Quando
acordei, suando, à meia-noite daquele dia que deve ter sido um sábado ou uma
sexta-feira, olhei ao redor e me vi sozinho, tão sozinho como nas tantas
últimas noites eu tinha dormido e como nas tantas próximas noites também
dormiria. Isso porque naquelas tantas noites quentes de fevereiro ela não
dormiria comigo, nem ela nem ninguém mais. E na certa ela dormiria tão ou mais
sozinha que eu naquelas tantas noites daquele verão do ano de 1986.
Não
era comum naqueles tempos dormirmos e acordamos juntos. Cada qual tinha o seu
canto e após termos transado nos separávamos a menos que o cansaço não o
permitisse. Naquele verão ela viajara, nem tudo era mais como era antes, e eu
acordei, à meia-noite daquele dia que deve ter sido um sábado ou uma sexta-feira,
sem encontrá-la ao meu lado e um tanto quanto perdido no mundo.
E
muito menos te encontrei, Nini, quando acordei, suando, após talvez um sonho
ruim. Não que fosse possível, naqueles tempos, acordar ao teu lado; não o era
certamente. Diria até que era impossível; pior, Nini, era inquestionavelmente
impossível. Tanto quanto outras tantas coisas também inquestionavelmente
impossíveis por aqueles dias. Mas naquele dia que deve ter sido uma sexta-feira
ou um sábado (não me lembro, mas o que importa isso, Nini?), eu acordei,
suando, à meia-noite e te procurei, mas tu, Nini, não estavas ao meu lado, nem
na minha cama estavas; nem no meu quarto, sequer; nos meus sonhos deveria ter
estado. Naquele dia eu esperava te encontrar, sei lá, talvez a expectativa, a
dura expectativa do improvável e do impossível tivesse me seduzido. Mas tu não
estavas lá e eu precisei de um tempo para me certificar disso e me convencer de
que o que estava acontecendo era a realidade. Apenas a realidade.
E
neste instante em que eu, sentado à cama, enxugava o suor e me convencia de que
estava vivo em um quarto que deve ser aquele do apartamento em que moro,
naquele rápido instante em que eu me localizava no tempo, nesse instante me
convenci de que não existe, infelizmente, Nini, mas esta é a realidade, o que
se pode fazer? sim não existe uma minúscula probabilidade de que tu, Nini,
possas repentinamente vir a acordar aqui, ao meu lado, nesta cama e que talvez
durante o sono até travastes alguma batalha cruel comigo pelo único travesseiro
que disponho, batalha esta que travo com ela nas poucas noites em que ela dorme
aqui comigo, cada vez mais raras. Não, tenho a certeza, a probabilidade é nula.
Irremediavelmente nula. Mas mesmo assim espero, mesmo assim esperei.
Improvável, Nini, pois sequer te
conheço direito e tu sequer imaginas que possa existir alguém, eu no caso, a te
vigiar secreta e constantemente. Tu sequer desconfias que alguém, eu ao menos,
te observa através das frestas da janela do apartamento que fica no prédio ao
lado do teu. E tu não tens a menor ideia, não tens mesmo, Nini? de como é boa a
visão que tenho de ti daqui do meu quarto. Apesar da crueldade do arquiteto que
em vez de ter planejado o teu quarto ao meu alcance, fez a sala, Nini. Mas
mesmo assim eu te vejo por vezes a passeares nela com o teu shorts,
aquele que eu gosto, ou com tua calça preta justa. E por vezes até com a tua
camisola, Nini, ao lado de tuas duas irmãs, que de início não conseguia
distinguir direito uma da outra.
Acontece,
porém, Nini, que naquela noite em que eu acordei suando e após um copo d’água
para refrescar e após ter me convencido vagarosamente de que vivo estava e que
estava na cama do meu quarto acompanhado unicamente pelo meu único travesseiro,
olhei pela fresta da janela e lá estavas tu, Nini, sentada naquele sofá que
decididamente não é o melhor para a minha visão, sim Nini tu sabes que eu
prefiro que te sentes no sofá da parede que tem o espelho, aquele do lado da
porta, contíguo ao aparelho de som. Agora fico um pouco em dúvida se tu sabes
disso realmente ou não. Mas de qualquer maneira tu estavas no sofá errado
sentada junto ao teu bigodudo namorado. Os dois, sentados no sofá errado, a
trocarem olhares de peixe. Os dois, vocês dois, a conversarem sobre algo que
daqui não identifico e que sinceramente não me interessa nem um pouco.
