quinta-feira, 9 de abril de 2020

iba áles, dezessete



          Por razões que nenhum infectologista pode explicar direito, o vírus covid-19 entrou na República de Hygina em uma pequena cidade que até então só era conhecida como um resort de inverno à elite do país, e era verão. Mas o governo central de Hygina agiu rapidamente e isolou a pacata cidade, ninguém entra ninguém sai, o que salvaguardou o sistema financeiro nacional. Nem custa enfatizar que era baixa temporada, o que ajudou na aprovação da medida pela sociedade higienista.
          Identificado o paciente contaminado, na realidade uma paciente, uma velhinha de seus oitenta e três anos, não restou nada a não ser isolá-la em sua casa dentro da cidade isolada, dando por encerrado o processo de contenção da disseminação do tal vírus. Foi o que técnicos do governo federal chamaram de isolamento em segundo grau.
A velhinha, aposentada professora de antigas gerações, quedou-se em casa junto à sua invejável biblioteca, invejável a uns, chacotas a outros que não entendiam a necessidade de tanto papel ser acumulado. Acontece que o isolamento trouxe fome à moradora, visto que ela não costumava estocar comida. Isolada e faminta, perdia-se em pensamentos que seguramente não seriam compartilhados por outros, não era uma sociedade dada a muitas extravagâncias mentais.
          Frente à velhinha morava uma menina que, estranhando tanto isolamento, achou, sei lá por que pois tais achismos não se ensinam nas escolas de Hygina, a menina achou que a pobre mulher deveria estar com fome e ficou com pena dela. Preparou então um prato de comida e, atravessando a rua, deixou-o frente à entrada principal da casa depois de um leve mas firme toque na campainha. A velhinha recolheu o prato e ainda teve tempo de agradecer à distância, com o olhar e um tímido gesto à menina, pela gentileza.
Estava com fome mesmo, a velhinha. Devorou a comida, saboreando em paralelo antigas recordações de suas aulas e diletos alunos e rezando pelo bem estar da pequena garota que ousara sentir pena dela. Por sua vez, a menina, por detrás da cortina de sua casa, imaginava o prazer que a velinha deveria sentir nesses momentos. Nem poderia imaginar, tão pequena que era, que na realidade sonhava por algo diferente. Mas isso, em Hygina, era ousadia demais.
          Assim seguiu, menina e velhinha, a viverem suas vidas, a pequena garota levando um bom prato de comida, duas vezes ao dia, à que ela identificava agora como uma terceira avó, mesmo sem ter tido a oportunidade de conhecê-la realmente. Bastava a ela o olhar vibrante e o sorriso sincero que recebia de volta por sua ação. A velhinha, por sua vez, sonhava com o dia em que o isolamento acabasse para poder convidar a pequena a entrar e desfrutar sua companhia e memórias.
Mas a rotina não durou por muito tempo, porém. Em um dia, semana ou pouco mais depois de iniciado o isolamento, a menina não teve tempo de ver a velhinha ir à porta de sua casa recepcioná-la pois tão logo depositou o prato no banquinho que agora fora disponibilizado para isso, um bando de encapuçados surgiu correndo da esquina e chutou a comida e banquinho. Gritavam e cantavam o hino do iba áles! De passagem, um deles disse à menina que ela se ocupasse só de seus afazeres.
Vendo a comida espalhada pelo pequeno jardim e até na rua a brava menina não se intimidou. Com carinho, preparou outro prato de comida e levou para a velhinha. Desta vez, não só o prato foi chutado e destruído como ela própria levou uma surra dos encapuzados que poucos se atreveriam a parar, ainda mais naquela república, naqueles tempos de arminhas e tesourinhas.
          Pela madrugada, enquanto a menina, sonhando com os livros da aposentada professora, lutava pela vida em um coma induzido, encapuçados pararam seus carros de luxo em sua rua e incendiaram a velhinha, sua casa, sua biblioteca e o que sobrava de esperanças nos que a conheciam. Cinzas se acumulavam, na tonalidade predileta do novo governante da pequena cidade encrustada no vale lá ao norte da capital de Hygina.
          Quis o destino que antes do incêndio dizimar velhinha e entornos o vírus tivesse tido a oportunidade de infectar um comerciante na rua de baixo. E um padre na igreja da esquina. E um morador da periferia. E uma enfermeira do único hospital. Um morador de rua.
O governo central ficou preocupado com tantos infectados, afinal o seu pib não ia lá muito bom a despeito do golpe que tanto prometera e, após cuidar da silenciosa e secreta evacuação do capitão, do pastor, do juiz e da prefeita, decretou que todos os outros habitantes do pequeno vilarejo deveriam permanecer em casa por mais um dia, o suficiente para que as forças armadas pudessem agir com a presteza necessária.
          Cercado, o pequeno vilarejo perdeu o acesso a toda notícia que viesse de seu exterior. Ao invés, uma calma música ecoou pelas ruas que, estranhamente, acobertou o barulho das imensas labaredas de fogo e dos gritos desesperados. Consumida após um intenso mas breve incêndio, a cidade sumiu do mapa, escafedeu-se, levando encapuçados e a gentil menina consigo.
          Dizem que o vírus sobrevive nas cinzas por ainda um par de dias. Sem problema, assegura o porta-voz do governo central de Hygina, esse é justamente o tempo necessário para chegarem as máquinas que transformarão a terra arrasada do vilarejo em um grande empreendimento comercial.
          O capitão, o pastor, o juiz e a prefeita, todos eles, já garantiram suas cotas e esperam ansiosos pelas vendas que se anunciam esplendorosas.  A bolsa voltou a subir e há até uma previsão de crescimento do pib.

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