quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Nini - parte 2


            Mas esse jogo me excita. Tiro o que me resta de roupa e me acaricio, te imaginando aqui ao meu lado a me beijar, a me tocar, sim Nini, a beijar o que estou tocando. Mas não, Nini, por uma crueldade tua, ou do destino, ou do arquiteto que não fez o meu quarto no mesmo lugar da tua sala, sim por causa disso não estás aqui ao meu lado agora. Estás, isto sim, consideravelmente longe para aquilo que quero e imagino. Infinitamente longe e não é apenas física esta distância.
         Por um instante eu te perdi, Nini, pois sumistes para dentro do apartamento enquanto o teu bigodudo namorado ficava no sofá errado com as calças um tanto quanto mais justas do que quando chegou, provavelmente vindo naquela moto cuja marca eu não sei mas na qual estavam vocês dois, sim os dois, parados em frente à Brunella do Ibirapuera, naquele domingo em que eu também estava lá, não percebestes, é claro, mas eu estava lá na companhia dela. Mas eu te percebi e, disfarçadamente, às vezes te olhava sem sequer receber um sorriso, um único sorriso ao menos como troco. Crueldade, Nini.
            E tu demorastes a voltar à cena, Nini. Talvez, minha mente funcionava, tu espantada estivesse olhando a tua calcinha molhada pelos desejos, tão molhada quanto eu com este suor que percorre o meu corpo. Ou talvez até estivesses te excitando longe do teu bigodudo namorado, talvez até por vergonha ou recato. Ou não. Talvez, Nini, não sei, só estou especulando.
            E tu não voltastes à cena, àquela pequena cena que eu, com um pouco de esforço, consigo ver por detrás da fresta da janela. Além da sala consigo ver o quarto de teus pais, pelo menos eu acredito que aqueles dois os sejam. Ou talvez, quem sabe, tu serias uma órfã adotada por aquele simpático casal que já tinha duas filhas gordinhas e um rapaz como filhos. Mas isso, mania minha, seria complicar demais esta estória que para todos os efeitos é irreal porém verdadeira (ou ao contrário, não importa). Vamos então supor que aquele casal que dorme no quarto que eu consigo ver daqui sejam teus pais e em cujo quarto eu já flagrei tua mãe, mãe por suposição, trocando de roupa. Assim também como já flagrei tua irmã mais gordinha, sempre ela, experimentando uma roupa, talvez nova, na sala. Na certa a aproveitar o espelho que tem na sala em cima de certo sofá certo que vocês evitaram esta noite e que é o melhor para a minha visão como todos nós já sabemos.
            Mas não importam, Nini, nem a tua mãe, suposta mãe, nem a tua gordinha irmã, agora já inconfundível e sim tu Nini, que agora retornas à cena para alegria e espanto da galera vestindo aquele shorts que eu gosto tanto e que talvez ele, o bigode, também goste.
            E eu sei que tu, Nini, nunca irias vesti-lo para mim, tu que sequer sabes o nome daquele que te olha por detrás da fresta da janela e sequer desconfias disso, pelo menos assim penso eu. E mesmo que o soubestes, que soubestes que há alguém a te espreitar por detrás da janela do prédio ao lado do teu, mesmo assim não haverias de descobrir o meu nome. Não terias a mesma sorte que tive ao descobrir o teu nome em uma ruidosa festa de aniversário. E nem terias meios de me vigiar pois a dita cuja janela eu a mantenho fechada e, a menos que tu peças, assim ficarás. Não pedirás, não é Nini? Pois sequer sabes que…
            E o shorts com o qual entrastes na sala é aquele que me faz ter as melhores visões de ti e o que permites fazer com que o meu sangue irrigue as regiões apropriadas com maior intensidade. E que de costas, tu, Nini, me permites sentir melhor, mesmo à distância, tuas belas e joviais curvas que eu tanto gostaria de tocar e que alguém toca em meu lugar e tu Nini, charmosamente se desvencilha até o próximo ataque, que virá certamente e logo. Doce jogo do qual só participo à distância, me excitando.
