pouco o porquê de estar lá foi à cozinha, olhou o quintal ao fundo, tomou um copo de água, ajeitou o jornal na sala. Sentado no sofá olhava a escada enquanto os seus dedos faziam o longo e infindável e absolutamente desnecessário arco até chegarem aos óculos e empurrá-los naquele tique que tinha desde a infância e enquanto isso teve todo o tempo para não pensar em nada, como efetivamente fez.

            Após ter terminado de não pensar lembrou-se de sua curiosidade e ela o empurrou até o andar de cima. Diante da porta, uma grande ideia, perguntou:

            – Você sabe a diferença entre um cientista e um pesquisador diante de uma porta trancada? - olhou em volta e percebeu que falava sozinho, tinha sido abandonado pelos amigos. Nem se interessou em responder pois já sabia de cor a resposta.

            Sentiu-se bem ao entrar naquele quarto e resolveu ficar um pouco que fosse só para apagar a má impressão do outro dia. Responsabilizou a perturbação que sentira dias atrás ao cansaço, não tinha dormido direito a noite anterior. E para mostrar toda a sua confiança e tranquilidade pegou um dos inúmeros papéis que se quedavam naquele quarto misterioso que todos nós sabemos qual é e leu um estranho conto com o estranho título de O conto que o Rosa não contou:

            Em uma noite qualquer entre algumas daquelas tantas noites, Assis voltou para casa estranho, cansado de tanto trabalhar na lavoura de outros. Mas o máximo que conseguia perceber de errado nisso era que trabalhava para outros. Queria trabalhar para si mesmo, mas o seu desconforto com a situação começava e acabava nesse ponto.

            Comida requentada, comeu calado e acompanhado apenas pelo silêncio mudo e subserviente da esposa que costurava.

            Mas o conto que o Rosa não contou integralmente, nem deixou por escrito, começa quando Assis se sentiu um pouco estranho depois da janta. Não quis dormir mas também não falou nada a ninguém. Se acocorou em um canto a pensar e a temer que se dormisse hoje poderia desaprender a acordar. Acordar é tão fácil (quando se saber) e, além do mais, já o fizera por anos a fio, quase um terço de século já, quase um cristo de vida. Mas hoje é diferente, teme dormir e não saber o truque certo para acordar e continuar a dormir e a dormir…

            Muito tempo ainda ficou acordado. E, como o tempo passa, finalmente já era tempo de se levantar mesmo e ir trabalhar. E foi e voltou e os seus temores não lhe saíam da cabeça.

            Vários dias e Assis não dorme. Resignado foi vivendo assim. Fingia dormir para que não tivesse de se explicar, para que não o enchessem as paciências, o pior destas horas é ter de se explicar, e assim Assis ia levando a vida.

            No entanto, a cada dia voltava mais e mais cansado, e mais e mais cansado fingia dormir e mais e mais cansado se levantava. Até o dia em que fingindo dormir, dormiu de verdade. E durante o sono ele desaprendeu a acordar e, como esqueceu, não acordou mais.

            O Rosa já morreu faz tempo e Assis ainda dorme hoje. Em uma cabana, perdida em uma destas tantas terras de um destes tão poucos donos de tantas terras que ainda são permitidas neste sertão.

            Confiante que estava continuou a ler e buscar. E folheou de verdade agora os livros que o amigo tinha, muitos cortázares e borges e scorzas e rosas e ramos e coelhos e muitos outros e muitos outros mesmo que ele sequer ouvira falar e passou um tempão a lê-los. E muitos dias lá ele voltou para lê-los todos, com aquela vontade toda e sem se preocupar mais, por um instante que fosse, com aquele sentimento de perda que o amigo citara e que ele firmemente associava àqueles símbolos todos espalhados pelo quarto.

            No sexto dia em que lá voltou leu tanto que perdeu a noção das horas e dormiu lá mesmo, na mesma cama em que deve ter dormido várias vezes a silenciosa e ainda misteriosa Susan.

            Abriu lentamente os olhos, olhou para o lado e a companheira não estava mais lá, a silenciosa Susan já não estava lá, tinha ficado com ele aquela longa noite de sonhos e agora ele estava sozinho a pensar, a tentar acordar e tentando se lembrar de onde é que tinha parado na noite anterior. Há de haver pessoas a achar… Acordou com um sabor de conto na boca. Rever Rebeca.

