quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Vinténs - IV

 


Mãos Ideais

 

          A primeira coisa que ele olhava em uma mulher eram as suas mãos, principalmente a esquerda que era a mais liberal delas.

          Dedos longos e finos, unhas curtas, uma aliança dourada e grossa no dedo anular... era o paraíso !

 

São Paulo, julho de 2010



Piadrez

 

          Nem sei se as aprendi direito, há controvérsias sobre isso, mas as duas coisas mais úteis de minha vida vieram das inúmeras horas em que passei à frente de um tabuleiro de xadrez ou de um teclado de piano. Em um, a antecipação dos lances e, no outro, a carícia no toque das teclas...

 

São Paulo, agosto de 2010



Lençol Trocado

 

          Ensopando de suor o lençol macio trocado há um par de horas à espera dele, ele ainda precisou de alguns segundos antes de levantar a cabeça, olhar para ela, ainda ofegante de prazer, e dizer:

          “Eu teria ficado muito triste se não tivesse nascido...”

 

São Paulo, fevereiro de 2012




[[Vinténs publicados no livro "Contos&Vinténs", Editora A Girafa, 2012]]

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Vila Viçosa - parte II

 


          A missa acabou e logo o pensamento das pessoas já começava a se dissipar para outros assuntos, já era tempo, o morto não merecia tanta consideração assim, nada de realmente importante ele fez na vida que merecesse constar nos anais. E o choro chorado pela família e amigos já estava mais do que bom para quem tantos dissabores trouxe a eles todos. Haverá então os que se concentrarão em seus próprios problemas e outros que só se sentirão seguros se incluírem também os dos demais, nada como a especulação sobre a vida alheia. Mas a interminável procissão dos que participaram da missa passou lentamente ao lado dela, cada um se perguntando o porquê da presença daquela vistosa mulher, de olhos vermelhos e nariz ligeiramente úmido olhando o vazio por trás de óculos escuros da moda.

          Se hoje é quinta-feira, logo a igreja ficará vazia, a praça ficará vazia, o dia ficará vazio naquela modorrenta e vazia vila. E logo, também, um homem sentará ao seu lado e puxará conversa, e ela responderá displicentemente meio caminho entre despachando um desconhecido impertinente e, outro extremo, fingindo um desinteresse falso frente a alguém que se quer punir. Mas apenas se hoje for quinta-feira, caso contrário, se hoje for quarta ou mesmo terça, aqui será um outro lugar e nada dessa conversa acontecerá, sem visível, ou audível, prejuízo a quem quer que seja. E se, por um acaso, hoje for sexta, então tudo será tarde demais, já as preocupações serão outras, em outro lugar, outras pessoas, as conversas com focos diferentes.

          Ela ainda tomou um banho, deixou a água morna acariciar todo o seu corpo assim como o lençol tinha feito horas antes, e tão gentilmente como os dedos dele, provavelmente, também o tinham feito. A água levou também o suor da noite, o dela e o dele, e junto as mágoas e junto as tristezas, e junto os desapontados pensamentos que ela trouxe para aquele quarto misterioso, para aquela cidade que não conseguia distinguir no dia da semana, para aquele momento que deveria ser só seu, o momento antes de retornar à tacanha rotina, ao convívio dos amigos infiéis e dos inimigos desleais. E se hoje é quinta, a conversa no banco da igreja que virá em um par de horas irá evoluir em boa direção, ela já pressente isso apesar de não saber com certeza, com ela já aparentando mais calma e ele mais segurança para seguir falando e falando coisas incompreensíveis e irrelevantes aos seus ouvidos. Ela, ainda meio que desanimada, após a missa, mas ainda sentada no banco da igreja, deixará ele falar à vontade, a sua voz de canto gregoriano a acalmava, seus olhos já perdiam a cor avermelhada e retomava o tom esverdeado que tanto chamava a atenção de quem cruzasse o seu improvável caminho. Eles irão, mais tarde, almoçar juntos naquele restaurante ao som do canário que não se cansava de saudar o dia caloroso e em companhia de alguns turistas e muitos moradores locais.

