4. ALEGRETTO
Só cinco dias depois daquela quinta-feira, uma
terça, se não me engano, foi que ele começou a pensar de novo nisso tudo e,
como era de se esperar, resolveu voltar à casa do amigo. Final de expediente,
rumou para lá; entrou calmamente na casa, com a calma que só é possível quando
se entra em uma casa que não se conhece bem, com a tranquilidade de quem espera
que tudo esteja em seus respectivos lugares, lugares de ontem e de sempre e por
isso não estranhou nem um pouco ao entrar no pequeno sobrado que o amigo não
dividia com ninguém entre todas as pessoas conhecidas ou desconhecidas por ele
e constatar que tudo parecia igual, estático a não ser por aquela ligeira
impressão que ele teve, que normalmente se tem, de que algo aconteceu, de que
falta algo ou sobra alguma coisa como se alguém tivesse voltado rapidamente
àquele lugar apenas para buscar o casaco de que esquecera pois lá fora vai
esfriar, está claro que vai esfriar, ou porventura deixar o guarda-chuva, este
trambolho, que definitivamente hoje não chove. Tudo igual a não ser pelo casaco
que não estava mais por lá e o guarda-chuva que agora está mas que, pensando
bem, já não se tem mais a certeza de que fora realmente diferente alguns dias
atrás.
Demorou um pouco antes de se decidir
e ir ao andar de cima e examinar o que realmente o interessava, que era aquele
quarto cheio de papéis e como se a justificar um pouco o porquê de estar lá foi
à cozinha, olhou o quintal ao fundo, tomou um copo de água, ajeitou o jornal na
sala. Sentado no sofá olhava a escada enquanto os seus dedos faziam o longo e
infindável e absolutamente desnecessário arco até chegarem aos óculos e
empurrá-los naquele tique que tinha desde a infância e enquanto isso teve todo
o tempo para não pensar em nada, como efetivamente fez.
Após
ter terminado de não pensar lembrou-se de sua curiosidade e ela o empurrou até
o andar de cima. Diante da porta, uma grande ideia, perguntou:
–
Você sabe a diferença entre um cientista e um pesquisador diante de uma porta
trancada? - olhou em volta e percebeu que falava sozinho, tinha sido abandonado
pelos amigos. Nem se interessou em responder pois já sabia de cor a resposta.
Sentiu-se bem ao entrar naquele
quarto e resolveu ficar um pouco que fosse só para apagar a má impressão do
outro dia. Responsabilizou a perturbação que sentira dias atrás ao cansaço, não
tinha dormido direito a noite anterior. E para mostrar toda a sua confiança e
tranquilidade pegou um dos inúmeros papéis que se quedavam naquele quarto
misterioso que todos nós sabemos qual é e leu um estranho conto com o estranho
título de O conto que o Rosa não contou:
Em
uma noite qualquer entre algumas daquelas tantas noites, Assis voltou para casa
estranho, cansado de tanto trabalhar na lavoura de outros. Mas o máximo que
conseguia perceber de errado nisso era que trabalhava para outros. Queria
trabalhar para si mesmo, mas o seu desconforto com a situação começava e
acabava nesse ponto.
Comida
requentada, comeu calado e acompanhado apenas pelo silêncio mudo e subserviente
da esposa que costurava.
Mas
o conto que o Rosa não contou integralmente, nem deixou por escrito, começa
quando Assis se sentiu um pouco estranho depois da janta. Não quis dormir mas
também não falou nada a ninguém. Se acocorou em um canto a pensar e a temer que
se dormisse hoje poderia desaprender a acordar. Acordar é tão fácil (quando se
saber) e, além do mais, já o fizera por anos a fio, quase um terço de século já,
quase um cristo de vida. Mas hoje é diferente, teme dormir e não saber o truque
certo para acordar e continuar a dormir e a dormir…
Muito
tempo ainda ficou acordado. E, como o tempo passa, finalmente já era tempo de
se levantar mesmo e ir trabalhar. E foi e voltou e os seus temores não lhe
saíam da cabeça.
Vários
dias e Assis não dorme. Resignado foi vivendo assim. Fingia dormir para que não
tivesse de se explicar, para que não o enchessem as paciências, o pior destas
horas é ter de se explicar, e assim Assis ia levando a vida.
No
entanto, a cada dia voltava mais e mais cansado, e mais e mais cansado fingia
dormir e mais e mais cansado se levantava. Até o dia em que fingindo dormir,
dormiu de verdade. E durante o sono ele desaprendeu a acordar e, como esqueceu,
não acordou mais.
O
Rosa já morreu faz tempo e Assis ainda dorme hoje. Em uma cabana, perdida em
uma destas tantas terras de um destes tão poucos donos de tantas terras que
ainda são permitidas neste sertão.
Confiante que estava continuou a ler
e buscar. E folheou de verdade agora os livros que o amigo tinha, muitos cortázares
e borges e scorzas e rosas e ramos e coelhos e muitos outros e muitos outros
mesmo que ele sequer ouvira falar e passou um tempão a lê-los. E muitos dias lá
ele voltou para lê-los todos, com aquela vontade toda e sem se preocupar mais,
por um instante que fosse, com aquele sentimento de perda que o amigo citara e
que ele firmemente associava àqueles símbolos todos espalhados pelo quarto.
