quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Gato - parte 2


            O teu olhar é confuso, gato demagógico, ele se alimenta de minha insegurança, ele percorre um longo caminho desde o momento em que sai de ti e passa por aquela fraca luz que tenho em cima da mesa e lentamente se desloca em toda a sala e se detém calmamente em cada detalhe. É, gato detalhista, tu te pegas aí, tu não te contentas em me olhar, tu examinas os detalhes enquanto eu só tinha te olhado passageira e prazeirosamente, mas hoje, quando tu já és rei absoluto gato magnânimo, quando tu já me observara o suficiente para me encarar e dominar, sim só hoje te percebo realmente pregado à parede e resolvo te admirar, conhecer os teus detalhes, as tuas táticas, a tua estratégia mas tu já tens a dianteira, gato veloz, pois tu me encaras de uma maneira toda tua e isso me atordoa e provavelmente é efeito do Calvados que trago sempre comigo nos momentos em que sento neste sofá e que penso em meus escritos, e escreva isto, gato analfabeto, tu não és nada mais que um gato preso preso à parede em frente ao sofá em que estou sentado, imóvel, sim sem poder me mexer pois tu já ocupastes a sala toda, já te senti em todo espaço disponível e por vezes tu vens até se sentar ao meu lado e em um belo movimento pula em cima da mesa ou vens roçar em minhas pernas, sim gato gordo tu passeias pela sala como se ela fosse tua e não é e tu bem sabes disso pois ela é minha assim como também tu és meu, te comprei em um leilão estúpido gato gordo, te lembras gato desmemoriado? Não? Pois eu te refrescarei a memória sim, te comprei e te preguei aí na parede e só então me dou conta da ridícula situação em que me encontro discutindo com um estúpido gato imbecil pregado na parede.
            Levanto-me, vou à janela, finjo te ignorar. Os barulhos da noite me excitam. Tento me acalmar, mas minhas mãos tremem. Penso em Susan. E em ti. Penso que poderíamos viver juntos, nos suportar. Mas tu me assustas, gato macabro, me encostas contra a parede, desmascaras este jogo cênico que temos, ela e eu. Querida não podemos viver juntos pois seria insuportável manter isso por muito tempo. Penso nisso. Nela. E em ti.
            Gato injusto, tu te intrometestes demais em minha vida; te cuida, olha que eu te defenestro, gato seguro. Me obrigastes a fazer algumas coisas, a arranjar desculpas esfarrapadas, sei lá se ela desconfiou. Penso e algo me puxa de novo para o mesmo sofá, a mesma incômoda e não resolvida situação e eu volto tomando o cuidado de não pisar em ti que agora dorme ao lado do aparelho de som. Dormindo? Qual nada, teus olhos estão fixos em mim, fixos como na espera de algo, gato cuidadoso, gato paciente. E fixos permanecerão enquanto penso o que acontecera, em tudo que me fizestes nestas horas em que te admirei, gato manhoso.
            Apago a luz e teus olhos brilham no escuro. Não há meio de eu conseguir escapar, não há meio e no meio desta fumaça que produzo, o meu olhar continua a cruzar com o teu prazeiroso olhar, gato irônico e tu estás, novamente gato repetitivo, estás um passo adiante de mim pois enquanto penso em minha última jogada enquanto organizo a minha defesa tu planejas a próxima, o próximo ataque, tu sempre estarás um passo à frente. Mas estamos calmos os dois a nos estudarmos. Quem tomará a iniciativa, gato sereno?
            Sim, estamos há horas aqui a nos olharmos, a nos vigiarmos, a nos orientarmos. Tu, sério, não questiona o jogo, blefa o tempo todo, nunca muda tuas feições e eu, cada vez mais, mais assustado. Se tu ao menos soltastes uma risada forte e me destruísses de uma vez, se ao menos isso tu fizestes, mas qual, gato perverso, tu emudeces e permaneces parado, calado. Mas qual, gato risonho, tua risada é irônica, a do tipo que mata aos poucos, penetra devagarinho, segue com o sangue até os lugares mais inacessíveis, corrói lentamente até aniquilar. Mas qual, gato envolvente, olho no olho tu me conquistastes devagarinho e agora abocanha, me arranha todo. Gato maldito, a mesma pata que acariciou agora fere.