            E o clima se aquece, tu por vezes cede um pouco mais e as mãos dele que não são as minhas percorrem por mais tempo a tua bundinha e tu rebolas, Nini, de um jeito que nunca tinha visto, pois sim tu estás em uma boa posição agora e com certeza ele também concorda com isto pois suas mãos te percorrem com mais intensidade e intimidade e tu Nini agora te permites ser acariciada e por vezes rebolas se esfregando no bigode que já não vejo mais pois ele está deitado no presentemente mal escolhido sofá, contigo por cima. Mas quem se importa em não vê-lo? O que importa é que te vejo, vejo tuas pernas arrepiadas ao menor toque, toque dele que não é melhor que o meu, tu sabes, Nini e só vejo o teu shorts diminuir a cada passada de mão dele pela tua bundinha, bela bundinha tu tens, Nini. E vocês se beijam e o calor me provoca mais suor. E tu Nini entreabre as pernas, esticadas e arrepiadas pernas, o bigode põe uma mão por entre elas até chegar onde eu queria chegar e agora, quando ainda estou de pau duro, tu rebolas toda, estás excitada Nini, posso ver que estás, tanto quanto eu estou. Mas não deixo de te olhar, não consigo evitar, tu não paras mais quieta, tu rebolas, te esfrega toda nele e ele te ajuda acariciando, eu me acariciando e o teu shorts, Nini, fica cada vez menor e me permite ver, quase, toda a tua bundinha e tu abres um pouco mais e mais as pernas e os dedos, os deles que por uma crueldade do destino não são os meus, os dedos chegam até onde deve estar molhado e tu gemes, não ouço, como poderia Nini? mas sinto.
            Vocês gemem.
            Eu também.
           E aquela cena ficou em minha mente. Tu, Nini, que fizestes que eu acordasse no meio da noite, suado e que só permitistes que eu dormisse três horas depois, tu, Nini, deve ter gozado no mesmo instante que eu. Eu senti isso. Tu apertastes tua bundinha, Nini, e os dedos do bigode, que na certa não são  melhores que os meus, tenha a certeza disso, eles chegaram ao molhado que tu até agora só permitira em sonhos. Eu ainda sonho, Nini.         
            Naquele dia que deve ter sido um sábado ou uma sexta-feira, deixei estes papéis em cima da mesa, bocejei e três horas após ter acordado, suando, dormi. Sozinho como em tantas noites anteriores daquele início de fevereiro do verão de 1986. E como as outras tantas seguintes em que ela não dormiria comigo. Noites em que dormiríamos mais sozinhos que todas as outras daqueles tempos.
            Ela não dormiria mais comigo.
            Nem tu, Nini.           
            Crueldade.

março/86 – maio/87
São Paulo - Liverpool



[[Esse conto, Nini, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada aqui no blog na semana passada]]

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Nini - parte 1


            Quando acordei, suando, à meia-noite daquele dia que deve ter sido um sábado ou uma sexta-feira, olhei ao redor e me vi sozinho, tão sozinho como nas tantas últimas noites eu tinha dormido e como nas tantas próximas noites também dormiria. Isso porque naquelas tantas noites quentes de fevereiro ela não dormiria comigo, nem ela nem ninguém mais. E na certa ela dormiria tão ou mais sozinha que eu naquelas tantas noites daquele verão do ano de 1986.
            Não era comum naqueles tempos dormirmos e acordamos juntos. Cada qual tinha o seu canto e após termos transado nos separávamos a menos que o cansaço não o permitisse. Naquele verão ela viajara, nem tudo era mais como era antes, e eu acordei, à meia-noite daquele dia que deve ter sido um sábado ou uma sexta-feira, sem encontrá-la ao meu lado e um tanto quanto perdido no mundo.