          À distância, parecerão até um casal amoroso, os olhos já livres dos óculos escuros, apesar do sol incessante e algum observador longínquo poderia até se perguntar quanto tempo eles se conheciam, se o leve toque dos dedos dele no braço dela significava alguma proximidade especial, e se a proximidade deles vista àquela distância significava intimidade, era essa a definição do paraíso: proximidade com intimidade. E se até era o mesmo casal que discutiu no carro no meio da manhã chamando a atenção de todos que por eles passavam, ela com certeza o era, mas o observador distante não poderia garantir que era ele ao volante. De qualquer forma, o forte dele deve ser a palavra, a voz sussurrante, o olhar baixo, tanto ele falou e tanto a fez sorrir, de início, e até rir em não poucos momentos.

          Quando ela saiu do prédio que continha aquele estranho quarto em que acordou, sem saber com quem dormira, mal sabia ela que sua quinta-feira iria terminar com ela voltando ao mesmo lugar, mãos roçando às dele, sorrisos ainda inibidos e sem saber ao certo com quem dormirá. Se o mês é julho, aquilo eram suas férias, e aquilo era o que planejara. Longe de tudo, era tudo o que queria. As lágrimas foram apenas um interlúdio entre dois momentos planejados de prazer, e se hoje é um dia ensolarado de julho, não há tempo para isso e se hoje é quinta, e se são terras alentejanas, é tempo ainda para se aproveitar e levantar os olhos e sorrir para ele que estava ao seu lado, sem nem sequer prestar muita atenção às suas gracinhas. E se hoje é quinta, é então o dia de terminar a noite roçando seu corpo ao dele, quem é ele mesmo que mal a conhece? É o mesmo com que dividiu a última noite? O mesmo com quem discutiu no carro? O mesmo dos pensamentos na matriz no topo da praça? Foi o olhar dele que seguiu seu vestido esvoaçante por trás dos óculos escuros e olhos tristes pela manhã? E será que quinta é repetição de quarta? E se hoje for um dia diferente, e se não for nenhum dos outros dois dias? E se hoje nem for julho? Pensamento recorrente que a sufocou enquanto lentamente se despia a ele mostrando sua alva pele macia, seus seios admiravelmente perfeitos, seus olhares esverdeados, excitando-o como há muito não sentira. E se hoje fosse o dia de voltar à sua vida tacanha, mesquinha, ao seu amor mal resolvido, o dia de atravessar o oceano e voltar ao inverno do país tropical?

          E se hoje é sexta-feira, essa escuridão atravessando a janela é apenas a madrugada silenciosa desse vilarejo alentejano. Um latido ao longe, um carro inesperado, o ressonar calmo dele que agora jaz morto de satisfação espalhado pela cama, corpo nu ridículo que mal combina com o dela, descombinaria até se estivesse vestido ou se hoje fosse outubro. Mas se realmente é sexta, aquela sexta que tanto temia, então aqui é o lugar final, já o lugar de arrumar suas coisas, vestir-se silenciosamente e sair deixando para trás nada de importante. Se hoje é sexta-feira, aqui é o lugar de retorno, o lugar de atravessar a porta com o seu corpo renovado. É o dia de sentir aquele estranho sentimento de renovação. Nada irá mudar de fato no lugar para o qual irá retornar, quer hoje seja terça ou sábado, mas já é sexta, e se hoje é sexta, aqui é o lugar de partida para o longo e doloroso retorno.

          Se hoje é domingo, este teto que ela vê ao abrir os olhos é o teto de sua casa, e, se hoje é realmente domingo, ao seu lado estará aquele que nunca a roçou do jeito que ela tanto esperava...


[[ Essa é a segunda parte do conto Vila Viçosa que aparece no meu livro de contos Contos&Vinténs  publicado pela Editora A Girafa em 2012. A primeira parte apareceu na semana passada]]


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Vila Viçosa - parte I

 


Nada é o que parece ser ao princípio.