            O telefone toca e eu menciono o desejo de atender. Mas qual-o-quê, gato vigiador, tu não me deixas levantar, tu não me deixas nem esticar o braço e pegar o telefone que toca, é tão simples, não é? e atender ao telefone e ver se é ela a ligar, mas não, gato ditador, tu não me deixas, sequer isso, a simples opção para poder fazer isso sem a tua permissão, impossível permissão, pois sei que tu não permites, não é gato ignóbil? E o telefone toca, grita, esperneia, e eu penso que pode ser ela, é gato curioso, aquela que estava aqui ao meu lado e que expulsastes, tu fizestes isso, gato sarcástico que agora ri de minha impossibilidade de atender ao telefone e querer saber se é ela a querer saber de mim e é uma oportunidade, gato oportunista tu sabes disso, seria a oportunidade que eu teria de pedir ajuda, venha me resgatar querida, pode vir, venha rápido que eu respondo a todas as suas perguntas, até aquelas, mas me perdoe e tudo o mais que se diz nestas horas em que se está acuado por um gato preso à parede mas por favor, salve-me. Ilusão, não é gato desafiador, tu agora estás em cima do telefone ronronando, vigiando-o, desafiando-me. E o telefone toca. Gato injusto, eu te odeio.
            O telefone não toca mais, o relógio bate várias vezes, gritos nas ruas, os carros rareiam. Os barulhos da noite me perturbam, me assustam e estamos imóveis, ficamos imóveis horas e tu me velas, gato tranquilo. Me sinto cansado e não me movo, me sinto exausto, me sinto vazio, destruído, impotente. Tento acender um cigarro mas minhas mãos tremem.
            Gato vencedor, abaixo os olhos.
            Um longo tempo se passou até eu te olhar de novo, até conseguir isso. Estranho gato, sei que me velavas com complacência e por isso não te olhei. Sei que estavas com pena e sabes que eu odeio isso. Até isso tu sabes. Até disto tu aproveitastes. Não tenhas pena, gato caroca, foi um jogo e eu perdi. Um jogo honesto; tu me desafiastes e eu topei as tuas malditas regras. Um perdedor, penso nela e na minha vida maldita.
            Pego o copo e ainda resta um pouco do Calvados que eu sempre trago comigo nestas noites, longas noites e que eu trago agora, com um trago do cigarro que indefectivelmente o acompanha, eu o bebo e por entre o copo te vejo gato a me olhar diferente com o mesmo olhar, na certa por que entre os nossos olhares agora tem um copo, mas percebi algo, gato imponente, o teu olhar me aniquilara, me destruíra, mas agora, gato salvador o mesmo olhar, este mesmo olhar que agora brilha com a luz da manhã, é gato altivo, ela reflete em ti e te muda, muda o teu pelo agora mais brilhante mas o olhar não, o mesmo olhar agora me resgata. Tu sequer destes uma piscada e se destes não vi, e no entanto, sim no entanto, o teu olhar me remonta agora, junta todas as peças uma a uma. Já consigo me mover, gato bondoso.
            Já posso me mover, posso me levantar. Sou livre para isso. Mas isso não me interessa mais, tu já me dominastes e mesmo tendo me libertado agora sei que perdi algo esta noite. Sim, perdi algo neste estúpido jogo de olhares a que nos obrigamos e tu não perdestes nada.
            Tu és o mesmo desde ontem à noite.
            Eu não, lindo gato.
            Mas ninguém saberá disso, não é gato calado? Se eu quisesse agora mesmo eu te mandava embora, é tão fácil, te jogava no fogo e te queimava inteiro. Churrasquinho de gato, servido?
            E com certeza conseguirei convencê-la de que nada houve, que eu estava um pouco cansado, só isso. Isso acontece, gato mentiroso, sim querida estou bem, uma boa noite de sono acerta a vida de qualquer um e provavelmente, com certeza, teremos uma grande noite, hoje à noite. Eu a beijarei, nos beijaremos e eu a acariciarei da maneira que ela gosta de fingir gostar após o nosso gostoso jogo de cena, o mesmo de sempre com as roupas, nos amaremos no sofá ou em cima da mesa após termos empurrado os...
            Que tenhas um bom dia, amado gato.

Janeiro – outubro/87
mar da Irlanda – Liverpool



[[Esse conto, Gato, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. A primeira parte foi publicada aqui no blog na semana passada.]]

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