quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Versão Beta



            O garoto abriu os olhos e, zumm, teve a impressão de que um Pikachu tinha se escondido no escuro de seu quarto, no friozinho daquela madrugada. Estranhou tal movimentação e com seus olhos ainda confusos, naquela fase que ainda se está meio dormindo meio acordado, tentou se focar para onde ele tinha ido. Zumm e o Pikachu ligeiro o distraiu de novo. Sua mão procurou o celular no criado mudo ao lado da cama. Mãos tateantes não o encontraram. Buscou a luz e acendeu. Deu de cara com o Pikachu que digitava algo no celular, exatamente no celular que não encontrara no criado mudo. O Pikachu levantou seus olhos e sorriu seu sorriso tristenigmático.
            Essa cena foi a última coisa que o garoto viu antes de ser capturado. 
            ****
            Os pais do garoto só se deram conta de seu desaparecimento quando, horas depois do amanhecer, eles foram buscá-lo em seu quarto.
            Desaparecido, BO feito, polícia acionada, os pais agora estão frente a frente a um grupo meio que heterogêneo. Tentavam se entender.
            “Não, senhora...“ dizia um dos engravatados do grupo, “não, por favor não coloque palavras em nossa boca. Sim, somos advogados e sim somos advogados dos criadores do Pokémon go, isso é público mas não, senhora, em nenhum momento dissemos que estamos aqui nessa função, e tampouco, senhora, pode-se inferir do que aqui falamos até agora que o suposto desaparecimento de seu querido filho tem a ver com a nossa presença aqui...”
            “Então por que essa visita?”
            “Senhora, senhor... só estamos aqui tentando ajudar no esclarecimento do suposto desaparecimento de seu querido filho.”
            Ao que o cara com cara de nerd falou:
            “Eu gostaria de examinar o quarto de seu filho...”
            “Mas a polícia já fez isso...”, disse o pai inconformado.
            “Mas não com a nossa tecnologia. Nós... ãhn... desenvolvemos uma versão Beta do Pokémon go que saiu um pouco de nosso controle... queremos ver se há algum vestígio dele no quarto de seu filho...”
            “Você acha que isto pode ter causado o desaparecimento de nosso filho?” perguntou o pai do garoto.
            “Ei... terei que interferir novamente”, o engravatado falou. “Ninguém aqui está sugerindo que essa suposta versão chamada de Beta, da qual, digamos de passagem, não há comprovação de existência alguma, tenha algo remotamente a ver com o suposto desaparecimento de seu filho.”
            O cara com cara de nerd pensou que sim, que a ligação entre os dois eventos estava mais do que evidente, mas nada disse, estava instruído por seu chefe a seguir as orientações dos engravatados. Além disso, a rigor, o único que importava agora era entender o que dera errado na versão Beta que ele desenvolvera...
            “... mas foi o que entendi do que ele falou”, a mãe retrucou apontando o cara com cara de nerd.
            “Senhora, cabe-me agora alertá-la severamente de que se a senhora continuar com essa linha de raciocínio, terei que tomar as devidas medidas jurídicas e elas não serão nem um pouco agradáveis, isso eu posso lhe garantir.”
            “Então eu peço que os senhores se retirem de minha casa...” retrucou o pai, agora já sem paciência para essa farsa.
            Ninguém se moveu. E foi aí que ficou claro aos pais do garoto que havia uma ordem judicial que dava total autonomia aos que lá se encontravam para proceder às buscas necessárias para se localizar, não o garoto pois isso aparentemente pouco interessava àquele grupo heterogêneo, mas sim o Pikachu Beta que escapuliu do sistema central da companhia. Como só se poderia imaginar, nenhum detalhe pode ser esclarecido pois o processo estava sob segredo de justiça, nem registro no sistema judiciário aparecia, tudo escondido como convém em certos casos...