Quando os seus pés apressados e impacientes cruzaram a imensa e pesada porta da igreja, já tudo era muito diferente do momento em que acordou, com impertinente ressaca, em uma cama desconhecida e sozinha, total e injustamente sozinha.

E nua, completamente nua.

Se hoje é terça, este quarto deve estar em Coimbra, foi o máximo que conseguiu pensar naquele momento em que abria os olhos na ressaquenta escuridão que a envolvia. No quarto, em uma talvez improvável terça, ela agora estava em dúvida quanto ao dia, uma grande cama desarrumada, um leve cheiro de amor mal feito, travesseiros jogados ao chão junto às suas roupas descuidadamente empilhadas, e só! Se hoje é terça, se hoje é realmente terça, aqui ainda deve ser Coimbra, era tudo o que ela conseguia pensar sozinha com a sua consistente e coerente dor de cabeça, o que mais poderia ela esperar naquele momento de pós-embriaguez?

          E quando os seus óculos escuros cruzaram a porta da igreja, no mesmo momento ou quiça um pouco depois de seus tremulantes pés, ela sabia que eles, os óculos escuros, estavam lá sobre o seu nariz apenas para cumprir a regimental função de disfarçar os seus olhos vermelhos. A sua surpresa em adentrar a igreja no exato momento em que o padre pregava, em sua melhor performance, assim acreditava ele, em homenagem ao morto de sete dias, só não foi maior que a dos presentes que, misturando o necessário respeito ao ritual que acompanhavam com uma natural curiosidade sobre aquela figura ali adentrando estabanadamente a igreja. Tão repentino movimento na porta da igreja, que trouxe consigo uma modorrenta lufada de vento, porém, não tirou a concentração do padre, um leve e imperceptível suspiro e só (só notado por poucas pessoas naquela penumbrosa igreja, a Chiquinha do quarteirão de baixo entre elas, tão atenta ela sempre esteve na vida com o que acontecia ao redor). Mas sua barulhenta entrada sim tirou a concentração de várias outras mulheres que desviaram, pensamentos e olhares, do morto e do padre, respectivamente, ou vice-versa, nem tudo é o que parece ao princípio. Inesperada entrada que provocou repentinos e maliciosos, porém incorretos, pensamentos em todos. Ela sabia, e talvez só ela tivesse aquela certeza, que não havia intersecção de sua vida com as dos presentes naquela missa, definitivamente não com o morto em questão ou mesmo com o padre. Mas, segredo algum, as especulações são livres.

          Desconforto maior ela sentiu ao se ver o foco das atenções logo após cruzar a imensa e pesada porta que, ainda mais, a fazia relembrar da infância, de como se sentia ínfima naqueles momentos espirituais frente a tantas crenças e rituais que nunca as atraiu.

          Mas se hoje é quarta-feira, então isso aqui não é um quarto em Coimbra, já não é Coimbra de forma alguma, pois Coimbra está intrinsicamente relacionado com terça. Estava nua e confusa naquela cama. Tentou achar vestígios de outros seres viventes que tenham estado por lá em um passado recente, mas nem sequer moscas, que moscas são comuns nesse calorzão insuportável. Se hoje é quarta, este não é o quarto em que esperava estar, se hoje é de fato quarta-feira, nada daquilo fazia sentido, nem a cama nem a falta de moscas, nem a igreja que iria visitar daqui a pouco, nem o padre nem o morto, nem os olhares furtivos ou os pensamentos incorretos. Faria sentido se estivesse em sua casa, mas não estava, não parecia estar. Deveria estar acordando após uma noite de amor com ele, mas não foi na companhia dele que ela acordou, disso tinha certeza, seu corpo e seus sentimentos sabiam muito bem como era despertar após uma noite com ele. Com quem teria então acordado senão com ele se hoje for quarta e, consequentemente, aqui não ser Coimbra?

