Nada
é o que parece ser ao princípio.
Quando os seus pés apressados e
impacientes cruzaram a imensa e pesada porta da igreja, já tudo era muito
diferente do momento em que acordou, com impertinente ressaca, em uma cama
desconhecida e sozinha, total e injustamente sozinha.
E nua, completamente nua.
Se hoje é terça, este quarto deve estar
em Coimbra, foi o máximo que conseguiu pensar naquele momento em que abria os
olhos na ressaquenta escuridão que a envolvia. No quarto, em uma talvez
improvável terça, ela agora estava em dúvida quanto ao dia, uma grande cama
desarrumada, um leve cheiro de amor mal feito, travesseiros jogados ao chão
junto às suas roupas descuidadamente empilhadas, e só! Se hoje é terça, se hoje
é realmente terça, aqui ainda deve ser Coimbra, era tudo o que ela conseguia
pensar sozinha com a sua consistente e coerente dor de cabeça, o que mais
poderia ela esperar naquele momento de pós-embriaguez?
E quando os seus óculos escuros cruzaram
a porta da igreja, no mesmo momento ou quiça um pouco depois de seus
tremulantes pés, ela sabia que eles, os óculos escuros, estavam lá sobre o seu
nariz apenas para cumprir a regimental função de disfarçar os seus olhos
vermelhos. A sua surpresa em adentrar a igreja no exato momento em que o padre
pregava, em sua melhor performance, assim acreditava ele, em homenagem ao morto
de sete dias, só não foi maior que a dos presentes que, misturando o necessário
respeito ao ritual que acompanhavam com uma natural curiosidade sobre aquela
figura ali adentrando estabanadamente a igreja. Tão repentino movimento na porta
da igreja, que trouxe consigo uma modorrenta lufada de vento, porém, não tirou
a concentração do padre, um leve e imperceptível suspiro e só (só notado por
poucas pessoas naquela penumbrosa igreja, a Chiquinha do quarteirão de baixo
entre elas, tão atenta ela sempre esteve na vida com o que acontecia ao redor).
Mas sua barulhenta entrada sim tirou a concentração de várias outras mulheres
que desviaram, pensamentos e olhares, do morto e do padre, respectivamente, ou
vice-versa, nem tudo é o que parece ao princípio. Inesperada entrada que
provocou repentinos e maliciosos, porém incorretos, pensamentos em todos. Ela
sabia, e talvez só ela tivesse aquela certeza, que não havia intersecção de sua
vida com as dos presentes naquela missa, definitivamente não com o morto em
questão ou mesmo com o padre. Mas, segredo algum, as especulações são livres.
Desconforto maior ela sentiu ao se ver
o foco das atenções logo após cruzar a imensa e pesada porta que, ainda mais, a
fazia relembrar da infância, de como se sentia ínfima naqueles momentos
espirituais frente a tantas crenças e rituais que nunca as atraiu.
Mas se hoje é quarta-feira, então isso
aqui não é um quarto em Coimbra, já não é Coimbra de forma alguma, pois Coimbra
está intrinsicamente relacionado com terça. Estava nua e confusa naquela cama.
Tentou achar vestígios de outros seres viventes que tenham estado por lá em um
passado recente, mas nem sequer moscas, que moscas são comuns nesse calorzão
insuportável. Se hoje é quarta, este não é o quarto em que esperava estar, se
hoje é de fato quarta-feira, nada daquilo fazia sentido, nem a cama nem a falta
de moscas, nem a igreja que iria visitar daqui a pouco, nem o padre nem o morto,
nem os olhares furtivos ou os pensamentos incorretos. Faria sentido se estivesse
em sua casa, mas não estava, não parecia estar. Deveria estar acordando após
uma noite de amor com ele, mas não foi na companhia dele que ela acordou, disso
tinha certeza, seu corpo e seus sentimentos sabiam muito bem como era despertar
após uma noite com ele. Com quem teria então acordado senão com ele se hoje for
quarta e, consequentemente, aqui não ser Coimbra?
E se nada é o que parece ser, então
estaremos todos definitivamente perdidos no tempo.
