A menina e
sua mãe, contrariadas por terem que estar ali naquele momento, passaram sem se
deterem um segundo que fosse pelo cartaz anunciando a palestra do novo ministro
da saúde da República de Hygina. Demorou pouco para começar a falação, pois mal
elas terem sentado lá no fundão do auditório um sonolento apresentador guiado por
um discreto ponto de orelha introduziu o palestrante da noite. Palmas
protocolares precederam a fala:
- Iba áles a
todos!!!
- Iba áles –
responderam os presentes em um dessincronizado uníssono.
- Desde que
fui convidado pelo nosso grande chefe para assumir esse ministério, meu único
pensamento foi o de maximalizar os recursos financeiros destinados à saúde.
Como vocês sabem, sou um dos fundadores da organização social NRhealthcare, uma
organização sem fins lucrativos...
Gargalhadas
generalizadas. Até o palestrante riu!
- Caros, a
organização é de fato sem fins lucrativos, mas isso não quer dizer que seus
fundadores ou dirigentes não tenham o lucro como principal meta, são coisas
totalmente diferentes... Pois bem, o ponto é que um dos nossos principais trabalhos
nessa organização é o de otimizar os recursos destinados para o sistema de
saúde visto que eles são gastos a fundo perdido, gastos inúteis como se diz no
jargão lá de casa, visto que todos iremos morrer um dia. É claro que, dada a
complexidade econômica das relações na sociedade, precisamos sim fazer esses gastos.
O nosso grande chefe foi sensível a essa questão e contratou os nossos serviços
sem licitação, utilizando-se de suas prerrogativas nesses tempos de emergência.
Pequena
pausa, pigarreios e um gole de água. O novo ministro continuou então a sua
fala.
- Pois bem,
o sistema de saúde tem que estar preparado para fazer escolhas o tempo todo. É o
velho dilema entre salvar um idoso ou salvar um jovem, mas aprofundado e
estendido a outros patamares. Pode parecer muito romântica essa ideia de que a
vida de todos é igual, mas ponderemos, voltando ao exemplo clássico, o que vale
mais? A vida de um idoso, não gosto de usar essa palavra mas vá lá, inútil ou a
de um jovem produtivo?
- Mãe, o vô
não é inútil, né?
- Claro que
não, filha, claro que não...
- Então por
que o moço com cara de fantasma quer que ele morra?
A mãe olhou
a filha sem saber o que dizer.
- Mãe, eu
gosto muito do vô!
- Eu também,
filha, eu também e vamos cuidar bem dele se ele precisar, tá?
Nessa hora,
a mãe viu que um bedel a olhava com cara de desaprovação, deveriam estar
prestando atenção à palestra e não proseando em paralelo.
- Mas esse
dilema idoso versus jovem sempre me incomodou se posto dessa maneira simplista e
vejo que incomoda a muita gente por aqui também. Porque o dilema idoso inútil
versus jovem produtivo parece fácil de se resolver. Mas e o dilema idoso
produtivo versus jovem inútil, como fazer? Não é e nem pode ser uma questão de
idade. Como comparar um idoso que meritocraticamente tivesse o seu bom pé de
meia investido em um banco, garantindo assim não só o seu próprio bem estar mas
também o do sistema financeiro, como comparar esse cidadão do bem mas com idade
mais avançada com um jovem que vive por aí, desgarrado da família e da
religião? Qual salvar? Não é justo que nesse caso tentemos então salvar o idoso?
Além de tudo, um deles teria condições de bancar a conta enquanto que para o
outro a conta seria, injustamente, cobrada de toda a sociedade. Vejam vocês que
os dilemas não são tão fáceis assim de serem resolvidos.
Nova pausa,
novo pigarreio.
- Por isso,
nós da NRhealthcare, uma sociedade sem fins lucrativos...
Gargalhadas
gerais.
- ... fomos
contratados por esse governo para implementar estudos e critérios desenvolvidos
ao longo de anos de observação e que irão nos auxiliar na solução de dilemas
como os mencionados acima e otimizar dessa forma os gastos do sistema de saúde.
O que propomos é um sistema de pontinhos que mede essencialmente o quão
produtivo uma pessoa é. Simples, não? É algo que mede, de forma precisa e
científica, todos os aspectos da vida dessa pessoa, como gastos com cartão de crédito,
viagens, o número de selfies em lugares exóticos, a quantidade de carros na
garagem, as idas a restaurantes, a quantidade de camisetas amarelas da seleção
brasileira, a participação em carreatas barulhentas em frente a hospitais
públicos, esses itens que medem o quanto do bem uma pessoa é. Há também
pontuações secretas que não vem ao caso, mas vocês podem confiar que elas são
sempre pensadas em consonância com o intuito patriótico de nossos governantes. A
idade, nessa análise, irá contar, sim, mas em um grau muito menor. Em suma,
nossos algoritmos estarão escaneando todo o sistema produtivo da sociedade em
busca de sinais que nos permitam ter um bom perfil de cada um de vocês e associar
uma nota final. Essa nota é o seu valor na sociedade. Estamos em dúvida de como
chama-la, se coeficiente de produtividade, se índice de meritocracia... mas isso pode ser decidido depois. Em todo
o caso, quando precisarmos resolver algum dilema entre quem atender, bastaria
acessar o sistema e ver qual a maior nota dentre os envolvidos e esse terá
prioridade no sistema de saúde. Simples assim, né? Científico!
O contentamento
do palestrante de certa forma contrastava com sua feição de coveiro de filme de
terceira categoria.
- É para isso que serve a inteligência
artificial, não? - ele continuava - Serve para
que a tal inteligência natural não precise ser gasta com baboseiras e deixada
para que possamos curtir lives de sertanejos nesses tempos difíceis ou votar
nos paredões do BBB-Hygina. Deixemos as coisas sérias e mais aborrecidas para os
computadores, não é mesmo? Gostaria de finalizar dizendo que esse sistema a ser
implementado logo irá nos auxiliar também em escolhas que não envolvam a idade
das pessoas. O que é melhor? Prover um conforto de hotel seis estrelas a uma cidadã
de bem que irá parir, incluindo salas de espera e buffets a seus parentes e
amigos, ou atender um rapaz baleado em uma briga de gangue de rua? Qualquer um
sabe a resposta, nem preciso dizer. Ou, dilema, investir na infraestrutura de
ambulatórios nos hospitais ou remunerar melhor os seus dirigentes? Imaginemos,
por exemplo, um dirigente estressado e que, por conta disso, pode até cometer
algum erro durante o seu serviço. O melhor é pagar logo umas boas férias a ele em
alguma ilha paradisíaca e evitar um mal maior, não é verdade? Um último exemplo
e já acabo. Como todos sabem, meus jalecos, assim como os ternos daquele juiz,
são comprados em Miami, feitos sob medida. É natural e justo que eu precise ser
bem remunerado para tal.
Pausa final, pigarreios, antes
da última saudação.
- Iba áles a todos, e durmam
bem que a república está em boas mãos...
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