          E se nada é o que parece ser, então estaremos todos definitivamente perdidos no tempo.

          Para chegar à igreja que, por sua central localização, agregava uma bela vista daquela cidade alentejana, ela teve que percorrer o largo canteiro central da avenida principal, íngreme passeio, deixando para trás além do escondido pelourinho, aquele calorzinho preguiçoso de cidades perdidas no tempo e a suposta usual siesta de começo de tarde. Ao atravessar uma das ruas, nesse ascendente caminho até a igreja, um carro parou bloqueando sua passagem e o motorista falou com ela. Um observador à distância acharia a cena estranha, os dois conversando, parecia até uma briga, um observador perto o suficiente para conseguir desconfiar que eles se conheciam, tanto que ela entrou no carro, e que a conversa não era fácil, por suas expressões e gritos, mas, ao mesmo tempo, suficientemente longe para não saber o que realmente ocorria naquele pequeno mundo envolvendo aqueles dois, ou seriam mais pessoas envolvidas? Um triângulo amoroso com o terceiro lado longe dali cuidando de sua vida e pensamentos, facilmente pensaria algum observador malicioso. A distância, ou a não familiaridade com a língua falada pelos dois, seguramente impediu o nosso atento, mas longínquo, observador de entender o que acontecia com aquele casal, fora ou dentro do carro. Poderia especular, e certamente o fez, mas não é o mesmo, não mesmo.

          Seus olhos vermelhos e magoados cruzavam agora a pesada porta da matriz, ela não merecia ter escutado tudo o que lhe foi dito pelo motorista do carro velho, a forma dura de dizer e igualmente dura de ouvir. Tão confusa estava que sequer prestou atenção que entrava no meio de uma missa de sétimo dia e só depois de sentada na última fileira foi que sentiu aquele desconforto etéreo no ar, estava inconscientemente invadindo um outro mundo, um mundo dos outros. Mas, se aquele interior de igreja fazia um gostoso contraponto ao calor exterior o que seguramente a fazia bem, a sua simples presença lá, sempre a sua presença, chamava a atenção em qualquer lugar que entrasse, luz própria que ofuscava todas as outras. A sua exuberante presença com óculos escuros escondendo os esverdeados olhos avermelhados só fazia crescer dúvidas e especulações nas mentes dos amigos e familiares do jovem morto há semana apenas, esposa grávida incluída, prima amante incluída, irmã confidente incluída, vizinha e amigos, tia invejosa... material para um conto por si só, drama comum a tantos vilarejos, alentejanos ou não, independentemente do dia da semana.

          Suas mágoas, a tristeza e o desapontamento acompanharam seus olhos úmidos, seus pés cambalheantes e seu nariz avermelhado para dentro da igreja para se encontrarem com os pensamentos suspeitosos e olhares furtivos e sermões não ditos e punições implícitas e dramas e mentiras que lá habitavam. Se hoje é quinta-feira, não é o dia apropriado para nada disso, quinta-feira é o dia de se espreguiçar na cama, se espalhar diagonalmente nela e sentir a pele roçar no lençol macio e recém trocado. Se hoje é quinta-feira, isso aqui é um lugar que demorará a ser reconhecido, ainda a preguiça antes de qualquer coisa, ainda o pensamento longe, a ressaca às vezes, o bem-estar pós-coito frequente. E o imenso tempo antes de se descobrir sozinha e sem recordações da última noite. O olhar ao redor buscando lentamente algum vestígio de que compartilhara a noite e o corpo e a cama e os sentimentos com alguém mais. Nada além da sensação, a inicialmente gostosa sensação daquele momento e que agora, naquele último banco da igreja manuelina, tinha se tornado um vazio e que, quinze minutos antes, era de rancor, sustentando os gritos com o motorista daquele carro que a parou na praça.


[[ Essa é a primeira parte do conto Vila Viçosa que aparece no meu livro de contos Contos&Vinténs  publicado pela Editora A Girafa em 2012. Na próxima semana, publicarei a sua complementação]]


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021