Para chegar à igreja que, por sua
central localização, agregava uma bela vista daquela cidade alentejana, ela
teve que percorrer o largo canteiro central da avenida principal, íngreme passeio,
deixando para trás além do escondido pelourinho, aquele calorzinho preguiçoso
de cidades perdidas no tempo e a suposta usual siesta de começo de tarde. Ao atravessar uma das ruas, nesse
ascendente caminho até a igreja, um carro parou bloqueando sua passagem e o
motorista falou com ela. Um observador à distância acharia a cena estranha, os
dois conversando, parecia até uma briga, um observador perto o suficiente para conseguir
desconfiar que eles se conheciam, tanto que ela entrou no carro, e que a
conversa não era fácil, por suas expressões e gritos, mas, ao mesmo tempo,
suficientemente longe para não saber o que realmente ocorria naquele pequeno
mundo envolvendo aqueles dois, ou seriam mais pessoas envolvidas? Um triângulo
amoroso com o terceiro lado longe dali cuidando de sua vida e pensamentos, facilmente
pensaria algum observador malicioso. A distância, ou a não familiaridade com a
língua falada pelos dois, seguramente impediu o nosso atento, mas longínquo,
observador de entender o que acontecia com aquele casal, fora ou dentro do
carro. Poderia especular, e certamente o fez, mas não é o mesmo, não mesmo.
Seus olhos vermelhos e magoados cruzavam
agora a pesada porta da matriz, ela não merecia ter escutado tudo o que lhe foi
dito pelo motorista do carro velho, a forma dura de dizer e igualmente dura de
ouvir. Tão confusa estava que sequer prestou atenção que entrava no meio de uma
missa de sétimo dia e só depois de sentada na última fileira foi que sentiu
aquele desconforto etéreo no ar, estava inconscientemente invadindo um outro
mundo, um mundo dos outros. Mas, se aquele interior de igreja fazia um gostoso
contraponto ao calor exterior o que seguramente a fazia bem, a sua simples presença
lá, sempre a sua presença, chamava a atenção em qualquer lugar que entrasse,
luz própria que ofuscava todas as outras. A sua exuberante presença com óculos escuros
escondendo os esverdeados olhos avermelhados só fazia crescer dúvidas e
especulações nas mentes dos amigos e familiares do jovem morto há semana
apenas, esposa grávida incluída, prima amante incluída, irmã confidente
incluída, vizinha e amigos, tia invejosa... material para um conto por si só,
drama comum a tantos vilarejos, alentejanos ou não, independentemente do dia da
semana.
Suas mágoas, a tristeza e o
desapontamento acompanharam seus olhos úmidos, seus pés cambalheantes e seu nariz
avermelhado para dentro da igreja para se encontrarem com os pensamentos
suspeitosos e olhares furtivos e sermões não ditos e punições implícitas e
dramas e mentiras que lá habitavam. Se hoje é quinta-feira, não é o dia
apropriado para nada disso, quinta-feira é o dia de se espreguiçar na cama, se
espalhar diagonalmente nela e sentir a pele roçar no lençol macio e recém
trocado. Se hoje é quinta-feira, isso aqui é um lugar que demorará a ser
reconhecido, ainda a preguiça antes de qualquer coisa, ainda o pensamento
longe, a ressaca às vezes, o bem-estar pós-coito frequente. E o imenso tempo
antes de se descobrir sozinha e sem recordações da última noite. O olhar ao
redor buscando lentamente algum vestígio de que compartilhara a noite e o corpo
e a cama e os sentimentos com alguém mais. Nada além da sensação, a inicialmente
gostosa sensação daquele momento e que agora, naquele último banco da igreja manuelina,
tinha se tornado um vazio e que, quinze minutos antes, era de rancor,
sustentando os gritos com o motorista daquele carro que a parou na praça.
[[ Essa é a primeira parte do conto Vila Viçosa que aparece no meu livro de contos Contos&Vinténs publicado pela Editora A Girafa em 2012. Na próxima semana, publicarei a sua complementação]]
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