No
sexto dia em que lá voltou leu tanto que perdeu a noção das horas e dormiu lá
mesmo, na mesma cama em que deve ter dormido várias vezes a silenciosa e ainda
misteriosa Susan.
Abriu
lentamente os olhos, olhou para o lado e a companheira não estava mais lá, a
silenciosa Susan já não estava lá, tinha ficado com ele aquela longa noite de
sonhos e agora ele estava sozinho a pensar, a tentar acordar e tentando se
lembrar de onde é que tinha parado na noite anterior. Há de haver pessoas a
achar… Acordou com um sabor de conto na boca. Rever Rebeca.
Ainda
sonolento atribuiu o estranho gosto que sentia ao fato de ter estado a ler até
mais tarde, isso dá ressaca. Todos aqueles escritos e rabiscos a passear agora
em sua cabeça daquela maneira maravilhosa que ela sempre descobria para
contá-los e achou que deveria afinal se levantar, não adiantava ficar ali a
tentar dormir que não iria conseguir, não tinha sono e o motivo principal para
se levantar era um só e ele sabia disso e o motivo era algo que o amigo deixara
na terceira gaveta à esquerda e que ele ainda não abrira, algo em forma de um
diário, um diário descontínuo e incompleto e que tinha a ver com o
desaparecimento do amigo, deveria ter a ver sim.
Olhou
em volta e tudo lhe parecia estanho em um mundo familiar, ou melhor dizendo,
familiar em um mundo estranho. Levantou-se, banheiro, tomou um bom café da
manhã, o jornal deixado à porta misteriosamente, banheiro, uma completa higiene
bucal, já se sentia em casa, limpou a bagunça na cozinha, preciso comprar algo
para o almoço, pensou. Sentado no sofá leu as notícias do dia, que, por aqueles
tempos, eram sempre as mesmas, e descobriu que já era hora de subir e abrir a
gaveta e de lá tirar aquele diário e se pôr a ler e decifrar e a tentar
descobrir que diabos estava ele a fazer por aqui.
Toda
esta perda de tempo inicial foi a maneira que o seu inconsciente achou para
evitar isto, mas-qual-o-quê, não há nada a evitar, o que há para fazer é subir
já aquela escada e entrar no quarto e finalmente fuçar aquela porta à procura
dele, que ele há de estar lá e tolo é aquele que acredita que tudo isso, o
subir e o fuçar, está sendo decidido agora, ou ontem; tudo já estava decidido
desde o instante em que se vive, desde o instante em que se sente esta toda
impaciência e não adianta negar que o que tem de ser feito é justamente o que
não dá pra se evitar.
Mas
bem que o inconsciente dele tentou. Tentou fazê-lo desistir de tudo e ir embora
para casa, que o melhor é ficar no aconchego do lar a ler, e a assistir à
televisão. Mas por que ir embora para casa? Sentia-se tão bem por aqui.
Por
fim, subiu as escadas resignado. Não podia evitar ser do jeito que era, assim
como não pôde evitar sentar-se naquela cadeira, na mesma em que já deve ter
sentado o amigo várias vezes a escrever, e abrir a gaveta, a terceira à
esquerda, sempre a terceira à esquerda e pôr-se a procurar e começar a ler e
perceber que cada um daqueles símbolos rabiscados naquele diário tinha um
significado por si só, eram letras, como já sabemos, e juntas formavam,
digamos, palavras, símbolos ou garranchos (dependendo da exigência estética do
leitor) que juntos fazem o sentido das palavras e a perceber que o amigo ía
mais longe com esta brincadeira, a ele não interessava só o significado das
palavras e fazia frases que nada mais eram que muitas palavras juntas e com
muitas frases ele fazia um texto, um conto, uma carta, um algo qualquer e que
os colecionava sem saber muito bem se aquele mero ajuntamento fazia algum
sentido a alguém. E agora aquela coleção toda de escritos parecia fazer sentido
ao um dos amigos dele e, com certeza agora, foi no meio de todos aqueles papéis
que o amigo deveria ter-se perdido e na certa há de achá-lo agora que sabe onde
ele está e pôs-se a ler desesperadamente e a perder-se também ele um pouco no
meio disso tudo; o diário era uma porção de frases que não faziam o menor
sentido intercaladas por outras que faziam ainda menos sentido. Mas leu-o
cuidadosamente e por fim chegou aonde queria chegar.
No começo não notei muito isto.
