quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Gato - parte 1


            Não faz uma hora e eu estava com ela, nós dois sentados no sofá. Beijava-a e isto era o começo de mais uma noite em que já tínhamos jantado, algum jogo de cena, alguma conversa totalmente desnecessária mas absolutamente essencial em nosso jogo e eu, calmamente, beijava-a e isto era o começo de algo, pois devagarinho minha mão a percorreria e ela ajudaria sem parecer ajuda e após aquele pequeno jogo que sempre fazemos com as roupas, sempre o mesmo, eu a beijaria e isto era o começo de fazermos amor, eu às vezes absorto pois me sentia cansado deste jogo, só às vezes claro. E eu a beijava e acabaríamos fazendo amor, ali no sofá, ou em cima da mesa após termos empurrado os pratos com a graça e os risos de sempre e estávamos sentados os dois a nos beijarmos e com certeza logo logo ela me perguntaria porque nós não morávamos juntos, isto após termos feito amor pois ela bem sabe que tal pergunta, se feita antes, apenas serviria pra me aborrecer e acabaríamos desistindo, eu acabaria desistindo, e eu a beijava pensando na pergunta que inevitavelmente viria e em que resposta daria e tudo o mais quando de repente te notei, gato espreitador, notei tua notável presença ali na sala a nos espreitar.
            Vigiava-me.
            Quietamente, observava-me.
        Tal descoberta me inquietou, desconcentrei-me mais ainda. Cada vez que olhava para ti, o mesmo olhar gato indiscreto, e eu que não tinha te percebido ainda notei tua imponente presença, teu irritante olhar enquanto, desconcentradamente, beijava-a e ela percebe algo e me pergunta e eu disfarço e a acaricio fingindo normalidade. Mas novamente me vem à mente as perguntas que ela certamente fará e eu a beijava e a acariciava enquanto ela fingia gostar, de olhos fechados, e os meus olhos, o teu olhar, gato, cruza com o meu e não me permite outra alternativa a não ser pedir desculpas a ela que agora me olha assustada com o biquinho do peito arrepiado e a dizer a ela, sim não tenho outra alternativa a não ser dizer a ela que estou um pouco cansado e que tenho coisas a fazer e que não me faça perguntas hoje, principalmente aquelas, isso pensei mas não disse e mais algumas coisas, sim me obrigastes a dizer outras coisas mais e a mentir a ela que agora vai embora um pouco desapontada, com razão eu sei, e ainda olha os pratos em cima da mesa sem saber o que de errado aconteceu conosco ou comigo e sem saber o real motivo de minhas atitudes que és tu, gato estranho. Estou te estranhando hoje por me obrigares a isso, e no mesmo instante, ouço a porta bater.
        Tratei de arrumar a mesa e a cozinha; à mesa disse que já podia ir dormir pois não precisaríamos mais dela. Na cozinha fiz o que sempre fazia: empilhava os pratos e talheres na pia até o inadiável dia de se limpar tudo. Arrumei-me um pouco na sala, uma bebida, algum livro por perto, talvez pensar um pouco em meus escritos, um Chick Corea a rodar.
            O luar entrava pela janela e refletia em teus olhos, gato noturno.        
            Sentei-me, meus olhos nos teus, risadas.
           – Precisamos conversar, gato danado. Como é que tu me fazes uma coisa destas?
            Rio.
            Leio um pouco.
            Estou tranquilo. Acho que, no fundo, o que eu mais precisava hoje era de uma noite calma. Eu te observo agora de novo, gato repetido. Estás quieto. Me olhas também. Me encaras tranquilamente. Temos tempo. Te comprei em um leilão, lembras? lembrei. Na tua primeira noite aqui, gato esquecido, ela também estava comigo aqui, aí eu te deixei encostado em um canto. Mas não, teu olhar forte, gato musculoso, me dá a impressão agora de que conhecestes toda a casa naquele dia e já agora estás a me olhar tão confiante, tão seguro. Tu me secas com a segurança de um dono, gato onipresente. Tu na certa aproveitastes daquela noite de liberdade e enquanto ela e eu fazíamos o que sempre fazemos, aquele jogo e coisa e tal que eu tanto gosto na maioria das vezes, tu estivestes livre e ocupastes a casa e a conhecestes mais do que eu a conheço, gato intruso. Sim, na certa não ficastes perdendo o teu tempo encostado em um canto, tu passeastes na certa, não é gato andarilho? Tanto que quando acordei tu estavas já ao meu lado, já a me vigiar, a nos vigiar, mas não te percebi ou ao menos não quis te perceber ali ao meu lado, ronronando, gato madrugador; não te percebi, confesso hoje.
            E naquele dia em que estive fora, tu aproveitastes e ocupastes a casa toda, gato dominador, foi isto ou não foi, gato insolente? tu fuçastes as minhas coisas, lestes os meus livros e revirastes minhas gavetas, gato fuçador, de tal maneira que quando te prendi à parede naquela segunda noite, naquela segunda à noite, tu já sabias tudo, tudo o que precisava saber para... 
            Foi meu segundo engano. Naquele dia te preguei na parede em frente ao sofá em que estou preso agora; eu te preguei, gato pregado, mas tenho a impressão, tenho a certeza de que és tu que me prende realmente e alguns dias se passaram, tolo engano eu fiz e tu aproveitastes dele, de meu segundo engano, pois em frente ao sofá onde gosto de ficar a pensar em meus escritos, em minha vida, tu me olhas com esta segurança de séculos, com este olhar de vidro, gato refletido, olhar refletido da luz do pequeno abajur que tenho na sala e que me acompanha nestas noites de pensamento. Tu me olhas, já há algum tempo mas eu não, só te percebi agora. Justo agora que Chick Corea já acabou sua performance mas o disco ainda rodará por algum tempo pois eu não irei mudá-lo. Nossa troca de olhares começa a me interessar mais, gato intrigante, e um silêncio repentino invade a sala. Um silêncio.
            Queres saber de algo, gato atlético, tu és forte.
         Penso nisto enquanto bebo um gole a mais do Calvados que tenho à minha frente e enquanto penso em tudo o que ocorrera até chegarmos a esta noite e, enquanto tento me organizar mentalmente, tento me convencer de uma porção de coisas e enquanto tento me achar tão forte como tu e enquanto te olho e sei que da mesma maneira que eu te olho sob esta luz fraca que temos aqui em minha sala tu também me olhas, tu me checas com a lente que é teu olho que não deixa passar nada desapercebido e que, tenho a certeza, é de onde vem a tua força.
            Da mesma maneira que eu agora quero te conhecer, tu também queres a mim e nos obriga a esta troca de olhares. Eu, olhando este quadro que és tu, gato enquadrado, me secando com este maldito olhar que comprei em um leilão. Te comprei e sou teu dono mas isso, isso é uma pena, não me faz mandar em ti e tu sabes disso, tu me desafias, tu me encaras e dita as regras. Tudo bem gato blefador, aceito o jogo. Vamos a ele.
            Outro gole (eu disse golpe?) de Calvados e tento me achar tão forte quanto tu és e penso em tudo que...




[[Esse conto, Gato, apareceu em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em duas partes]]

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