[[as partes 1 e 2 do conto foram publicadas nas duas últimas semanas]]
E a chave do mistério que o Thio investigava na republiqueta do time único de Bocha estava no colegiado de julgadores escalados para arbitrar o jogo e que só lá existia.
Outro dia mesmo, o Thio procurou, sem sucesso, as fotos que tirara dos jogos a que assistiu, e foram dois os organizados às pressas pelo governo, para nos explicar melhor os seus achados dessa fase. E o Thio nos relatou assim a transição, ou o que conseguira descobrir. Inicialmente, um julgador, desnecessário ao ver do Thio, arbitrava as questões polêmicas e expulsava os jogadores que não aceitavam suas decisões. Logo, o número de julgadores em cada jogo, nomeados pelo governo da republiqueta, foi crescendo até chegar a esse modelo de colegiado de julgadores, sete deles que arbitravam “ad hoc” as questões do jogo.
Nesse momento, o Thio para um pouco a sua narração e comenta que, nas transmissões televisivas dos jogos naquela estranha republiqueta havia um comentarista especializado para a arbitragem, o que por si só foge totalmente à compreensão do Thio que achava que o que importava era o jogo, os jogadores, não os seus apêndices. Em todo caso, ele ressaltou que, no começo, haviam dois comentaristas, um para o andamento do jogo e outro para a arbitragem mas, com a instituição do colegiado de julgadores, logo as transmissões incorporaram o seu próprio time de comentaristas, um para cada julgador e um outro para os aspectos, digamos assim, mais esportivos do jogo. Com o tempo, esse isolado comentarista foi dispensado visto que, aparentemente, o jogo começou a transcorrer em torno das “data vênias” e pouco se falava de outros aspectos da partida, insignificâncias no ver de muitos.
Mas estamos nos adiantando um pouco. Em paralelo à adoção de um colegiado de julgadores, o Thio descobriu que fora instituído a chamada regra da denunciação, pela qual um jogador poderia se dirigir a esse colegiado e delatar algum outro jogador do time adversário que tenha ou cometido alguma falta ou feito algum comentário que, no entender deles, possa ser considerado ofensivo. Após uma seletiva e isenta de isenção análise, o veredito era proferido pelo colegiado. Ou nada acontecia e o jogo prosseguia ou o jogador denunciado era sumariamente punido, seu time perdia pontos, enquanto que o time do delator era recompensado, por isso a regra era chamada de “regra da denunciação recompensada”. Discricionária que fosse, qualquer reclamação à sua atuação era duplamente punida pelo colegiado e desqualificada pelos comentaristas a postos junto ao narrador televisivo, em uma estranha, simbiótica e seletiva harmonia.
Como só poderia acontecer, o time predileto, e sempre o há, do colegiado tinha todas as suas denunciações aceitas sem restrições enquanto que quaisquer denunciações contra tal time eram sumariamente ignoradas. E, como só poderia acontecer, times adversários a esse favorito foram minguando, por medo, exclusão, incorporação ou o que fosse e, ao final, só um time intacto restou ao final de uma das temporadas. Após as comemorações habituais, onde os derrotados têm que pagar uma rodada do prato típico da região feito de javali (por isso, o Thio comenta, a expressão usual naquela republiqueta de quem iria “pagar o javali”), percebeu-se as vantagens do time único. Não todos, é claro, mas a mídia tratou de isolar os que não conseguiam ver isso de forma clara.
O Thio, insatisfeito com a constante presença de sombras ao seu redor, um dia conseguiu fugir dessa vigilância e, às escondidas, encontrou-se com um antigo jogador de um dos times que tinham desaparecido. Conversa franca e o Thio aprendeu muito sobre os detalhes dessa transição, inclusive muito do aqui relatado.
A comissão especial reunia-se frequentemente para checar o andamento da investigação do Thio. Em uma dessas reuniões, que o Thio ainda não sabia que seria a última delas, após expor os seus achados, ele perguntou:
- Fiquei com uma dúvida aqui... E quem julga os julgadores?
O silêncio interminável que se seguiu fez com que o Thio percebesse a inconveniência da pergunta. Levantou seus olhos dos papéis que trazia às mãos e percebeu-se na penumbra das perguntas irrespondíveis.
- Ora, Thio, quem julga os julgadores? Ninguém, e ninguém pelo simples fato que os julgadores não precisam serem julgados, são injulgáveis, isso é óbvio, até você deve ser capaz de entender isso... – essa foi a resposta que o Thio pensou ter escutado mas não escutou, pelo simples fato de que ela não foi dita. Claro era ser desnecessária a resposta, faces e olhares dizendo tudo o que era preciso ser dito naquela hora.
A reunião terminou assim abruptamente, todos se levantando e deixando a sala, largando o Thio com seus papéis e dúvidas e sem respostas.
No dia seguinte, um grupo foi visitar o Thio Therezo no hotel logo no café da manhã. Insinuaram que o melhor seria que ele tivesse um imprevisto familiar e deixasse o país ainda naquele dia. O Thio que não é bobo nem nada e que, ademais, tem mais o que fazer, arrumou suas coisas e partiu no voo noturno, primeira classe ofertada pelo governo da republiqueta. Não interessou a ninguém essa saída repentina, nenhuma voz teve a permissão de se levantar, em um visível contraste com a efusiva recepção de semanas atrás. Aliás, a grande mídia local que tanto o exaltou, ignorou-o daquele dia em diante, história reescrita como sempre convém a certas elites eleitas pelos deuses.
Na cidade em que houve troca de avião, ainda os repórteres queriam saber o que se passara mas o Thio apenas sorriu às perguntas e emendou um detalhamento de seus novos planos, que isso, ele sempre os terá. Foi também lá que ele soube da morte inesperada em um acidente doméstico do clandestino ex-jogador que tanto o ajudou a decifrar os pormenores dessa história.
Ele só nos narra os fatos, tais e quais ocorreram e diz, jura até, que ainda não pensou na conclusão de seus achados, o que não acreditamos. Sábio e prudente que é, acho que o Thio Therezo prefere o silêncio nessas horas.
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