Abro os olhos, mais um dia. E vejo os seus, oblíquos e
claros, a me encararem, sorriso amplo esperando por mim. Você parece não
envelhecer, o eterno brilho que deslumbra a tantos, ao contrário de mim que
sinto as dores desses anos todos. Digo um expansivo bom dia e você só reforça
seu belo sorriso. Sorrio de volta, não esperaria nada além disso nessa hora do
dia.
Sento-me na cama, mãos sobre o rosto, mais um dia, mais um,
é preciso se acostumar com essa nova rotina. Sei lá quanto tempo fico assim,
parado e pensativo, mãos sobre o rosto, sentado. Só sei que foi o suficiente
para perceber a já presente luminosidade no quarto. Que horas seriam? Busco o
celular no criado-mudo ao lado da cama e lá estamos nós, selfie frente ao prateado
Rio Tejo de final de dia, nossa foto favorita. Quanto tempo isso? Sei lá, você
parece não envelhecer, só eu. Onde teria parado essa camisa que então vestia?
Distrai-me olhar para ti, mas logo encaro o quarto e já não
te vejo por lá, o reflexo me faz virar e olhar para a porta como se a buscar
ainda um rabicho de ti se distanciando naquele passo ligeiro que te é usual, vai
preparar o café, não é? O meu com pouco açúcar, resmungo esperando ser
obedecido desta vez. É a diabete, tu sabes, ou melhor, mesmo antes da diabete eu
já achava teu café muito doce, mania essa que tens de coar o pó junto ao açúcar,
tudo misturado. Lembras? Faz tanto tempo que nos conhecemos, tempo demais para
tão poucas desavenças, como essa do café com açúcar. Foram mais do que poucas
desavenças? Achas? Tá, concedo, foram mais do que poucas, mas o que importa
isso agora?
Desavenças,
mas também tantos segredos compartilhados, explícitos ou não, imagens reais ou sonhadas,
lembranças, viagens...
Nós nos
conhecemos naquela ida à fazenda da tia, não foi? Tempão isso, verão, né? Primos
distantes, mas nem tanto assim que você demorou para me permitir um beijo. Sei,
sei, eu era afobado, nem precisa dizer que eu sei. Ainda bem que o verão foi longo
o suficiente para tal. Beijo esquisito, molhado, você ainda abria muito a boca
e eu não sabia o que fazer com a língua. Você também deve estar rindo dessas
lembranças, né? Perdoemos, éramos para lá de jovens, quase crianças.
Hora
de levantar, cara!
Busco o outro banheiro para me lavar, esse apartamento tem
estado meio vazio esses dias. Sou mais ágil nessas coisas e logo estou na sala
olhando pela janela, tempo voando feito essa andorinha que me distrai e me
distrai, bom viver no sétimo andar, perto do parque. Deve ser domingo, tudo
fechado. Não, é quinta, sim quinta pois ontem foi quarta e amanhã será sexta.
Quinta, definitivamente, e logo nossos filhos deixarão na porta da frente
algumas compras, ouviremos um toque de campainha, disseram que devemos esperar
eles saírem para só então abrir a porta. Desinfetar tudo e pronto, mais uma
semana de sobrevivência garantida. Quem imaginou na vida que seria preciso
passar álcool em gel nos pacotes de bolachas Água e Sal? A propósito,
não se esqueça de colocar na lista da próxima semana, mais bolachas.
E mais alquingel, como se diz por aqui... rio,
rimos, como é bom te ver rir, com a cabeça jogada para trás, dentes aparecendo,
cabelos esvoaçantes e tudo imóvel, como se o tempo não estivesse passando. Não
passa para ti, invejo...
Sim, teu
riso preenche a sala, desde o canto ao lado do sofá até o outro extremo junto à
porta da cozinha. Esse café sai ou não sai?
Já deveriam ter chegado, nossos filhos demoram por demais
hoje e me distraio olhando as fotos no aparador da sala. Lá estão vocês, nós
quatro, a que nunca envelhece, nosso casal de filhos ainda sem netos e eu ainda
com cabelo. Aproveito e conto um pouco de meus dias por aqui, não que eles
estejam muito distintos dos do passado, mas vocês agora parecem me ouvir com
mais atenção, talvez os netos tenham mostrado como a vida é de fato, talvez as
perdas já tenham se acumulado a ponto de perceber que nem tudo é prazeroso como
na praia em que estamos na foto, tomem cuidado com as ondas, filhos, aqui o mar
é traiçoeiro. A casa alugada naquele verão já nem existe mais, a vida mudou
desde então, cuidado com as ondas, filhos, é preciso ouvir os mais velhos,
ouçam sua mãe ao menos se preferem me ignorar. Pé de areia, vigiamos, de longe,
os dois entrarem na água, ainda meio adolescentes em busca da vida, qual nós já
fomos um dia, conversamos debaixo do guarda-sol, relembramos o susto do ano
anterior, por isso esse cuidado todo. Filhos, obedeçam, não se lembram de como
foi difícil aquelas noites no hospital depois do acidente? Sorrimos agora, fora
só um susto, mas não queremos de novo, né? Cuidado, filhos, o mar traiçoeiro...