Nini,
enquanto observava daqui da minha janela pensei no que sei de ti. Com certeza o
teu nome, Nini, ou isso é um apelido? Com mais certeza ainda que moras no
prédio ao lado do meu, ou ao menos assim penso eu. Deduzi que tens duas irmãs e
um irmão que só aparece de vez em quando e um casal como pais. Mas crueldade,
Nini, não sei mais nada a teu respeito. Não sei o que fazer, Nini, nem a tua
idade. Para mim, tu tens dezessete. Acertei, Nini? Mas o que isso importa? E
sim que vocês se beijavam, se esfregavam, às vezes trocavam frases. Sorriam,
beijavam. E ele te tocava, ainda sem intimidades, em teu ventre, em tuas coxas
e tu fingias estranhamento e se desvencilhavas. E tu fingias segurança e
sorrias. Belo sorriso, Nini, eu queria te beijar, queria conhecer melhor esse
sorriso que tu fizestes quando ele te tocava como muitas vezes eu pensei em te
tocar, Nini. Sim, Nini, em muitas vezes eu já pensei nisso. É, Nini, penso em
te tocar principalmente naqueles momentos em que estou espreitando por detrás
da fresta da janela do meu quarto. Tal qual como naquele dia que deve ter sido
uma sexta-feira ou um sábado e eu acordei, suando e solitário. Tal qual como
naqueles tantos dias em que estive sozinho e a minha visa pesou em mim de uma
maneira que nunca pesara antes. Principalmente nos momentos em que ela estava
ao meu lado.
E eu não conseguia dormir. Insônia sim, mas não por
tua causa. E o meu único remédio sabe qual foi, Nini? foi me sentar e escrever
algumas palavras, encadear frases de forma que parecessem algo, talvez um
conto, uma carta, alguma bobagem qualquer, Nini. E nos intervalos das frases,
nas entrelinhas, tu aparecias. Tu que estavas com a calça justa preta e aquele
bigodudo namorado ao teu lado tocando teus seios cobertos por uma blusa, quem
sabe até um sutiã. E tu, Nini, ah como gostaria de estar eu no lugar daquele
bigode, sim e tu, Nini, com aquele sorriso afastavas a mão dele de teus seios
cobertos por uma blusa cuja cor é uma incógnita agora em minha cabeça. Mas as
mãos dele voltaram e tu, nos poucos momentos que permitias que elas se
estacionassem sobre aquilo que tu tens embaixo da blusa e que eu neste instante
me permito imaginar mesmo sem a tua autorização, sim o que tens embaixo da
blusa são os seios mais firmes que jamais vi (ou que não vi, para ser mais
exato), do tamanho exato que sempre sonhei tocar, com o biquinho sempre duro,
ao menor toque duro; e para que a frase tenha sentido eu a termino: nestes
momentos supra-citados tu sorrias e na certa gostavas (que mal há nisto, eu
não estou fazendo nada, você também). Só que eu sei, tu sabes como eu, que
com aquele sorriso dizias algo que ele, o bigode, não entenderia jamais. Aquele
sorriso, a mim que de longe te observei e te saquei, era um pedido para que eu,
sim Nini, eu colocasse as mãos debaixo de tua blusa, que a levantasse
lentamente, sim, muito lentamente a blusa cuja cor eu não me lembro mais e
descobrisse o que é melhor que os meus desejos. Nini, aquele sorriso me pedias
isto: que eu descobrisse pela primeira vez, eu e não ele, os teus seios. Que na
hora em que tua blusa desabasse ao chão eles estariam lá, durinhos, cobertos
por algo que chamamos de sutiã, talvez não, sei lá, mas tal qual nenhum outro
eu jamais vi. E eu os beijaria, vagarosamente da maneira que eu sei que tu
gostas, enquanto isso tu gemerias. E eu lentamente os acariciaria direito com a
mão direita enquanto a esquerda, livre, livre, tocaria tua face e…
Mas não: a mão dele afastada, teus
seios ainda cobertos, ela longe e eu atrás de uma janela a te espreitar, a me
excitar. Tu não percebestes, Nini, mas naquele instante em que teus dedos
tocaram os dele e caminharam juntos por um breve tempo e foram para onde
deveriam (ao menos para que o jogo tivesse mais graça), sim, Nini, eu já estava
excitado; não Nini, tu não percebestes pois estou aqui no escuro atrás de uma
janela e daqui torço para que vocês mudem de sofá. Crueldade, Nini, pois o sofá
deveria ser o outro. Como há tempos, no dia em que tua irmã mais gordinha, que eu
demorei a distinguir de tua outra irmã (também gordinha) com o
seu namorado (seu, Nini, não o teu) malharam no sofá certo. Só que o malho era
diferente, Nini, pois ele inexperiente e incompetente nunca foi lá estas
coisas, nunca foi direto ao assunto apesar do empenho sutil mas seguro de tua
irmã, a mais gordinha, sim Nini, estou falando daquela que tem um namorado
magérrimo com cara de babaca. Ela se esforçou ao máximo e ele se encabulou. É,
Nini, por mais que ela se esforçasse, e ela o fez que eu vi, ele não entendia.
E ele se encabulava e o máximo que aconteceu, pelo menos naquela sala e naquele
sofá, o certo Nini, foi uma passadinha de mão na bundinha dela e, seguido de
desculpas, um toquezinho nos seios. Sim, Nini, estavam no sofá certo mas não
deu em nada. Por aquela noite eles ganharam o troféu casal incentivo 86,
justo prêmio, sem ironias que eu não sou disso, à tua irmã que tanto fez para
desinibir seu jovem e magérrimo namorado. O seu, Nini, já disse.
[[Esse conto, Nini, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]
[[ No próximo dia 30, domingo, participarei da FOLIO 2018 . Minha fala será no Museu Municipal de Óbidos às 11:20. Apareçam!!! Programação aqui.]]
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