            E muito menos te encontrei, Nini, quando acordei, suando, após talvez um sonho ruim. Não que fosse possível, naqueles tempos, acordar ao teu lado; não o era certamente. Diria até que era impossível; pior, Nini, era inquestionavelmente impossível. Tanto quanto outras tantas coisas também inquestionavelmente impossíveis por aqueles dias. Mas naquele dia que deve ter sido uma sexta-feira ou um sábado (não me lembro, mas o que importa isso, Nini?), eu acordei, suando, à meia-noite e te procurei, mas tu, Nini, não estavas ao meu lado, nem na minha cama estavas; nem no meu quarto, sequer; nos meus sonhos deveria ter estado. Naquele dia eu esperava te encontrar, sei lá, talvez a expectativa, a dura expectativa do improvável e do impossível tivesse me seduzido. Mas tu não estavas lá e eu precisei de um tempo para me certificar disso e me convencer de que o que estava acontecendo era a realidade. Apenas a realidade.
            E neste instante em que eu, sentado à cama, enxugava o suor e me convencia de que estava vivo em um quarto que deve ser aquele do apartamento em que moro, naquele rápido instante em que eu me localizava no tempo, nesse instante me convenci de que não existe, infelizmente, Nini, mas esta é a realidade, o que se pode fazer? sim não existe uma minúscula probabilidade de que tu, Nini, possas repentinamente vir a acordar aqui, ao meu lado, nesta cama e que talvez durante o sono até travastes alguma batalha cruel comigo pelo único travesseiro que disponho, batalha esta que travo com ela nas poucas noites em que ela dorme aqui comigo, cada vez mais raras. Não, tenho a certeza, a probabilidade é nula. Irremediavelmente nula. Mas mesmo assim espero, mesmo assim esperei.
            Improvável, Nini, pois sequer te conheço direito e tu sequer imaginas que possa existir alguém, eu no caso, a te vigiar secreta e constantemente. Tu sequer desconfias que alguém, eu ao menos, te observa através das frestas da janela do apartamento que fica no prédio ao lado do teu. E tu não tens a menor ideia, não tens mesmo, Nini? de como é boa a visão que tenho de ti daqui do meu quarto. Apesar da crueldade do arquiteto que em vez de ter planejado o teu quarto ao meu alcance, fez a sala, Nini. Mas mesmo assim eu te vejo por vezes a passeares nela com o teu shorts, aquele que eu gosto, ou com tua calça preta justa. E por vezes até com a tua camisola, Nini, ao lado de tuas duas irmãs, que de início não conseguia distinguir direito uma da outra.
            Acontece, porém, Nini, que naquela noite em que eu acordei suando e após um copo d’água para refrescar e após ter me convencido vagarosamente de que vivo estava e que estava na cama do meu quarto acompanhado unicamente pelo meu único travesseiro, olhei pela fresta da janela e lá estavas tu, Nini, sentada naquele sofá que decididamente não é o melhor para a minha visão, sim Nini tu sabes que eu prefiro que te sentes no sofá da parede que tem o espelho, aquele do lado da porta, contíguo ao aparelho de som. Agora fico um pouco em dúvida se tu sabes disso realmente ou não. Mas de qualquer maneira tu estavas no sofá errado sentada junto ao teu bigodudo namorado. Os dois, sentados no sofá errado, a trocarem olhares de peixe. Os dois, vocês dois, a conversarem sobre algo que daqui não identifico e que sinceramente não me interessa nem um pouco.
            Nini, enquanto observava daqui da minha janela pensei no que sei de ti. Com certeza o teu nome, Nini, ou isso é um apelido? Com mais certeza ainda que moras no prédio ao lado do meu, ou ao menos assim penso eu. Deduzi que tens duas irmãs e um irmão que só aparece de vez em quando e um casal como pais. Mas crueldade, Nini, não sei mais nada a teu respeito. Não sei o que fazer, Nini, nem a tua idade. Para mim, tu tens dezessete. Acertei, Nini? Mas o que isso importa? E sim que vocês se beijavam, se esfregavam, às vezes trocavam frases. Sorriam, beijavam. E ele te tocava, ainda sem intimidades, em teu ventre, em tuas coxas e tu fingias estranhamento e se desvencilhavas. E tu fingias segurança e sorrias. Belo sorriso, Nini, eu queria te beijar, queria conhecer melhor esse sorriso que tu fizestes quando ele te tocava como muitas vezes eu pensei em te tocar, Nini. Sim, Nini, em muitas vezes eu já pensei nisso. É, Nini, penso em te tocar principalmente naqueles momentos em que estou espreitando por detrás da fresta da janela do meu quarto. Tal qual como naquele dia que deve ter sido uma sexta-feira ou um sábado e eu acordei, suando e solitário. Tal qual como naqueles tantos dias em que estive sozinho e a minha visa pesou em mim de uma maneira que nunca pesara antes. Principalmente nos momentos em que ela estava ao meu lado.
