Por um
bom tempo, ainda sentiria na boca o gosto daquele sorvete de chocolate branco
com cereja que tomei em Bahia Blanca no longínquo verão de 1979. De certa
forma, ele sinalizou um momento especial da louca viagem que fiz com dois
outros colegas em janeiro daquele ano. Antes de desfrutar o sorvete, toda uma
viagem para entrar, via Paraguai, no norte da Argentina e um longo caminho até
chegar a Bahia Blanca.
Sempre por via terrestre, os
três mochileiros já estávamos cansados de dormir em trens, não raramente de
carga, em vagões semivazios, sob pedras uma noite, tentar pregar os olhos em
ônibus barulhentos e sem amortecedores, ou buscar um descanso que fosse em
estações de cidades pequenas do interior do país vizinho, bancos
desconfortáveis em corredores ruidosos e friorentos...
Atravessamos
todo o norte da Argentina assim. Resistência, Tucumán, Jujuy, Salta...
Por
vezes, eu me pergunto se ainda seria possível se fazer uma viagem como aquela
em um mundo tão mais complicado e violento como o de hoje. Como ser acordado
por um guarda de estação dentro de um vagão de trem de carga e, no máximo e sob
sorrisos divertidos, ele só pedir para você sair? Como ser abordado, em uma das
cidades fronteiriças com o Chile por soldados do exército à paisana
(inconfundíveis pelo corte de cabelo) e, após checarem os documentos, ser
liberado com um sorriso e um desejo de boa viagem após se certificarem, pelos
passaportes, de que não éramos os inimigos do momento?
Era a
época da quase-guerra entre a Argentina e o Chile pelo canal de Beagle, tempos
nervosos ao longo da extensa fronteira entre os dois países. Imagina que
estávamos, Brasil, Argentina e Chile, em plenas ditaduras militares. Se
fôssemos sensatos, mas não éramos, éramos jovens, mas se fôssemos, não éramos,
isso é claro, mas se fôssemos não nos arriscaríamos tanto, tempos difíceis e
cruéis. E como tudo deu certo ao final, apesar de tudo? Mistério que até hoje
me pergunto como aconteceu.
Mas
sobrevivemos, aos trens de cargas e aos milicos da fronteira e, com sequelas é
claro, às ditaduras. Sobrevivemos aos sonhos inquietos, às inseguranças da
idade e, principalmente, às noites mal dormidas.
Mais de
trens do que de ônibus, mas também de ônibus e poucas vezes de caronas,
viajávamos de noite para economizar hotel, só um dos quinze dias dessa viagem
maluca dormimos em um hotel, o que ainda não tinha acontecido quando saboreei o
melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo! Bom, provavelmente o
era...
Depois de vencermos o norte
da Argentina, nós a cruzamos diagonalmente na direção de Bahia Blanca. O
objetivo? Ir para a Patagônia e Bahia Blanca é a chamada porta de entrada da
região. Um passeio pela cidade sem grandes atrativos, o tempo quente do verão,
a sorveteria...
Talvez
tenham sido os efeitos do sorvete, tão bom que estava, mas acontece que em um
dado momento, o da quinta cereja, talvez?, o cansaço desabou impiedosamente sobre
mim, trazendo junto o esgotamento mental daquela minha primeira viagem
internacional. Para ao menos dois terços de nosso grupo de três, o sorvete
significava o momento do começo do retorno, a suspensão momentânea dos sonhos.
E, ao
menos para um terço do grupo, a mim ao menos, a viagem já tinha trazido a
experiência buscada e já se estabelecera a vontade da volta, o tempo de
retornar para casa, para o descanso e cultivo da memória da viagem e, é claro,
o lento e inevitável planejamento da próxima. Há momento para cada coisa e
aquele era o da volta.
A
Patagônia ficaria para um outro momento, ao menos para mim, e voltamos, dois
terços do grupo de três, para Buenos Aires. Lá, a única noite em um hotel. No
caminho, o companheiro mochileiro adoeceu e acabou voltando a São Paulo de
avião. De minha parte, ainda teria que resistir a 48 horas de ônibus, e todo um
caminho de ônibus de Buenos Aires a São Paulo via Porto Alegre e que, sei lá
por que, evitou cortar caminho pelo Uruguai. Pouco dinheiro, já nem dava para
parar em algum lugar mais.
O
interessante é que, uns treze anos depois, por motivos profissionais, foi bem a
Bahia Blanca que retornaria em minha segunda viagem à Argentina, e ainda
retornaria por ao menos uma meia dúzia de vezes mais. Trabalhar com colegas da
universidade, ministrar minicursos, participar de congressos e quetais.
Se eu
fui atrás do sorvete de chocolate branco com cereja? Não, não fui e confesso
que até pensei em ir, mas não. Preferi, ao final, manter a lembrança do momento
maravilhoso vivido aos 18 anos e evitar a segura e decepcionante experiência de
encontrar um ordinário sorvete de chocolate branco com cereja, como bem pode
ser o caso.
Há
momentos para tudo e para cada coisa, que o sorvete permaneça na memória a que
pertence...
Que belo texto. Bahia Blanca, a cidade do grande craque do basquete Emanuel Ginóbili. A cidade do último Prêmio Nobel argentino, César Milstein. E, pelo visto, a cidade do melhor sorvete de chocolate branco com cereja do mundo. Parabéns, e obrigado por compartilhar essa maravilhosa experiência de juventude. Abraço.
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