Era algo lento. Em um instante lembrei-me de que tinha nascido às onze horas da
manhã do dia dois de julho e lembrar nada mais era que uma simples questão de
ter ouvido falar, alguém contou e já agora é uma lembrança. Porém alguns
instantes depois tive a certeza de que não fora bem assim. Tenho a certeza
agora, nasci às dez e meia da manhã e não às onze. De um momento a outro senti
pesar em meu corpo esta meia hora a mais. É engraçado, não me assustei e até
gostei desta sensação de mais maduro, esta sensação que vem do fato, da certeza
de que se tem de que se chegou meia hora antes a algum lugar, meia hora é muito
importante pois se vê o final da preparação da festa, vê-se tudo,
desmistifica-se tudo. 11/91
Já faz alguns dias que senti aquilo
ocorrer, não pensei muito nisso desde então mas hoje pesou-me uma hora e quinze
a mais em mim. Que fique registrado aqui que tenho a certeza agora, nasci
efetivamente às nove horas e quinze minutos da manhã do dia dois e não às onze
horas como há de insistir uma porção de papéis pelo mundo afora. 12/91
(ilegível)… nesta noite quente, o
efeito estufa deve estar me envelhecendo duplamente… por um lado com esta
irritante mania que o tempo tem de não esperar, de sempre correr, de não querer
saber de nada, de não querer parar sequer para ouvir uma música do Egberto,
parar por um instante e escutar (desenvolver isso, gostei), só por um instante
e talvez ficar suspenso por um tempo mesmo que isso fosse difícil de se medir
visto que não haveria tempo…; e não bastasse isto, agora envelheço pelo simples
fato de a cada instante que vivo, a cada instante que passa por mim, eu
descubro que nasci antes.
1/92
Hoje acordei exitado com a ideia
de que meu aniversário não é mais o dia dois e sim o dia primeiro de julho, sim
agora tenho um dia diferente para comemorar após tanto tempo, já estava até me
chateando isso de todo ano o mesmo dia, o mesmo dia ano sim e outro também. Se
continuar assim logo logo eu ganho um mês novo também.
2/92
Ainda faltam quatro meses para o meu
próximo dia primeiro de julho, mas já estou ansioso (pois) não sei como
explicar às pessoas que o meu aniversário mudou de dia depois de tanto tempo,
como fazer isso sem parecer ridículo nem receber de troca aquele sorriso
malicioso, como encarar o olhar que meu irmão me faz sempre que me ouve falar…
desânimo repentino. 2/92
Comemoro dia primeiro, sábado, e
tudo bem. Não preciso explicar a ninguém o que aconteceu… 2/92 (ainda)
Paradoxalmente, me sinto mais
novo com este dia a mais em minha vida.
Estava
lendo até agora e senti uma vontade de escrever um pouco. Só hoje é que
percebi, mas a minha mente muda a cada instante, o fato de eu ter nascido antes
altera totalmente o meu passado; estranho, mas minhas experiências são outras
agora, uma mudança dinâmica ocorre, minha mente muda a cada instante, a cada
instante mudo e tenho a impressão de já ter escrito isso antes e há de haver
pessoas a jurarem que sim.
Ganhei ou perdi um dia? ora bolas um
dia não é nada comparado com a porção deles que já vivi e certamente ele se
dissipará em minha memória, em meus pensamentos, em meu passado, em suma em
mim. Mas é estranho, sem dúvida nenhuma é estranho. 3/92
Parece que tudo voltou ao normal, hoje voltei a
nascer no dia dois. Pareceu um sonho apenas, destes que se impregna. Escrever
um conto algum dia, antes que me esqueça. 3/92
Aqui
acabava este diário. Olhou em volta e viu um mundo diferente daquele com o qual
estava acostumado, sentiu-se mais velho e de repente cansado mas não se moveu,
ficou sentado naquela cadeira a pensar e a olhar aqueles papéis, aqueles
rabiscos que há de fazer sentido a alguém, isso há. Finalmente levantou-se com
calma, estava cansado e foi fazer um café, já era de casa. Ao pé da escada o
gato manhoso o esperava e ele o alimentou. Café e voltou a seu lugar que era no
andar de cima. Umas bolachas e subiu as escadas. No banheiro, um cabelo branco
que não estava lá antes, e lavou o rosto. Um cansaço imenso e sentou-se de novo
na cadeira de leitura. Revirou de novo a gaveta e achou uma outra folha.
Sem tempo para escrever, mas tudo
estabilizou afinal, não só recuperei o tempo perdido como também ganhei algumas
semanas a mais, já faz mais de dez dias que eu nasci no dia sete de agosto, sou
mais jovem e um pouco assustado com tudo isso, espero que pare afinal. 4/92
Aquilo voltou com mais intensidade,
mas só hoje no almoço é que eu percebi que nesta última semana envelheci mais
de dois meses. 5/92
Sem esperanças de estabilização:
envelheci anos de ontem para hoje. 5/92
Não achou mais nada nesta gaveta a respeito da
existência intermitente do amigo e ficou curioso para saber o final da estória
e pôs-se agora a remexer a última gaveta que faltava remexer com a certeza de
que lá encontraria a última frase, a derradeira e definitiva explicação para
tudo isto e ao mesmo tempo em que fuçava a gaveta ele ficava com um olho atento
esperando pelo amigo, esperando que o amigo fosse entrar por aquela porta daqui
a pouco, tão logo tivesse voltado a nascer em um dos inúmeros momentos que
permitisse tê-lo vivo hoje a entrar por aquela porta e a poder finalmente
conversar com ele.
Liverpool-Diamantina
1989-1992
[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]
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