Por razões
que nenhum infectologista pode explicar direito, o vírus covid-19 entrou na
República de Hygina em uma pequena cidade que até então só era conhecida como
um resort de inverno à elite do país, e era verão. Mas o governo central de
Hygina agiu rapidamente e isolou a pacata cidade, ninguém entra ninguém sai, o
que salvaguardou o sistema financeiro nacional. Nem custa enfatizar que era
baixa temporada, o que ajudou na aprovação da medida pela sociedade higienista.
Identificado
o paciente contaminado, na realidade uma paciente, uma velhinha de seus oitenta
e três anos, não restou nada a não ser isolá-la em sua casa dentro da cidade
isolada, dando por encerrado o processo de contenção da disseminação do tal vírus.
Foi o que técnicos do governo federal chamaram de isolamento em segundo grau.
A velhinha, aposentada professora
de antigas gerações, quedou-se em casa junto à sua invejável biblioteca,
invejável a uns, chacotas a outros que não entendiam a necessidade de tanto
papel ser acumulado. Acontece que o isolamento trouxe fome à moradora, visto
que ela não costumava estocar comida. Isolada e faminta, perdia-se em
pensamentos que seguramente não seriam compartilhados por outros, não era uma sociedade
dada a muitas extravagâncias mentais.
Frente à
velhinha morava uma menina que, estranhando tanto isolamento, achou, sei lá por
que pois tais achismos não se ensinam nas escolas de Hygina, a menina achou que
a pobre mulher deveria estar com fome e ficou com pena dela. Preparou então um
prato de comida e, atravessando a rua, deixou-o frente à entrada principal da
casa depois de um leve mas firme toque na campainha. A velhinha recolheu o
prato e ainda teve tempo de agradecer à distância, com o olhar e um tímido
gesto à menina, pela gentileza.
Estava com fome mesmo, a velhinha.
Devorou a comida, saboreando em paralelo antigas recordações de suas aulas e diletos
alunos e rezando pelo bem estar da pequena garota que ousara sentir pena dela. Por
sua vez, a menina, por detrás da cortina de sua casa, imaginava o prazer que a
velinha deveria sentir nesses momentos. Nem poderia imaginar, tão pequena que
era, que na realidade sonhava por algo diferente. Mas isso, em Hygina, era
ousadia demais.
Assim
seguiu, menina e velhinha, a viverem suas vidas, a pequena garota levando um
bom prato de comida, duas vezes ao dia, à que ela identificava agora como uma
terceira avó, mesmo sem ter tido a oportunidade de conhecê-la realmente.
Bastava a ela o olhar vibrante e o sorriso sincero que recebia de volta por sua
ação. A velhinha, por sua vez, sonhava com o dia em que o isolamento acabasse
para poder convidar a pequena a entrar e desfrutar sua companhia e memórias.
Mas a rotina não durou por
muito tempo, porém. Em um dia, semana ou pouco mais depois de iniciado o
isolamento, a menina não teve tempo de ver a velhinha ir à porta de sua casa recepcioná-la
pois tão logo depositou o prato no banquinho que agora fora disponibilizado
para isso, um bando de encapuçados surgiu correndo da esquina e chutou a comida
e banquinho. Gritavam e cantavam o hino do iba áles! De passagem, um
deles disse à menina que ela se ocupasse só de seus afazeres.
Vendo a comida espalhada pelo
pequeno jardim e até na rua a brava menina não se intimidou. Com carinho, preparou
outro prato de comida e levou para a velhinha. Desta vez, não só o prato foi
chutado e destruído como ela própria levou uma surra dos encapuzados que poucos
se atreveriam a parar, ainda mais naquela república, naqueles tempos de
arminhas e tesourinhas.
Pela
madrugada, enquanto a menina, sonhando com os livros da aposentada professora,
lutava pela vida em um coma induzido, encapuçados pararam seus carros de luxo em
sua rua e incendiaram a velhinha, sua casa, sua biblioteca e o que sobrava de
esperanças nos que a conheciam. Cinzas se acumulavam, na tonalidade predileta
do novo governante da pequena cidade encrustada no vale lá ao norte da capital
de Hygina.
Quis o
destino que antes do incêndio dizimar velhinha e entornos o vírus tivesse tido
a oportunidade de infectar um comerciante na rua de baixo. E um padre na igreja
da esquina. E um morador da periferia. E uma enfermeira do único hospital. Um
morador de rua.
O governo central ficou
preocupado com tantos infectados, afinal o seu pib não ia lá muito bom a
despeito do golpe que tanto prometera e, após cuidar da silenciosa e secreta evacuação
do capitão, do pastor, do juiz e da prefeita, decretou que todos os outros
habitantes do pequeno vilarejo deveriam permanecer em casa por mais um dia, o
suficiente para que as forças armadas pudessem agir com a presteza necessária.
Cercado, o
pequeno vilarejo perdeu o acesso a toda notícia que viesse de seu exterior. Ao
invés, uma calma música ecoou pelas ruas que, estranhamente, acobertou o
barulho das imensas labaredas de fogo e dos gritos desesperados. Consumida após
um intenso mas breve incêndio, a cidade sumiu do mapa, escafedeu-se, levando
encapuçados e a gentil menina consigo.
Dizem que o
vírus sobrevive nas cinzas por ainda um par de dias. Sem problema, assegura o
porta-voz do governo central de Hygina, esse é justamente o tempo necessário para
chegarem as máquinas que transformarão a terra arrasada do vilarejo em um
grande empreendimento comercial.
O capitão, o
pastor, o juiz e a prefeita, todos eles, já garantiram suas cotas e esperam
ansiosos pelas vendas que se anunciam esplendorosas. A bolsa voltou a subir e há até uma previsão
de crescimento do pib.
Muito bom, excelente conto!
ResponderExcluirobrigado!!!
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