A missa acabou e logo o pensamento das
pessoas já começava a se dissipar para outros assuntos, já era tempo, o morto
não merecia tanta consideração assim, nada de realmente importante ele fez na
vida que merecesse constar nos anais. E o choro chorado pela família e amigos
já estava mais do que bom para quem tantos dissabores trouxe a eles todos. Haverá
então os que se concentrarão em seus próprios problemas e outros que só se
sentirão seguros se incluírem também os dos demais, nada como a especulação
sobre a vida alheia. Mas a interminável procissão dos que participaram da missa
passou lentamente ao lado dela, cada um se perguntando o porquê da presença
daquela vistosa mulher, de olhos vermelhos e nariz ligeiramente úmido olhando o
vazio por trás de óculos escuros da moda.
Se hoje é quinta-feira, logo a igreja
ficará vazia, a praça ficará vazia, o dia ficará vazio naquela modorrenta e
vazia vila. E logo, também, um homem sentará ao seu lado e puxará conversa, e
ela responderá displicentemente meio caminho entre despachando um desconhecido
impertinente e, outro extremo, fingindo um desinteresse falso frente a alguém
que se quer punir. Mas apenas se hoje for quinta-feira, caso contrário, se hoje
for quarta ou mesmo terça, aqui será um outro lugar e nada dessa conversa
acontecerá, sem visível, ou audível, prejuízo a quem quer que seja. E se, por
um acaso, hoje for sexta, então tudo será tarde demais, já as preocupações
serão outras, em outro lugar, outras pessoas, as conversas com focos diferentes.
Ela ainda tomou um banho, deixou a
água morna acariciar todo o seu corpo assim como o lençol tinha feito horas
antes, e tão gentilmente como os dedos dele, provavelmente, também o tinham
feito. A água levou também o suor da noite, o dela e o dele, e junto as mágoas
e junto as tristezas, e junto os desapontados pensamentos que ela trouxe para
aquele quarto misterioso, para aquela cidade que não conseguia distinguir no
dia da semana, para aquele momento que deveria ser só seu, o momento antes de
retornar à tacanha rotina, ao convívio dos amigos infiéis e dos inimigos
desleais. E se hoje é quinta, a conversa no banco da igreja que virá em um par
de horas irá evoluir em boa direção, ela já pressente isso apesar de não saber
com certeza, com ela já aparentando mais calma e ele mais segurança para seguir
falando e falando coisas incompreensíveis e irrelevantes aos seus ouvidos. Ela,
ainda meio que desanimada, após a missa, mas ainda sentada no banco da igreja,
deixará ele falar à vontade, a sua voz de canto gregoriano a acalmava, seus
olhos já perdiam a cor avermelhada e retomava o tom esverdeado que tanto
chamava a atenção de quem cruzasse o seu improvável caminho. Eles irão, mais
tarde, almoçar juntos naquele restaurante ao som do canário que não se cansava
de saudar o dia caloroso e em companhia de alguns turistas e muitos moradores
locais.
À distância, parecerão até um casal
amoroso, os olhos já livres dos óculos escuros, apesar do sol incessante e
algum observador longínquo poderia até se perguntar quanto tempo eles se
conheciam, se o leve toque dos dedos dele no braço dela significava alguma
proximidade especial, e se a proximidade deles vista àquela distância
significava intimidade, era essa a definição do paraíso: proximidade com
intimidade. E se até era o mesmo casal que discutiu no carro no meio da manhã
chamando a atenção de todos que por eles passavam, ela com certeza o era, mas o
observador distante não poderia garantir que era ele ao volante. De qualquer
forma, o forte dele deve ser a palavra, a voz sussurrante, o olhar baixo, tanto
ele falou e tanto a fez sorrir, de início, e até rir em não poucos momentos.
Quando ela saiu do prédio que continha
aquele estranho quarto em que acordou, sem saber com quem dormira, mal sabia
ela que sua quinta-feira iria terminar com ela voltando ao mesmo lugar, mãos
roçando às dele, sorrisos ainda inibidos e sem saber ao certo com quem dormirá.
Se o mês é julho, aquilo eram suas férias, e aquilo era o que planejara. Longe
de tudo, era tudo o que queria. As lágrimas foram apenas um interlúdio entre
dois momentos planejados de prazer, e se hoje é um dia ensolarado de julho, não
há tempo para isso e se hoje é quinta, e se são terras alentejanas, é tempo
ainda para se aproveitar e levantar os olhos e sorrir para ele que estava ao
seu lado, sem nem sequer prestar muita atenção às suas gracinhas. E se hoje é
quinta, é então o dia de terminar a noite roçando seu corpo ao dele, quem é ele
mesmo que mal a conhece? É o mesmo com que dividiu a última noite? O mesmo com
quem discutiu no carro? O mesmo dos pensamentos na matriz no topo da praça? Foi
o olhar dele que seguiu seu vestido esvoaçante por trás dos óculos escuros e
olhos tristes pela manhã? E será que quinta é repetição de quarta? E se hoje
for um dia diferente, e se não for nenhum dos outros dois dias? E se hoje nem
for julho? Pensamento recorrente que a sufocou enquanto lentamente se despia a
ele mostrando sua alva pele macia, seus seios admiravelmente perfeitos, seus
olhares esverdeados, excitando-o como há muito não sentira. E se hoje fosse o
dia de voltar à sua vida tacanha, mesquinha, ao seu amor mal resolvido, o dia
de atravessar o oceano e voltar ao inverno do país tropical?
E se hoje é sexta-feira, essa
escuridão atravessando a janela é apenas a madrugada silenciosa desse vilarejo
alentejano. Um latido ao longe, um carro inesperado, o ressonar calmo dele que
agora jaz morto de satisfação espalhado pela cama, corpo nu ridículo que mal
combina com o dela, descombinaria até se estivesse vestido ou se hoje fosse
outubro. Mas se realmente é sexta, aquela sexta que tanto temia, então aqui é o
lugar final, já o lugar de arrumar suas coisas, vestir-se silenciosamente e
sair deixando para trás nada de importante. Se hoje é sexta-feira, aqui é o
lugar de retorno, o lugar de atravessar a porta com o seu corpo renovado. É o
dia de sentir aquele estranho sentimento de renovação. Nada irá mudar de fato
no lugar para o qual irá retornar, quer hoje seja terça ou sábado, mas já é
sexta, e se hoje é sexta, aqui é o lugar de partida para o longo e doloroso retorno.
Se hoje é domingo, este teto que ela vê ao abrir os olhos é o teto de sua casa, e, se hoje é realmente domingo, ao seu lado estará aquele que nunca a roçou do jeito que ela tanto esperava...
[[ Essa é a segunda parte do conto Vila Viçosa que aparece no meu livro de contos Contos&Vinténs publicado pela Editora A Girafa em 2012. A primeira parte apareceu na semana passada]]
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