         E eu não conseguia dormir. Insônia sim, mas não por tua causa. E o meu único remédio sabe qual foi, Nini? foi me sentar e escrever algumas palavras, encadear frases de forma que parecessem algo, talvez um conto, uma carta, alguma bobagem qualquer, Nini. E nos intervalos das frases, nas entrelinhas, tu aparecias. Tu que estavas com a calça justa preta e aquele bigodudo namorado ao teu lado tocando teus seios cobertos por uma blusa, quem sabe até um sutiã. E tu, Nini, ah como gostaria de estar eu no lugar daquele bigode, sim e tu, Nini, com aquele sorriso afastavas a mão dele de teus seios cobertos por uma blusa cuja cor é uma incógnita agora em minha cabeça. Mas as mãos dele voltaram e tu, nos poucos momentos que permitias que elas se estacionassem sobre aquilo que tu tens embaixo da blusa e que eu neste instante me permito imaginar mesmo sem a tua autorização, sim o que tens embaixo da blusa são os seios mais firmes que jamais vi (ou que não vi, para ser mais exato), do tamanho exato que sempre sonhei tocar, com o biquinho sempre duro, ao menor toque duro; e para que a frase tenha sentido eu a termino: nestes momentos supra-citados tu sorrias e na certa gostavas (que mal há nisto, eu não estou fazendo nada, você também). Só que eu sei, tu sabes como eu, que com aquele sorriso dizias algo que ele, o bigode, não entenderia jamais. Aquele sorriso, a mim que de longe te observei e te saquei, era um pedido para que eu, sim Nini, eu colocasse as mãos debaixo de tua blusa, que a levantasse lentamente, sim, muito lentamente a blusa cuja cor eu não me lembro mais e descobrisse o que é melhor que os meus desejos. Nini, aquele sorriso me pedias isto: que eu descobrisse pela primeira vez, eu e não ele, os teus seios. Que na hora em que tua blusa desabasse ao chão eles estariam lá, durinhos, cobertos por algo que chamamos de sutiã, talvez não, sei lá, mas tal qual nenhum outro eu jamais vi. E eu os beijaria, vagarosamente da maneira que eu sei que tu gostas, enquanto isso tu gemerias. E eu lentamente os acariciaria direito com a mão direita enquanto a esquerda, livre, livre, tocaria tua face e…
            Mas não: a mão dele afastada, teus seios ainda cobertos, ela longe e eu atrás de uma janela a te espreitar, a me excitar. Tu não percebestes, Nini, mas naquele instante em que teus dedos tocaram os dele e caminharam juntos por um breve tempo e foram para onde deveriam (ao menos para que o jogo tivesse mais graça), sim, Nini, eu já estava excitado; não Nini, tu não percebestes pois estou aqui no escuro atrás de uma janela e daqui torço para que vocês mudem de sofá. Crueldade, Nini, pois o sofá deveria ser o outro. Como há tempos, no dia em que tua irmã mais gordinha, que eu demorei a distinguir de tua outra irmã (também gordinha) com o seu namorado (seu, Nini, não o teu) malharam no sofá certo. Só que o malho era diferente, Nini, pois ele inexperiente e incompetente nunca foi lá estas coisas, nunca foi direto ao assunto apesar do empenho sutil mas seguro de tua irmã, a mais gordinha, sim Nini, estou falando daquela que tem um namorado magérrimo com cara de babaca. Ela se esforçou ao máximo e ele se encabulou. É, Nini, por mais que ela se esforçasse, e ela o fez que eu vi, ele não entendia. E ele se encabulava e o máximo que aconteceu, pelo menos naquela sala e naquele sofá, o certo Nini, foi uma passadinha de mão na bundinha dela e, seguido de desculpas, um toquezinho nos seios. Sim, Nini, estavam no sofá certo mas não deu em nada. Por aquela noite eles ganharam o troféu casal incentivo 86, justo prêmio, sem ironias que eu não sou disso, à tua irmã que tanto fez para desinibir seu jovem e magérrimo namorado. O seu, Nini, já disse.