A foto me relembra a alegria daquele verão, do mar, da praia, de uma vida passada
em um tempo que parecia não passar.
Mas susto mesmo foi com o senhor, né pai? Sabemos que essa
calma com que se mostra agora na parede oposta, olhar tranquilo, sorriso maroto,
é, nada disso, calma, tranquilidade ou marotice, pertenceu àquele fatídico dia
do enfarte, nem quero pensar! Não devo, não quero...
A campainha toca e eu grito em direção à cozinha: pode
deixar que eu atendo. Ou não atendo, são eles, devo esperar que coloquem as
compras na porta e só então abrir. Quem virá hoje? Ela ou ele? Vou até o olho
mágico, nada me impede de tentar ver quem era, mas mal percebo a porta do
elevador se fechar. Foi ela, com a neta, não foi? Ao menos pareceu, ou imaginei,
ou esperei que fosse já que semana passada foi seu irmão mais velho. Tento
confirmar com você, não consigo uma resposta sequer, mas tampouco você viu, né?
Obrigado, grito sem esperança de ser ouvido a quem quer que
tenha vindo hoje trazer nossa cesta semanal. Sei que vocês estão também muito
atarefados, o tal do home office, as aulas à distância para as crianças, e sei
que ainda não me perdoaram, sei que devo muitos pedidos de desculpas, sei que
minha rabugice ofendeu muito vocês, mas não dá para relevar um pouco isso, não?
Aparecer só para um alô, quanto tempo isso iria durar, nem atrapalha. É preciso
insistir nisso por todo esse tempo? Por que vocês não me visitam mais? Não sabem
como foi tudo tão difícil naquela época? Minha neta, a mais velha, mostra seu
sorriso desdentado, vocês deveriam me perdoar como ela o fez, não é querida?
Ela me olha com o olhar da avó e com a sua mesma convicção de que nada deve ser
eterno, nem mesmo a raiva. Não queria ver ninguém naqueles dias, vocês não conseguem
me entender mesmo? Não que as crianças me aborrecessem, nunca disse isso, ou
não dessa forma, só quis dizer o que me incomodava realmente, mas errei no tom,
vocês me entenderam errado, tão errado e aí, de pirraça, só pode ser de
pirraça, não as trouxeram mais aqui para ver o avô.
Nenhuma mágoa deveria ser eterna, entendam isso.
Tenho
saudades, encaro a foto da escadinha, netos, netas e eu lado a lado em ordem
cronológica, quando foi mesmo que tiramos isso? Estão todos felizes, sorriem, mas
minha cara era de susto, não de contrariedade, entendam.
O que não falta por aqui é foto, pregadas nas paredes ou em
cima dos móveis, de tudo quanto é lugar onde estivemos, de todos nós, juntos ou
separados. De todos, sem distinção, não há preferidos por aqui, reafirmo isso em
voz bem alta enquanto dou banhos em pacotes de comida. Sei que você fará
silêncio nessas horas, sim é preciso nos concentrarmos nos afazeres, uma
bobeada e basta, estaremos contaminados. Grupo de risco, sei. E sei também que
não gosta de discutir nada disso, mas para mim é importante dizer. Ficará muda
no almoço que mais uma vez improvisarei enquanto eu insistir em lhe convencer
do suposto mal entendido entre eles e eu. Me deixará sozinho vendo o final do
jornal do meio dia, lavando a louça, cochilando no sofá de tanto esforço feito,
fazendo minhas palavras cruzadas diárias, lendo aquele livro pela enésima vez,
gosto dele, o que é que tem relê-lo uma vez mais? Tão pouco há a se fazer
nesses longos dias. Pare de me olhar assim!
Quando me dou conta, escuro, noite, o panelaço do dia me
acorda, vou à janela, preciso comer algo, bem que você poderia ter me avisado
que dormi tanto, encaro sua cara fingidamente carrancuda. Ou debochada, sei lá,
são tantas caras que me divirto só de olhá-las. Mas sei que no meio de tantas
caras apilhadas lado a lado no móvel da TV só você me aguentou até o final, só
você ainda sorri para mim quando eu preciso de um apoio, eterno sorriso que não
parece envelhecer nunca.
Sim, os fantasmas ainda me contestam rudemente, agridem sem
dó, mas você não, sinto seu respeitoso silêncio dia após dia, o silêncio de
quem sente carinho, de quem perdoa. Ou me engano?
São
Paulo, quarentena de 2020
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