quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo!

           
           Por um bom tempo, ainda sentiria na boca o gosto daquele sorvete de chocolate branco com cereja que tomei em Bahia Blanca no longínquo verão de 1979. De certa forma, ele sinalizou um momento especial da louca viagem que fiz com dois outros colegas em janeiro daquele ano. Antes de desfrutar o sorvete, toda uma viagem para entrar, via Paraguai, no norte da Argentina e um longo caminho até chegar a Bahia Blanca.
Sempre por via terrestre, os três mochileiros já estávamos cansados de dormir em trens, não raramente de carga, em vagões semivazios, sob pedras uma noite, tentar pregar os olhos em ônibus barulhentos e sem amortecedores, ou buscar um descanso que fosse em estações de cidades pequenas do interior do país vizinho, bancos desconfortáveis em corredores ruidosos e friorentos...
            Atravessamos todo o norte da Argentina assim. Resistência, Tucumán, Jujuy, Salta...
            Por vezes, eu me pergunto se ainda seria possível se fazer uma viagem como aquela em um mundo tão mais complicado e violento como o de hoje. Como ser acordado por um guarda de estação dentro de um vagão de trem de carga e, no máximo e sob sorrisos divertidos, ele só pedir para você sair? Como ser abordado, em uma das cidades fronteiriças com o Chile por soldados do exército à paisana (inconfundíveis pelo corte de cabelo) e, após checarem os documentos, ser liberado com um sorriso e um desejo de boa viagem após se certificarem, pelos passaportes, de que não éramos os inimigos do momento?
            Era a época da quase-guerra entre a Argentina e o Chile pelo canal de Beagle, tempos nervosos ao longo da extensa fronteira entre os dois países. Imagina que estávamos, Brasil, Argentina e Chile, em plenas ditaduras militares. Se fôssemos sensatos, mas não éramos, éramos jovens, mas se fôssemos, não éramos, isso é claro, mas se fôssemos não nos arriscaríamos tanto, tempos difíceis e cruéis. E como tudo deu certo ao final, apesar de tudo? Mistério que até hoje me pergunto como aconteceu.
            Mas sobrevivemos, aos trens de cargas e aos milicos da fronteira e, com sequelas é claro, às ditaduras. Sobrevivemos aos sonhos inquietos, às inseguranças da idade e, principalmente, às noites mal dormidas.
            Mais de trens do que de ônibus, mas também de ônibus e poucas vezes de caronas, viajávamos de noite para economizar hotel, só um dos quinze dias dessa viagem maluca dormimos em um hotel, o que ainda não tinha acontecido quando saboreei o melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo! Bom, provavelmente o era...
Depois de vencermos o norte da Argentina, nós a cruzamos diagonalmente na direção de Bahia Blanca. O objetivo? Ir para a Patagônia e Bahia Blanca é a chamada porta de entrada da região. Um passeio pela cidade sem grandes atrativos, o tempo quente do verão, a sorveteria...
            Talvez tenham sido os efeitos do sorvete, tão bom que estava, mas acontece que em um dado momento, o da quinta cereja, talvez?, o cansaço desabou impiedosamente sobre mim, trazendo junto o esgotamento mental daquela minha primeira viagem internacional. Para ao menos dois terços de nosso grupo de três, o sorvete significava o momento do começo do retorno, a suspensão momentânea dos sonhos.
            E, ao menos para um terço do grupo, a mim ao menos, a viagem já tinha trazido a experiência buscada e já se estabelecera a vontade da volta, o tempo de retornar para casa, para o descanso e cultivo da memória da viagem e, é claro, o lento e inevitável planejamento da próxima. Há momento para cada coisa e aquele era o da volta.
            A Patagônia ficaria para um outro momento, ao menos para mim, e voltamos, dois terços do grupo de três, para Buenos Aires. Lá, a única noite em um hotel. No caminho, o companheiro mochileiro adoeceu e acabou voltando a São Paulo de avião. De minha parte, ainda teria que resistir a 48 horas de ônibus, e todo um caminho de ônibus de Buenos Aires a São Paulo via Porto Alegre e que, sei lá por que, evitou cortar caminho pelo Uruguai. Pouco dinheiro, já nem dava para parar em algum lugar mais.
            O interessante é que, uns treze anos depois, por motivos profissionais, foi bem a Bahia Blanca que retornaria em minha segunda viagem à Argentina, e ainda retornaria por ao menos uma meia dúzia de vezes mais. Trabalhar com colegas da universidade, ministrar minicursos, participar de congressos e quetais.
            Se eu fui atrás do sorvete de chocolate branco com cereja? Não, não fui e confesso que até pensei em ir, mas não. Preferi, ao final, manter a lembrança do momento maravilhoso vivido aos 18 anos e evitar a segura e decepcionante experiência de encontrar um ordinário sorvete de chocolate branco com cereja, como bem pode ser o caso.

            Há momentos para tudo e para cada coisa, que o sorvete permaneça na memória a que pertence...