[[Esse conto, Nini, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]








[[ No próximo dia 30, domingo, participarei da FOLIO 2018 . Minha fala será no Museu Municipal de Óbidos às 11:20. Apareçam!!! Programação aqui.]]


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Gato - parte 2


            O teu olhar é confuso, gato demagógico, ele se alimenta de minha insegurança, ele percorre um longo caminho desde o momento em que sai de ti e passa por aquela fraca luz que tenho em cima da mesa e lentamente se desloca em toda a sala e se detém calmamente em cada detalhe. É, gato detalhista, tu te pegas aí, tu não te contentas em me olhar, tu examinas os detalhes enquanto eu só tinha te olhado passageira e prazeirosamente, mas hoje, quando tu já és rei absoluto gato magnânimo, quando tu já me observara o suficiente para me encarar e dominar, sim só hoje te percebo realmente pregado à parede e resolvo te admirar, conhecer os teus detalhes, as tuas táticas, a tua estratégia mas tu já tens a dianteira, gato veloz, pois tu me encaras de uma maneira toda tua e isso me atordoa e provavelmente é efeito do Calvados que trago sempre comigo nos momentos em que sento neste sofá e que penso em meus escritos, e escreva isto, gato analfabeto, tu não és nada mais que um gato preso preso à parede em frente ao sofá em que estou sentado, imóvel, sim sem poder me mexer pois tu já ocupastes a sala toda, já te senti em todo espaço disponível e por vezes tu vens até se sentar ao meu lado e em um belo movimento pula em cima da mesa ou vens roçar em minhas pernas, sim gato gordo tu passeias pela sala como se ela fosse tua e não é e tu bem sabes disso pois ela é minha assim como também tu és meu, te comprei em um leilão estúpido gato gordo, te lembras gato desmemoriado? Não? Pois eu te refrescarei a memória sim, te comprei e te preguei aí na parede e só então me dou conta da ridícula situação em que me encontro discutindo com um estúpido gato imbecil pregado na parede.
            Levanto-me, vou à janela, finjo te ignorar. Os barulhos da noite me excitam. Tento me acalmar, mas minhas mãos tremem. Penso em Susan. E em ti. Penso que poderíamos viver juntos, nos suportar. Mas tu me assustas, gato macabro, me encostas contra a parede, desmascaras este jogo cênico que temos, ela e eu. Querida não podemos viver juntos pois seria insuportável manter isso por muito tempo. Penso nisso. Nela. E em ti.
            Gato injusto, tu te intrometestes demais em minha vida; te cuida, olha que eu te defenestro, gato seguro. Me obrigastes a fazer algumas coisas, a arranjar desculpas esfarrapadas, sei lá se ela desconfiou. Penso e algo me puxa de novo para o mesmo sofá, a mesma incômoda e não resolvida situação e eu volto tomando o cuidado de não pisar em ti que agora dorme ao lado do aparelho de som. Dormindo? Qual nada, teus olhos estão fixos em mim, fixos como na espera de algo, gato cuidadoso, gato paciente. E fixos permanecerão enquanto penso o que acontecera, em tudo que me fizestes nestas horas em que te admirei, gato manhoso.
            Apago a luz e teus olhos brilham no escuro. Não há meio de eu conseguir escapar, não há meio e no meio desta fumaça que produzo, o meu olhar continua a cruzar com o teu prazeiroso olhar, gato irônico e tu estás, novamente gato repetitivo, estás um passo adiante de mim pois enquanto penso em minha última jogada enquanto organizo a minha defesa tu planejas a próxima, o próximo ataque, tu sempre estarás um passo à frente. Mas estamos calmos os dois a nos estudarmos. Quem tomará a iniciativa, gato sereno?