            Ainda sonolento atribuiu o estranho gosto que sentia ao fato de ter estado a ler até mais tarde, isso dá ressaca. Todos aqueles escritos e rabiscos a passear agora em sua cabeça daquela maneira maravilhosa que ela sempre descobria para contá-los e achou que deveria afinal se levantar, não adiantava ficar ali a tentar dormir que não iria conseguir, não tinha sono e o motivo principal para se levantar era um só e ele sabia disso e o motivo era algo que o amigo deixara na terceira gaveta à esquerda e que ele ainda não abrira, algo em forma de um diário, um diário descontínuo e incompleto e que tinha a ver com o desaparecimento do amigo, deveria ter a ver sim.

            Olhou em volta e tudo lhe parecia estanho em um mundo familiar, ou melhor dizendo, familiar em um mundo estranho. Levantou-se, banheiro, tomou um bom café da manhã, o jornal deixado à porta misteriosamente, banheiro, uma completa higiene bucal, já se sentia em casa, limpou a bagunça na cozinha, preciso comprar algo para o almoço, pensou. Sentado no sofá leu as notícias do dia, que, por aqueles tempos, eram sempre as mesmas, e descobriu que já era hora de subir e abrir a gaveta e de lá tirar aquele diário e se pôr a ler e decifrar e a tentar descobrir que diabos estava ele a fazer por aqui.

            Toda esta perda de tempo inicial foi a maneira que o seu inconsciente achou para evitar isto, mas-qual-o-quê, não há nada a evitar, o que há para fazer é subir já aquela escada e entrar no quarto e finalmente fuçar aquela porta à procura dele, que ele há de estar lá e tolo é aquele que acredita que tudo isso, o subir e o fuçar, está sendo decidido agora, ou ontem; tudo já estava decidido desde o instante em que se vive, desde o instante em que se sente esta toda impaciência e não adianta negar que o que tem de ser feito é justamente o que não dá pra se evitar.

            Mas bem que o inconsciente dele tentou. Tentou fazê-lo desistir de tudo e ir embora para casa, que o melhor é ficar no aconchego do lar a ler, e a assistir à televisão. Mas por que ir embora para casa? Sentia-se tão bem por aqui.

            Por fim, subiu as escadas resignado. Não podia evitar ser do jeito que era, assim como não pôde evitar sentar-se naquela cadeira, na mesma em que já deve ter sentado o amigo várias vezes a escrever, e abrir a gaveta, a terceira à esquerda, sempre a terceira à esquerda e pôr-se a procurar e começar a ler e perceber que cada um daqueles símbolos rabiscados naquele diário tinha um significado por si só, eram letras, como já sabemos, e juntas formavam, digamos, palavras, símbolos ou garranchos (dependendo da exigência estética do leitor) que juntos fazem o sentido das palavras e a perceber que o amigo ía mais longe com esta brincadeira, a ele não interessava só o significado das palavras e fazia frases que nada mais eram que muitas palavras juntas e com muitas frases ele fazia um texto, um conto, uma carta, um algo qualquer e que os colecionava sem saber muito bem se aquele mero ajuntamento fazia algum sentido a alguém. E agora aquela coleção toda de escritos parecia fazer sentido ao um dos amigos dele e, com certeza agora, foi no meio de todos aqueles papéis que o amigo deveria ter-se perdido e na certa há de achá-lo agora que sabe onde ele está e pôs-se a ler desesperadamente e a perder-se também ele um pouco no meio disso tudo; o diário era uma porção de frases que não faziam o menor sentido intercaladas por outras que faziam ainda menos sentido. Mas leu-o cuidadosamente e por fim chegou aonde queria chegar.

            No começo não notei muito isto. Era algo lento. Em um instante lembrei-me de que tinha nascido às onze horas da manhã do dia dois de julho e lembrar nada mais era que uma simples questão de ter ouvido falar, alguém contou e já agora é uma lembrança. Porém alguns instantes depois tive a certeza de que não fora bem assim. Tenho a certeza agora, nasci às dez e meia da manhã e não às onze. De um momento a outro senti pesar em meu corpo esta meia hora a mais. É engraçado, não me assustei e até gostei desta sensação de mais maduro, esta sensação que vem do fato, da certeza de que se tem de que se chegou meia hora antes a algum lugar, meia hora é muito importante pois se vê o final da preparação da festa, vê-se tudo, desmistifica-se tudo.           11/91

            Já faz alguns dias que senti aquilo ocorrer, não pensei muito nisso desde então mas hoje pesou-me uma hora e quinze a mais em mim. Que fique registrado aqui que tenho a certeza agora, nasci efetivamente às nove horas e quinze minutos da manhã do dia dois e não às onze horas como há de insistir uma porção de papéis pelo mundo afora.                                                              12/91