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Exageros à parte

           


             E há de haver aqueles que hão de dizer que há de haver exageros nas estórias aqui relatadas envolvendo o Thio Therezo. E já houve até quem tivesse sugerido, com aquela ironia típica dos invejosos, que foi o Thio Therezo que ensinou o Pelé a cabecear...
            Exagero, pura maldade, inveja...

            Ou quase, pois, na realidade, já que tocaram no assunto... 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Lenda Urbana



Das lendas urbanas, há uma que o Thio Therezo acha das mais ridículas, a que insiste que ninguém, a menos de uns poucos eleitos dos deuses, conhece a fórmula exata da Coca-Cola. Muitos já devem ter escutado que existe apenas um papelzinho do começo do século passado guardado em um cofre de segurança máxima em Atlanta com a receita exata. Ou algo do tipo, em uma aproximação grosseira de uma possível realidade.
            Acontece que Thio Therezo, um dia, resolveu repetir a fórmula da bebida em nossa cozinha, nos intervalos em que mamãe fazia os deliciosos pastéis de carne (que a gente, em uma atitude puramente anarquista, fazia virar pastéis de arroz-feijão-carne) e os saborosos nhoques... mas cá estou eu me perdendo em reminiscências...
            Voltando, o Thio aproveitou um intervalo de descanso da mamãe, sua irmã predileta, e conseguiu, em nossa mal equipada cozinha, repetir a famosa fórmula de fabricação da Coca-Cola. Arranjou umas garrafas de vidro e as preencheu para servir em nosso almoço dominical.
            Nem mesmo papai, tão crítico com o Thio quanto era possível, percebeu qualquer diferença entre a bebida produzida localmente e a bebida comprada no supermercado.
            Acontece que vazou, a notícia de que o Thio tinha conseguido repetir artesanalmente a fórmula da Coca-Cola em uma cozinha comum de bairro logo tomou de assalto todos os principais jornais do mundo, para desespero dos donos da companhia fabricante de tal bebida. Como vazou, ninguém nunca soube direito, há quem afirme que o Thio se vangloriou do fato em algum bar de esquina, o que todos que o conhecemos duvidam imperiosamente, ele seria incapaz disso.
Há quem afirme que havia uma escuta ilegal na cozinha de mamãe e que tudo foi gravado/filmado. Mas ora! quem poderia sequer imaginar tal absurdo! O único segredo industrial que posso imaginar naquele ambiente é o da rapadurinha de amendoim que mamãe fazia e ninguém conseguia reproduzir...
            O fato foi que vazou, e percebemos isso quando a própria Coca-Cola foi a público, em um anúncio que poucos entenderam realmente mas que ao Thio Therezo ele estava claro demais, em um anúncio de página inteira de jornal negando qualquer vazamento da fórmula e dizendo ser absurda a versão, não confirmada ao ver deles, de que seria possível se repetir a fabricação da famosa bebida nas condições em que o boato insistia ter sido feita. Era, todos deveriam saber, o mais guardado segredo industrial da história da humanidade!!!! Nada disso, porém, impediu que toda a diretoria da Coca-Cola mundial coletivamente renunciasse dias após esse frustrado anúncio.
            Por dias, um carro estranho com vidros escuros ficou parado na esquina de casa e sentíamos que estávamos sendo vigiados. Até que um telefonema misterioso chamou o Thio para uma conversa. Ele, fã de filmes de espionagem, exigiu que essa reunião se desse em um lugar público e lá se foi o Thio para o McDonald´s da JK.
            Esperamos todos bastante apreensivos pela volta do Thio Therezo.
            Ele chegou rindo e, brindando com uma Pepsi-Cola, resumiu a todos nós a hilária conversa com os advogados da companhia em alguns pontos: que a Coca-Cola nada iria fazer a respeito pois de fato nada ocorrera e quem dissesse o contrário iria ser processado por calúnia; que o Thio Therezo ficasse tranquilo pois se algo acontecesse a ele, qualquer suspeita poderia recair sobre a companhia e isso eles não queriam (reconheceram, sem reconhecer, que o carro de vidro escuro parado na esquina de nossa casa no Itaim, era, na realidade, para a proteção da integridade do Thio); que todos esquecêssemos o ridículo caso, caso aliás que, para todos os efeitos práticos, não ocorrera. E só pediam em troca algo: que o Thio nunca tentasse fabricar a Coca-Cola, mesmo caseiramente, que isso era sabidamente impossível e que a única preocupação da companhia era apenas evitar que o Thio se desmoralizasse publicamente caso tentasse fazer algo impossível de ser feito. Pedir, foi modo de dizer, insinuaram apenas...
            O Thio ria dessa situação toda, ria e brindava... com uma Pepsi...
            Com o passar dos dias, o carro desapareceu, foi só o tempo suficiente de a mídia esquecer do que a companhia chamou de ignóbil boato totalmente desprovido de qualquer chance de se realizar. Mas, queiramos ou não, toda semana, um caminhão da Coca-Cola nos entrega algumas caixas da bebida, muito mais do que podemos sequer imaginar em beber. Isso, só para garantir que o Thio não tenha vontade da bebida e se meta a fabricá-la na cozinha...

            E o Thio, até hoje, ri da situação!