            Sim, estamos há horas aqui a nos olharmos, a nos vigiarmos, a nos orientarmos. Tu, sério, não questiona o jogo, blefa o tempo todo, nunca muda tuas feições e eu, cada vez mais, mais assustado. Se tu ao menos soltastes uma risada forte e me destruísses de uma vez, se ao menos isso tu fizestes, mas qual, gato perverso, tu emudeces e permaneces parado, calado. Mas qual, gato risonho, tua risada é irônica, a do tipo que mata aos poucos, penetra devagarinho, segue com o sangue até os lugares mais inacessíveis, corrói lentamente até aniquilar. Mas qual, gato envolvente, olho no olho tu me conquistastes devagarinho e agora abocanha, me arranha todo. Gato maldito, a mesma pata que acariciou agora fere.
            O telefone toca e eu menciono o desejo de atender. Mas qual-o-quê, gato vigiador, tu não me deixas levantar, tu não me deixas nem esticar o braço e pegar o telefone que toca, é tão simples, não é? e atender ao telefone e ver se é ela a ligar, mas não, gato ditador, tu não me deixas, sequer isso, a simples opção para poder fazer isso sem a tua permissão, impossível permissão, pois sei que tu não permites, não é gato ignóbil? E o telefone toca, grita, esperneia, e eu penso que pode ser ela, é gato curioso, aquela que estava aqui ao meu lado e que expulsastes, tu fizestes isso, gato sarcástico que agora ri de minha impossibilidade de atender ao telefone e querer saber se é ela a querer saber de mim e é uma oportunidade, gato oportunista tu sabes disso, seria a oportunidade que eu teria de pedir ajuda, venha me resgatar querida, pode vir, venha rápido que eu respondo a todas as suas perguntas, até aquelas, mas me perdoe e tudo o mais que se diz nestas horas em que se está acuado por um gato preso à parede mas por favor, salve-me. Ilusão, não é gato desafiador, tu agora estás em cima do telefone ronronando, vigiando-o, desafiando-me. E o telefone toca. Gato injusto, eu te odeio.
            O telefone não toca mais, o relógio bate várias vezes, gritos nas ruas, os carros rareiam. Os barulhos da noite me perturbam, me assustam e estamos imóveis, ficamos imóveis horas e tu me velas, gato tranquilo. Me sinto cansado e não me movo, me sinto exausto, me sinto vazio, destruído, impotente. Tento acender um cigarro mas minhas mãos tremem.
            Gato vencedor, abaixo os olhos.
            Um longo tempo se passou até eu te olhar de novo, até conseguir isso. Estranho gato, sei que me velavas com complacência e por isso não te olhei. Sei que estavas com pena e sabes que eu odeio isso. Até isso tu sabes. Até disto tu aproveitastes. Não tenhas pena, gato caroca, foi um jogo e eu perdi. Um jogo honesto; tu me desafiastes e eu topei as tuas malditas regras. Um perdedor, penso nela e na minha vida maldita.
            Pego o copo e ainda resta um pouco do Calvados que eu sempre trago comigo nestas noites, longas noites e que eu trago agora, com um trago do cigarro que indefectivelmente o acompanha, eu o bebo e por entre o copo te vejo gato a me olhar diferente com o mesmo olhar, na certa por que entre os nossos olhares agora tem um copo, mas percebi algo, gato imponente, o teu olhar me aniquilara, me destruíra, mas agora, gato salvador o mesmo olhar, este mesmo olhar que agora brilha com a luz da manhã, é gato altivo, ela reflete em ti e te muda, muda o teu pelo agora mais brilhante mas o olhar não, o mesmo olhar agora me resgata. Tu sequer destes uma piscada e se destes não vi, e no entanto, sim no entanto, o teu olhar me remonta agora, junta todas as peças uma a uma. Já consigo me mover, gato bondoso.
            Já posso me mover, posso me levantar. Sou livre para isso. Mas isso não me interessa mais, tu já me dominastes e mesmo tendo me libertado agora sei que perdi algo esta noite. Sim, perdi algo neste estúpido jogo de olhares a que nos obrigamos e tu não perdestes nada.