            (ilegível)… nesta noite quente, o efeito estufa deve estar me envelhecendo duplamente… por um lado com esta irritante mania que o tempo tem de não esperar, de sempre correr, de não querer saber de nada, de não querer parar sequer para ouvir uma música do Egberto, parar por um instante e escutar (desenvolver isso, gostei), só por um instante e talvez ficar suspenso por um tempo mesmo que isso fosse difícil de se medir visto que não haveria tempo…; e não bastasse isto, agora envelheço pelo simples fato de a cada instante que vivo, a cada instante que passa por mim, eu descubro que nasci antes.                                                                                                          1/92

            Hoje acordei exitado com a ideia de que meu aniversário não é mais o dia dois e sim o dia primeiro de julho, sim agora tenho um dia diferente para comemorar após tanto tempo, já estava até me chateando isso de todo ano o mesmo dia, o mesmo dia ano sim e outro também. Se continuar assim logo logo eu ganho um mês novo também.                                                          2/92                                                                                

            Ainda faltam quatro meses para o meu próximo dia primeiro de julho, mas já estou ansioso (pois) não sei como explicar às pessoas que o meu aniversário mudou de dia depois de tanto tempo, como fazer isso sem parecer ridículo nem receber de troca aquele sorriso malicioso, como encarar o olhar que meu irmão me faz sempre que me ouve falar… desânimo repentino.           2/92

            Comemoro dia primeiro, sábado, e tudo bem. Não preciso explicar a ninguém o que aconteceu…                                                                                                                            2/92 (ainda)

            Paradoxalmente, me sinto mais novo com este dia a mais em minha vida.

            Estava lendo até agora e senti uma vontade de escrever um pouco. Só hoje é que percebi, mas a minha mente muda a cada instante, o fato de eu ter nascido antes altera totalmente o meu passado; estranho, mas minhas experiências são outras agora, uma mudança dinâmica ocorre, minha mente muda a cada instante, a cada instante mudo e tenho a impressão de já ter escrito isso antes e há de haver pessoas a jurarem que sim.

            Ganhei ou perdi um dia? ora bolas um dia não é nada comparado com a porção deles que já vivi e certamente ele se dissipará em minha memória, em meus pensamentos, em meu passado, em suma em mim. Mas é estranho, sem dúvida nenhuma é estranho.                                           3/92
        
         Parece que tudo voltou ao normal, hoje voltei a nascer no dia dois. Pareceu um sonho apenas, destes que se impregna. Escrever um conto algum dia, antes que me esqueça.               3/92

            Aqui acabava este diário. Olhou em volta e viu um mundo diferente daquele com o qual estava acostumado, sentiu-se mais velho e de repente cansado mas não se moveu, ficou sentado naquela cadeira a pensar e a olhar aqueles papéis, aqueles rabiscos que há de fazer sentido a alguém, isso há. Finalmente levantou-se com calma, estava cansado e foi fazer um café, já era de casa. Ao pé da escada o gato manhoso o esperava e ele o alimentou. Café e voltou a seu lugar que era no andar de cima. Umas bolachas e subiu as escadas. No banheiro, um cabelo branco que não estava lá antes, e lavou o rosto. Um cansaço imenso e sentou-se de novo na cadeira de leitura. Revirou de novo a gaveta e achou uma outra folha.

            Sem tempo para escrever, mas tudo estabilizou afinal, não só recuperei o tempo perdido como também ganhei algumas semanas a mais, já faz mais de dez dias que eu nasci no dia sete de agosto, sou mais jovem e um pouco assustado com tudo isso, espero que pare afinal.                4/92

            Aquilo voltou com mais intensidade, mas só hoje no almoço é que eu percebi que nesta última semana envelheci mais de dois meses.                                                                          5/92

            Sem esperanças de estabilização: envelheci anos de ontem para hoje.                             5/92

         Não achou mais nada nesta gaveta a respeito da existência intermitente do amigo e ficou curioso para saber o final da estória e pôs-se agora a remexer a última gaveta que faltava remexer com a certeza de que lá encontraria a última frase, a derradeira e definitiva explicação para tudo isto e ao mesmo tempo em que fuçava a gaveta ele ficava com um olho atento esperando pelo amigo, esperando que o amigo fosse entrar por aquela porta daqui a pouco, tão logo tivesse voltado a nascer em um dos inúmeros momentos que permitisse tê-lo vivo hoje a entrar por aquela porta e a poder finalmente conversar com ele.


Liverpool-Diamantina
1989-1992



[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

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