quinta-feira, 28 de julho de 2016

Thio Therezo e o jogo de Bocha - parte 3 (e final)


[[as partes 1 e 2 do conto foram publicadas nas duas últimas semanas]]


      E a chave do mistério que o Thio investigava na republiqueta do time único de Bocha estava no colegiado de julgadores escalados para arbitrar o jogo e que só lá existia. 
      Outro dia mesmo, o Thio procurou, sem sucesso, as fotos que tirara dos jogos a que assistiu, e foram dois os organizados às pressas pelo governo, para nos explicar melhor os seus achados dessa fase. E o Thio nos relatou assim a transição, ou o que conseguira descobrir. Inicialmente, um julgador, desnecessário ao ver do Thio, arbitrava as questões polêmicas e expulsava os jogadores que não aceitavam suas decisões. Logo, o número de julgadores em cada jogo, nomeados pelo governo da republiqueta, foi crescendo até chegar a esse modelo de colegiado de julgadores, sete deles que arbitravam “ad hoc” as questões do jogo.
      Nesse momento, o Thio para um pouco a sua narração e comenta que, nas transmissões televisivas dos jogos naquela estranha republiqueta havia um comentarista especializado para a arbitragem, o que por si só foge totalmente à compreensão do Thio que achava que o que importava era o jogo, os jogadores, não os seus apêndices. Em todo caso, ele ressaltou que, no começo, haviam dois comentaristas, um para o andamento do jogo e outro para a arbitragem mas, com a instituição do colegiado de julgadores, logo as transmissões incorporaram o seu próprio time de comentaristas, um para cada julgador e um outro para os aspectos, digamos assim, mais esportivos do jogo. Com o tempo, esse isolado comentarista foi dispensado visto que, aparentemente, o jogo começou a transcorrer em torno das “data vênias” e pouco se falava de outros aspectos da partida, insignificâncias no ver de muitos.
      Mas estamos nos adiantando um pouco. Em paralelo à adoção de um colegiado de julgadores, o Thio descobriu que fora instituído a chamada regra da denunciação, pela qual um jogador poderia se dirigir a esse colegiado e delatar algum outro jogador do time adversário que tenha ou cometido alguma falta ou feito algum comentário que, no entender deles, possa ser considerado ofensivo. Após uma seletiva e isenta de isenção análise, o veredito era proferido pelo colegiado. Ou nada acontecia e o jogo prosseguia ou o jogador denunciado era sumariamente punido, seu time perdia pontos, enquanto que o time do delator era recompensado, por isso a regra era chamada de “regra da denunciação recompensada”. Discricionária que fosse, qualquer reclamação à sua atuação era duplamente punida pelo colegiado e desqualificada pelos comentaristas a postos junto ao narrador televisivo, em uma estranha, simbiótica e seletiva harmonia.
      Como só poderia acontecer, o time predileto, e sempre o há, do colegiado tinha todas as suas denunciações aceitas sem restrições enquanto que quaisquer denunciações contra tal time eram sumariamente ignoradas. E, como só poderia acontecer, times adversários a esse favorito foram minguando, por medo, exclusão, incorporação ou o que fosse e, ao final, só um time intacto restou ao final de uma das temporadas. Após as comemorações habituais, onde os derrotados têm que pagar uma rodada do prato típico da região feito de javali (por isso, o Thio comenta, a expressão usual naquela republiqueta de quem iria “pagar o javali”), percebeu-se as vantagens do time único. Não todos, é claro, mas a mídia tratou de isolar os que não conseguiam ver isso de forma clara.
      O Thio, insatisfeito com a constante presença de sombras ao seu redor, um dia conseguiu fugir dessa vigilância e, às escondidas, encontrou-se com um antigo jogador de um dos times que tinham desaparecido. Conversa franca e o Thio aprendeu muito sobre os detalhes dessa transição, inclusive muito do aqui relatado.
      A comissão especial reunia-se frequentemente para checar o andamento da investigação do Thio. Em uma dessas reuniões, que o Thio ainda não sabia que seria a última delas, após expor os seus achados, ele perguntou:
      - Fiquei com uma dúvida aqui... E quem julga os julgadores?
      O silêncio interminável que se seguiu fez com que o Thio percebesse a inconveniência da pergunta. Levantou seus olhos dos papéis que trazia às mãos e percebeu-se na penumbra das perguntas irrespondíveis.
      - Ora, Thio, quem julga os julgadores? Ninguém, e ninguém pelo simples fato que os julgadores não precisam serem julgados, são injulgáveis, isso é óbvio, até você deve ser capaz de entender isso... – essa foi a resposta que o Thio pensou ter escutado mas não escutou, pelo simples fato de que ela não foi dita. Claro era ser desnecessária a resposta, faces e olhares dizendo tudo o que era preciso ser dito naquela hora.
      A reunião terminou assim abruptamente, todos se levantando e deixando a sala, largando o Thio com seus papéis e dúvidas e sem respostas. 
      No dia seguinte, um grupo foi visitar o Thio Therezo no hotel logo no café da manhã. Insinuaram que o melhor seria que ele tivesse um imprevisto familiar e deixasse o país ainda naquele dia. O Thio que não é bobo nem nada e que, ademais, tem mais o que fazer, arrumou suas coisas e partiu no voo noturno, primeira classe ofertada pelo governo da republiqueta. Não interessou a ninguém essa saída repentina, nenhuma voz teve a permissão de se levantar, em um visível contraste com a efusiva recepção de semanas atrás. Aliás, a grande mídia local que tanto o exaltou, ignorou-o daquele dia em diante, história reescrita como sempre convém a certas elites eleitas pelos deuses.
      Na cidade em que houve troca de avião, ainda os repórteres queriam saber o que se passara mas o Thio apenas sorriu às perguntas e emendou um detalhamento de seus novos planos, que isso, ele sempre os terá. Foi também lá que ele soube da morte inesperada em um acidente doméstico do clandestino ex-jogador que tanto o ajudou a decifrar os pormenores dessa história.
      Ele só nos narra os fatos, tais e quais ocorreram e diz, jura até, que ainda não pensou na conclusão de seus achados, o que não acreditamos. Sábio e prudente que é, acho que o Thio Therezo prefere o silêncio nessas horas. 