            Tu és o mesmo desde ontem à noite.
            Eu não, lindo gato.
            Mas ninguém saberá disso, não é gato calado? Se eu quisesse agora mesmo eu te mandava embora, é tão fácil, te jogava no fogo e te queimava inteiro. Churrasquinho de gato, servido?
            E com certeza conseguirei convencê-la de que nada houve, que eu estava um pouco cansado, só isso. Isso acontece, gato mentiroso, sim querida estou bem, uma boa noite de sono acerta a vida de qualquer um e provavelmente, com certeza, teremos uma grande noite, hoje à noite. Eu a beijarei, nos beijaremos e eu a acariciarei da maneira que ela gosta de fingir gostar após o nosso gostoso jogo de cena, o mesmo de sempre com as roupas, nos amaremos no sofá ou em cima da mesa após termos empurrado os...
            Que tenhas um bom dia, amado gato.

Janeiro – outubro/87
mar da Irlanda – Liverpool



[[Esse conto, Gato, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada aqui no blog na semana passada.]]

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Gato - parte 1


            Não faz uma hora e eu estava com ela, nós dois sentados no sofá. Beijava-a e isto era o começo de mais uma noite em que já tínhamos jantado, algum jogo de cena, alguma conversa totalmente desnecessária mas absolutamente essencial em nosso jogo e eu, calmamente, beijava-a e isto era o começo de algo, pois devagarinho minha mão a percorreria e ela ajudaria sem parecer ajuda e após aquele pequeno jogo que sempre fazemos com as roupas, sempre o mesmo, eu a beijaria e isto era o começo de fazermos amor, eu às vezes absorto pois me sentia cansado deste jogo, só às vezes claro. E eu a beijava e acabaríamos fazendo amor, ali no sofá, ou em cima da mesa após termos empurrado os pratos com a graça e os risos de sempre e estávamos sentados os dois a nos beijarmos e com certeza logo logo ela me perguntaria porque nós não morávamos juntos, isto após termos feito amor pois ela bem sabe que tal pergunta, se feita antes, apenas serviria pra me aborrecer e acabaríamos desistindo, eu acabaria desistindo, e eu a beijava pensando na pergunta que inevitavelmente viria e em que resposta daria e tudo o mais quando de repente te notei, gato espreitador, notei tua notável presença ali na sala a nos espreitar.
            Vigiava-me.
            Quietamente, observava-me.
        Tal descoberta me inquietou, desconcentrei-me mais ainda. Cada vez que olhava para ti, o mesmo olhar gato indiscreto, e eu que não tinha te percebido ainda notei tua imponente presença, teu irritante olhar enquanto, desconcentradamente, beijava-a e ela percebe algo e me pergunta e eu disfarço e a acaricio fingindo normalidade. Mas novamente me vem à mente as perguntas que ela certamente fará e eu a beijava e a acariciava enquanto ela fingia gostar, de olhos fechados, e os meus olhos, o teu olhar, gato, cruza com o meu e não me permite outra alternativa a não ser pedir desculpas a ela que agora me olha assustada com o biquinho do peito arrepiado e a dizer a ela, sim não tenho outra alternativa a não ser dizer a ela que estou um pouco cansado e que tenho coisas a fazer e que não me faça perguntas hoje, principalmente aquelas, isso pensei mas não disse e mais algumas coisas, sim me obrigastes a dizer outras coisas mais e a mentir a ela que agora vai embora um pouco desapontada, com razão eu sei, e ainda olha os pratos em cima da mesa sem saber o que de errado aconteceu conosco ou comigo e sem saber o real motivo de minhas atitudes que és tu, gato estranho. Estou te estranhando hoje por me obrigares a isso, e no mesmo instante, ouço a porta bater.
        Tratei de arrumar a mesa e a cozinha; à mesa disse que já podia ir dormir pois não precisaríamos mais dela. Na cozinha fiz o que sempre fazia: empilhava os pratos e talheres na pia até o inadiável dia de se limpar tudo. Arrumei-me um pouco na sala, uma bebida, algum livro por perto, talvez pensar um pouco em meus escritos, um Chick Corea a rodar.
