quinta-feira, 21 de julho de 2016

Thio Therezo e o jogo de Bocha - parte 2


[[ a primeira parte do conto foi publicada na semana passada]]

      O que realmente chamou a atenção do Thio naquela republiqueta vizinha ao reino do óleo fervente foi o fato de haver um único time de Bocha em todo o país, apesar de esse ser reconhecidamente o seu esporte nacional. E o Thio, curioso que é, resolveu passar um tempo por lá para entender esse fenômeno.
      A fama do Thio sempre o precede aos lugares que visita e lá, não foi diferente. Ainda mais que, como dissemos, o jogo de Bocha era o principal esporte do país e o Thio o seu mais exemplar jogador. Foi recebido em festa, coisa que, mesmo sendo normal ao Thio, muito ainda o surpreende. Ele não gosta de tantas homenagens e desfiles em carros abertos e banquetes, prefere a conversa respeitosa em grupos pequenos e os afagos carinhosos e sinceros. Geralmente, ele não consegue escapar da badalação e, resignado, prefere nesses momentos aceitá-la a ter que, novamente, explicitar possíveis recusas e ser considerado por demais arrogante e intratável.
      No banquete principal logo na primeira noite de sua estadia, ao anunciar aos seus anfitriões que a visita, por mais prazeirosa que fosse, tinha como intuito entender o processo que levou o país a ter um único time de Bocha, um silêncio o rodeou, olhares baixos o cercaram, sobrancelhas levantadas se fizeram notar na penumbra do salão.
      Cabe aqui um parêntesis sobre um detalhe que o Thio só nos confidenciou muito tempo depois. Tudo ali naquela republiqueta se dava na penunbra e, ao falar isso, o Thio por fim se atentou também ao fato de que ninguém por lá olhava diretamente nos olhos dos outros. Olhares baixos e envergonhados, silêncio constrangedor, sobrancelhas levantadas, tudo isso combina afinal com a penumbra de certas relações humanas. Mais sobre isso, o Thio não quis desenvolver, bastavam essas palavras, o que nós só percebemos, em toda extensão, ao final de seu relato. 
      Mas, voltando àquela noite, o banquete transcorreu e logo a conversa se animou quando um dos presentes à mesa, e sempre há um que se dá conta do constrangimento antes que os demais, resolveu mudar de assunto e logo estavam falando todos de assuntos frivobanais como convém a um banquete de recepção de uma mais do que ilustre personalidade internacional. E todos escutaram atentos, então, inúmeras histórias que Thio Therezo tem para contar. E como as há!
      No dia seguinte, o Thio ainda cultivava sua ressaca no hotel (ele confessou, a boca pequena, que exagerou um tantinho no aguardente local que, combinado com a mousse de mel de abelhas silvestres era fatal) quando recebeu uma comitiva de ministros governamentais que vinham por à sua disposição toda a estrutura necessária para a sua pesquisa que, ao ver deles, era meramente esportiva. Foi informado que uma comissão especial tinha sido criada para o auxiliar no que fosse e o Thio percebeu que não conseguiria ter sossego mais, tudo o que faria seria acompanhado de alguém dessa comissão. 
      Thio Therezo teve que ficar mais tempo por lá do que inicialmente planejava pois, com um único time disponível, os jogos se tornavam extremamente raros. Não que o governo não se empenhasse em antecipar algum jogo já programado para satisfazer a curiosidade do Thio e, assim, fazê-lo desistir dessa insana ideia de se compreender o que não deveria ser compreendido.
      Mas, tão logo ele se enturmou por lá, descobriu que, anos atrás, quando o penúltimo time deixou de existir, isso trouxe um certo estranhamento e por certo um visível constrangimento e os fãs do esporte tiveram que se contentar em assistir aos treinos. Com o tempo, organizaram-se jogos-treinos entre titulares e reservas. 
      É inquestionável a vantagem disso. Todos torcendo pelo mesmo time, e quem torceria pelos reservas? Os poucos rebeldes eram logo desencorajados e desqualificados em público pela grande mídia e tudo retornava ao que, no saber milenar daquele povo, deveria ser: todos do mesmo lado. É claro que, na ordem natural das coisas, os titulares do time de Bocha sempre ganhavam de seus reservas. Mesmo que necessitassem de alguma ajuda, institucional por assim dizer.
      As regras do jogo de Bocha são simples e cabem naturalmente em uma folha de papel. Isso desde que, par de décadas antes, uma comissão presidida por nosso Thio organizou formalmente tais regras, respeitando sempre aceitáveis variações culturais. Mas, o Thio bem sabia depois de longas noites de reflexão e frustração, que cada regra, mais simples e explícita que fosse, mais clara e consensual que fosse, admite variadas interpretações, as mais convenientes possíveis a quem foi concedido o poder divino para tal. Interpreta, desinterpreta ou reinterpreta quem pode, não quem quer.
      Mistério. O que o Thio gostaria de entender era como se deu a passagem de uma sociedade plural em times de Bochas (para todos os gostos, ideológicos ou não) a uma em que só um time era permitido, onde apenas um reinava. Logo percebeu que não se tratava de algo que acontecera ao acaso e tentou reconstituir a trajetória dessa mudança.
      Como um profundo estudioso do jogo de Bocha mundial, além de ter ganho inúmeros torneios a ponto de ser considerado o Pelé da Bocha (a boca pequena, e na maior brincadeira, como era bem o seu estilo, ele dizia que o Edson é que era o Thio do futebol...), o Thio sabia que, a rigor, não havia a necessidade de juiz, tão simples e explícitas as regras eram e, principalmente, pelo estrito código de ética que os jogadores assumiam, e cumpriam alegremente, quando praticavam esse jogo. Mas, surpresa, Thio Therezo logo percebeu que, na liga profissional daquela republiqueta, não só um juiz seria necessário, mas sim um colegiado de juízes, figuras que, lá, eram chamados de julgadores. 
      É isso, lá os juízes do jogo de Bocha eram chamados de julgadores e nunca soubemos o porquê, questões semânticas, claro era. O Thio ainda tentou nos explicar a diferença entre julgadores e juízes, algo a ver com uma sutileza envolvendo o difuso conceito de imparcialidade mas, mesmo com todo o arsenal didático que ele possui, o Thio não conseguiu nos dizer claramente qual era a diferença.
      E a chave do mistério estava nesse colegiado de julgadores...

[[ a terceira e última parte do conto será publicada na próxima semana]]

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