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Thio Therezo e o jogo de Bocha - parte 2


[[ a primeira parte do conto foi publicada na semana passada]]

      O que realmente chamou a atenção do Thio naquela republiqueta vizinha ao reino do óleo fervente foi o fato de haver um único time de Bocha em todo o país, apesar de esse ser reconhecidamente o seu esporte nacional. E o Thio, curioso que é, resolveu passar um tempo por lá para entender esse fenômeno.
      A fama do Thio sempre o precede aos lugares que visita e lá, não foi diferente. Ainda mais que, como dissemos, o jogo de Bocha era o principal esporte do país e o Thio o seu mais exemplar jogador. Foi recebido em festa, coisa que, mesmo sendo normal ao Thio, muito ainda o surpreende. Ele não gosta de tantas homenagens e desfiles em carros abertos e banquetes, prefere a conversa respeitosa em grupos pequenos e os afagos carinhosos e sinceros. Geralmente, ele não consegue escapar da badalação e, resignado, prefere nesses momentos aceitá-la a ter que, novamente, explicitar possíveis recusas e ser considerado por demais arrogante e intratável.
      No banquete principal logo na primeira noite de sua estadia, ao anunciar aos seus anfitriões que a visita, por mais prazeirosa que fosse, tinha como intuito entender o processo que levou o país a ter um único time de Bocha, um silêncio o rodeou, olhares baixos o cercaram, sobrancelhas levantadas se fizeram notar na penumbra do salão.
      Cabe aqui um parêntesis sobre um detalhe que o Thio só nos confidenciou muito tempo depois. Tudo ali naquela republiqueta se dava na penunbra e, ao falar isso, o Thio por fim se atentou também ao fato de que ninguém por lá olhava diretamente nos olhos dos outros. Olhares baixos e envergonhados, silêncio constrangedor, sobrancelhas levantadas, tudo isso combina afinal com a penumbra de certas relações humanas. Mais sobre isso, o Thio não quis desenvolver, bastavam essas palavras, o que nós só percebemos, em toda extensão, ao final de seu relato. 
      Mas, voltando àquela noite, o banquete transcorreu e logo a conversa se animou quando um dos presentes à mesa, e sempre há um que se dá conta do constrangimento antes que os demais, resolveu mudar de assunto e logo estavam falando todos de assuntos frivobanais como convém a um banquete de recepção de uma mais do que ilustre personalidade internacional. E todos escutaram atentos, então, inúmeras histórias que Thio Therezo tem para contar. E como as há!
      No dia seguinte, o Thio ainda cultivava sua ressaca no hotel (ele confessou, a boca pequena, que exagerou um tantinho no aguardente local que, combinado com a mousse de mel de abelhas silvestres era fatal) quando recebeu uma comitiva de ministros governamentais que vinham por à sua disposição toda a estrutura necessária para a sua pesquisa que, ao ver deles, era meramente esportiva. Foi informado que uma comissão especial tinha sido criada para o auxiliar no que fosse e o Thio percebeu que não conseguiria ter sossego mais, tudo o que faria seria acompanhado de alguém dessa comissão. 