***
            A adolescente pegou a bandeja com o seu combo de hambúrguer e foi comer em uma mesa isolada da lanchonete. Deixou o celular pink com orelha de coelhos na mesa por um instante enquanto saboreava as batatas fritas. Era meio da tarde e ela estava faminta. Tudo muito rápido, ela só percebeu que um Pikachu a olhava do lado oposto da mesa com o seu celular pink com orelha de coelhos nas mãos e sorriso tristenigmático. Mas já era tarde. Ainda trazia às mãos o hambúrguer que mal saboreou e mal teve tempo de sequer arregalar os olhos. Dez minutos depois, o sanduíche foi encontrado todo esparramado ao chão acompanhado de batatinhas e nenhuma câmera de segurança viu a adolescente sair da lanchonete.

***
            Ao serem consolidados os números de desaparecimentos sem explicações naquele par de meses de inverno, notou-se um estranho mas significativo crescimento nesse tipo de evento. Tão misterioso quanto esse aumento foi o repentino e inexplicável retorno desses números aos patamares anteriores após meras duas semanas. Erro estatístico, assim constou em inúmeros relatórios internos sobre esse assunto e, ordens superiores, não se fala mais nisso.

***
            O parque já estava vazio quando o corredor fazia seus exercícios ao final da tarde ouvindo música no celular. Ele notou então uma movimentação estranha por trás de umas árvores e o susto o fez derrubar o celular...
            Vamos dizer dessa maneira: ele nunca mais correu no parque...

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Pokémon fui!

     
        O Thio Therezo tem dessas coisas, quando encasqueta com algo tenta ir até o fim sem descanso. Foi o que aconteceu outro dia quando ele viu um Pokémon saindo de trás de sua cadeira de leitura predileta e, ainda mais, mostrando-lhe desaforadamente a língua. Era um Petxóli, o mais arisco e raro dos Pokémon dessas nossas bandas.
        Sem escolha, o Thio foi atrás do abusado, mas o Petxóli era muito escorregadio, escapava prá cá e prá lá. E a perseguição durou dias, esquinas, ladeiras,  estradas, horas e horas, parques, avenidas, bares (fizeram uma trégua um dia e até beberam uma cerva juntos e trocaram experiências de seus respectivos mundos), subiram colinas, atravessaram lagos, percorreram vilarejos e vilas e cidadezinhas e cidadezonas. Muita perseguição e quando se deram conta lá estava o Thio perseguindo o tal Pokémon pelas ladeiras íngremes de Diamantina. Estava muito difícil capturá-lo.
        Mas quando o arredio e esperto Petxóli se escafedeu prás bandas da Serra dos Cristais, o Thio achou que seria demais e desistiu, resignado, da caça.
        Não que o Thio já não tivesse tido uma grande cota de decepções ao longo de sua vida, mas essa foi dura. Deixar escapar um Pokémon que te mostra a língua (verde gritante listrada de amarelo limão, e ainda mais gosmenta...) está seguramente no rol das decepções de grande porte. 
        E decepções, sabemos, nos levam a rever prioridades na vida. 
        Em todo caso, essa aventura o levou de volta à Diamantina e, melhor ainda, em um fim de semana de Vesperata e isso é bão demais... Reviu amigos, em especial o Leonardo da Relíquias, esbaldou-se de cantar “peixe vivo” pelas ladeiras de pedra da cidade, esbanjou sorrisos, bebeu a sua cota de cachacim mineira, torresmim, docim de leite e tudo o mais a que se tem direito em uma cidade como aquela. 
        Foi tão bão que ele prometeu aos amigos que voltaria a Diamantina rapidim rapidim.
        No alvoroço do primeiro domingo depois que voltou dessa aventura, Thio comentou como quem não quer nada.
        - Sabe, pessoal... caçar Pokémon, visitar a Disney e fazer uma tradução das Lusíadas para o esperanto arcaico não estão dentre as minhas prioridades atuais...
        Senti uma tristeza em suas palavras, como se ele estivesse abrindo mão de algo importante na vida, mas, sei lá, pode ter sido só impressão.
        E quanto ao Petxóli, soubemos mais tarde que ele nunca foi perturbado na Serra dos Cristais. Casou-se, teve filhos e  passa suas tardes de domingo picando fumo na soleira da porta de sua casinha observando os elefantes amarelos de bolinhas escarlates que passeiam, obviamente voando, de um lado a outro na linha do horizonte.