            O luar entrava pela janela e refletia em teus olhos, gato noturno.        
            Sentei-me, meus olhos nos teus, risadas.
           – Precisamos conversar, gato danado. Como é que tu me fazes uma coisa destas?
            Rio.
            Leio um pouco.
            Estou tranquilo. Acho que, no fundo, o que eu mais precisava hoje era de uma noite calma. Eu te observo agora de novo, gato repetido. Estás quieto. Me olhas também. Me encaras tranquilamente. Temos tempo. Te comprei em um leilão, lembras? lembrei. Na tua primeira noite aqui, gato esquecido, ela também estava comigo aqui, aí eu te deixei encostado em um canto. Mas não, teu olhar forte, gato musculoso, me dá a impressão agora de que conhecestes toda a casa naquele dia e já agora estás a me olhar tão confiante, tão seguro. Tu me secas com a segurança de um dono, gato onipresente. Tu na certa aproveitastes daquela noite de liberdade e enquanto ela e eu fazíamos o que sempre fazemos, aquele jogo e coisa e tal que eu tanto gosto na maioria das vezes, tu estivestes livre e ocupastes a casa e a conhecestes mais do que eu a conheço, gato intruso. Sim, na certa não ficastes perdendo o teu tempo encostado em um canto, tu passeastes na certa, não é gato andarilho? Tanto que quando acordei tu estavas já ao meu lado, já a me vigiar, a nos vigiar, mas não te percebi ou ao menos não quis te perceber ali ao meu lado, ronronando, gato madrugador; não te percebi, confesso hoje.
            E naquele dia em que estive fora, tu aproveitastes e ocupastes a casa toda, gato dominador, foi isto ou não foi, gato insolente? tu fuçastes as minhas coisas, lestes os meus livros e revirastes minhas gavetas, gato fuçador, de tal maneira que quando te prendi à parede naquela segunda noite, naquela segunda à noite, tu já sabias tudo, tudo o que precisava saber para... 
            Foi meu segundo engano. Naquele dia te preguei na parede em frente ao sofá em que estou preso agora; eu te preguei, gato pregado, mas tenho a impressão, tenho a certeza de que és tu que me prende realmente e alguns dias se passaram, tolo engano eu fiz e tu aproveitastes dele, de meu segundo engano, pois em frente ao sofá onde gosto de ficar a pensar em meus escritos, em minha vida, tu me olhas com esta segurança de séculos, com este olhar de vidro, gato refletido, olhar refletido da luz do pequeno abajur que tenho na sala e que me acompanha nestas noites de pensamento. Tu me olhas, já há algum tempo mas eu não, só te percebi agora. Justo agora que Chick Corea já acabou sua performance mas o disco ainda rodará por algum tempo pois eu não irei mudá-lo. Nossa troca de olhares começa a me interessar mais, gato intrigante, e um silêncio repentino invade a sala. Um silêncio.
            Queres saber de algo, gato atlético, tu és forte.
         Penso nisto enquanto bebo um gole a mais do Calvados que tenho à minha frente e enquanto penso em tudo o que ocorrera até chegarmos a esta noite e, enquanto tento me organizar mentalmente, tento me convencer de uma porção de coisas e enquanto tento me achar tão forte como tu e enquanto te olho e sei que da mesma maneira que eu te olho sob esta luz fraca que temos aqui em minha sala tu também me olhas, tu me checas com a lente que é teu olho que não deixa passar nada desapercebido e que, tenho a certeza, é de onde vem a tua força.
            Da mesma maneira que eu agora quero te conhecer, tu também queres a mim e nos obriga a esta troca de olhares. Eu, olhando este quadro que és tu, gato enquadrado, me secando com este maldito olhar que comprei em um leilão. Te comprei e sou teu dono mas isso, isso é uma pena, não me faz mandar em ti e tu sabes disso, tu me desafias, tu me encaras e dita as regras. Tudo bem gato blefador, aceito o jogo. Vamos a ele.
            Outro gole (eu disse golpe?) de Calvados e tento me achar tão forte quanto tu és e penso em tudo que...




[[Esse conto, Gato, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]