      Thio Therezo teve que ficar mais tempo por lá do que inicialmente planejava pois, com um único time disponível, os jogos se tornavam extremamente raros. Não que o governo não se empenhasse em antecipar algum jogo já programado para satisfazer a curiosidade do Thio e, assim, fazê-lo desistir dessa insana ideia de se compreender o que não deveria ser compreendido.
      Mas, tão logo ele se enturmou por lá, descobriu que, anos atrás, quando o penúltimo time deixou de existir, isso trouxe um certo estranhamento e por certo um visível constrangimento e os fãs do esporte tiveram que se contentar em assistir aos treinos. Com o tempo, organizaram-se jogos-treinos entre titulares e reservas. 
      É inquestionável a vantagem disso. Todos torcendo pelo mesmo time, e quem torceria pelos reservas? Os poucos rebeldes eram logo desencorajados e desqualificados em público pela grande mídia e tudo retornava ao que, no saber milenar daquele povo, deveria ser: todos do mesmo lado. É claro que, na ordem natural das coisas, os titulares do time de Bocha sempre ganhavam de seus reservas. Mesmo que necessitassem de alguma ajuda, institucional por assim dizer.
      As regras do jogo de Bocha são simples e cabem naturalmente em uma folha de papel. Isso desde que, par de décadas antes, uma comissão presidida por nosso Thio organizou formalmente tais regras, respeitando sempre aceitáveis variações culturais. Mas, o Thio bem sabia depois de longas noites de reflexão e frustração, que cada regra, mais simples e explícita que fosse, mais clara e consensual que fosse, admite variadas interpretações, as mais convenientes possíveis a quem foi concedido o poder divino para tal. Interpreta, desinterpreta ou reinterpreta quem pode, não quem quer.
      Mistério. O que o Thio gostaria de entender era como se deu a passagem de uma sociedade plural em times de Bochas (para todos os gostos, ideológicos ou não) a uma em que só um time era permitido, onde apenas um reinava. Logo percebeu que não se tratava de algo que acontecera ao acaso e tentou reconstituir a trajetória dessa mudança.
      Como um profundo estudioso do jogo de Bocha mundial, além de ter ganho inúmeros torneios a ponto de ser considerado o Pelé da Bocha (a boca pequena, e na maior brincadeira, como era bem o seu estilo, ele dizia que o Edson é que era o Thio do futebol...), o Thio sabia que, a rigor, não havia a necessidade de juiz, tão simples e explícitas as regras eram e, principalmente, pelo estrito código de ética que os jogadores assumiam, e cumpriam alegremente, quando praticavam esse jogo. Mas, surpresa, Thio Therezo logo percebeu que, na liga profissional daquela republiqueta, não só um juiz seria necessário, mas sim um colegiado de juízes, figuras que, lá, eram chamados de julgadores. 
      É isso, lá os juízes do jogo de Bocha eram chamados de julgadores e nunca soubemos o porquê, questões semânticas, claro era. O Thio ainda tentou nos explicar a diferença entre julgadores e juízes, algo a ver com uma sutileza envolvendo o difuso conceito de imparcialidade mas, mesmo com todo o arsenal didático que ele possui, o Thio não conseguiu nos dizer claramente qual era a diferença.
      E a chave do mistério estava nesse colegiado de julgadores...

[[ a terceira e última parte do conto será publicada na próxima semana]]

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Thio Therezo e o jogo de Bocha - parte 1


            Além de exímio jogador de Bocha, Thio Therezo é um profundo estudioso desse fascinante jogo. Desde suas origens históricas, e o Thio assessorou muitos arqueólogos nessa busca, até as influências sócio-culturais do jogo na sociedade moderna (o Thio descreve, frequente e divertidamente, a versão do Bocha Erótico, muito em voga nos delirantes anos 60´s), nada escapa ao seu arguto olhar quando se trata desse jogo. Sim, o Thio é o expert mundial nesse assunto.
Nem por isso, e ai devemos sempre lembrar da satânica inveja que frequentemente corroe os seus inimigos e o alcance de suas ações, o Thio fez parte da equipe brasileira que ganhou o campeonato mundial de Bocha em 2006, momento de auge do esporte nacional, só comparável, ao ver do Thio, ao penta do futebol ou às medalhas de nossos atletas no salto triplo. Sabemos todos o quanto não participar dessa conquista rendeu de sofrimento ao Thio, mas, justiça feita, ele foi o torcedor símbolo da equipe, mesmo à distância. E, no fundo, os campeões mundiais, seus chapas do dia a dia, reconhecem que, sem o decisivo apoio do Thio, mesmo nos bastidores, não teriam chegado a essa glória. Humilde que sempre foi, o Thio os proibiu de sequer mencionar isso em público para que essa importante vitória esportiva não fosse maculada pelas vozes de seus eternos detratores. Ele bem sabe o que faz.
            Lembro de uma vez em que um colega meu, éramos crianças então, perguntou ao Thio como era o jogo de Bocha.
            - Você conhece o jogo das vassourinhas? - o Thio perguntou ao meu colega.
            - Conheço sim...
            - Pois bem, é parecido, mas sem as vassourinhas... e sem o gelo. É claro, é uma versão mais antiga e, digamos assim, tropical...- emendou o Thio sem se preocupar em saber se isso traria mais confusão à mente desse meu desinformado amigo. Já a mente do Thio se ocupava de outras questões, enquanto nós partíamos rumo à escola, nem sei por que me lembrei disso agora...
            Em todo o caso, ele era indubitavelmente o expert do jogo e, por que não?, verdadeiro entusiasta de seus efeitos emocionais e terapêuticas sobre as sociedades humanas. Em uma de suas inúmeras insanas batalhas, tentou, junto ao COI, incluir o jogo como um dos eventos da Olimpíada e olha que ele tinha evidências mais do que incontestáveis de que esse jogo tinha sido a principal, não uma, mas a principal atração dos primeiros jogos na Grécia e isso não era pouca porcaria não...
            Mas suas falas sequer foram ouvidas no COI e, pela verdade, o Thio sabia perfeitamente que não era bem visto pelos suíços, conhecia de cor a rede de intrigas que havia tempos cercava sua relação com eles. Algo a ver com o relatório daquela comissão sobre a auto denominada transferência de obras de arte para o auto denominado país neutro à época da segunda guerra mundial e que o Thio tão competentemente presidiu. Ao que parece, as conclusões dessa dita comissão, séria que foi, não agradou totalmente aquele país que esperava atitudes mais condescendentes, ou condizentes eles diriam, ao seu eterno papel histórico. E o auto denominado pacífico país declarou guerra ao Thio por conta das conclusões dessa comissão, persona non grata ele virou sem clemência ou possibilidades de retratações...
            - Eita povinho prá guardar rancores... – foi o único que ouvimos dele, nesses anos todos, sobre tal assunto.
            Tentou também incluir o jogo de Bocha como patrimônio cultural da humanidade junto à ONU, mas, a despeito do grande respeito internacional que ele ostenta, certos grupos de interesses dúbios conseguiram brecar também essa iniciativa. Nem o Vaticano, que o apoiou nessa empreitada, conseguiu reverter isso e o Thio entendeu bem as dificuldades dessa batalha naquele específico momento político, o próprio Vaticano estava tendo suas próprias dificuldades internacionais à época.
            Não por menos, muito o surpreendeu o que aconteceu na pequena republiqueta vizinha ao reino do óleo fervente já aqui mencionado em outras crônicas. Tal republiqueta o surpreendeu não pelo fato de que sua bandeira homenageava valentes e gloriosos pitbulls locais, nem o fato da obrigatoriedade de consumo de uma especiaria bem típica da região feita de um espesso purê de batata roxa com carne de javali cozida lentamente em fornos enterrados nas vastas florestas e untada com mel das nativas e agressivas abelhas silvestres, difíceis de serem domesticadas. Toda sexta-feira, era obrigatório, consumia-se fartamente tal alimento e brindavam todos com o aguardente local a alegria de mais uma semana vivida.
            O que realmente chamou a atenção do Thio foi o fato de haver um único time de Bocha em todo o país, apesar de esse ser reconhecidamente o seu esporte nacional. E o Thio, curioso que é, resolveu passar um tempo por lá para entender esse fenômeno.

[[ a segunda parte do conto será publicada na próxima semana]]