quinta-feira, 23 de abril de 2020

iba áles, dezoito


          A menina e sua mãe, contrariadas por terem que estar ali naquele momento, passaram sem se deterem um segundo que fosse pelo cartaz anunciando a palestra do novo ministro da saúde da República de Hygina. Demorou pouco para começar a falação, pois mal elas terem sentado lá no fundão do auditório um sonolento apresentador guiado por um discreto ponto de orelha introduziu o palestrante da noite. Palmas protocolares precederam a fala:
          - Iba áles a todos!!!
          - Iba áles – responderam os presentes em um dessincronizado uníssono.
          - Desde que fui convidado pelo nosso grande chefe para assumir esse ministério, meu único pensamento foi o de maximalizar os recursos financeiros destinados à saúde. Como vocês sabem, sou um dos fundadores da organização social NRhealthcare, uma organização sem fins lucrativos...
          Gargalhadas generalizadas. Até o palestrante riu!
          - Caros, a organização é de fato sem fins lucrativos, mas isso não quer dizer que seus fundadores ou dirigentes não tenham o lucro como principal meta, são coisas totalmente diferentes... Pois bem, o ponto é que um dos nossos principais trabalhos nessa organização é o de otimizar os recursos destinados para o sistema de saúde visto que eles são gastos a fundo perdido, gastos inúteis como se diz no jargão lá de casa, visto que todos iremos morrer um dia. É claro que, dada a complexidade econômica das relações na sociedade, precisamos sim fazer esses gastos. O nosso grande chefe foi sensível a essa questão e contratou os nossos serviços sem licitação, utilizando-se de suas prerrogativas nesses tempos de emergência.
          Pequena pausa, pigarreios e um gole de água. O novo ministro continuou então a sua fala.
          - Pois bem, o sistema de saúde tem que estar preparado para fazer escolhas o tempo todo. É o velho dilema entre salvar um idoso ou salvar um jovem, mas aprofundado e estendido a outros patamares. Pode parecer muito romântica essa ideia de que a vida de todos é igual, mas ponderemos, voltando ao exemplo clássico, o que vale mais? A vida de um idoso, não gosto de usar essa palavra mas vá lá, inútil ou a de um jovem produtivo?
          - Mãe, o vô não é inútil, né?
          - Claro que não, filha, claro que não...
          - Então por que o moço com cara de fantasma quer que ele morra?
          A mãe olhou a filha sem saber o que dizer.
          - Mãe, eu gosto muito do vô!
          - Eu também, filha, eu também e vamos cuidar bem dele se ele precisar, tá?
          Nessa hora, a mãe viu que um bedel a olhava com cara de desaprovação, deveriam estar prestando atenção à palestra e não proseando em paralelo.
          - Mas esse dilema idoso versus jovem sempre me incomodou se posto dessa maneira simplista e vejo que incomoda a muita gente por aqui também. Porque o dilema idoso inútil versus jovem produtivo parece fácil de se resolver. Mas e o dilema idoso produtivo versus jovem inútil, como fazer? Não é e nem pode ser uma questão de idade. Como comparar um idoso que meritocraticamente tivesse o seu bom pé de meia investido em um banco, garantindo assim não só o seu próprio bem estar mas também o do sistema financeiro, como comparar esse cidadão do bem mas com idade mais avançada com um jovem que vive por aí, desgarrado da família e da religião? Qual salvar? Não é justo que nesse caso tentemos então salvar o idoso? Além de tudo, um deles teria condições de bancar a conta enquanto que para o outro a conta seria, injustamente, cobrada de toda a sociedade. Vejam vocês que os dilemas não são tão fáceis assim de serem resolvidos.
          Nova pausa, novo pigarreio.
          - Por isso, nós da NRhealthcare, uma sociedade sem fins lucrativos...
          Gargalhadas gerais.
          - ... fomos contratados por esse governo para implementar estudos e critérios desenvolvidos ao longo de anos de observação e que irão nos auxiliar na solução de dilemas como os mencionados acima e otimizar dessa forma os gastos do sistema de saúde. O que propomos é um sistema de pontinhos que mede essencialmente o quão produtivo uma pessoa é. Simples, não? É algo que mede, de forma precisa e científica, todos os aspectos da vida dessa pessoa, como gastos com cartão de crédito, viagens, o número de selfies em lugares exóticos, a quantidade de carros na garagem, as idas a restaurantes, a quantidade de camisetas amarelas da seleção brasileira, a participação em carreatas barulhentas em frente a hospitais públicos, esses itens que medem o quanto do bem uma pessoa é. Há também pontuações secretas que não vem ao caso, mas vocês podem confiar que elas são sempre pensadas em consonância com o intuito patriótico de nossos governantes. A idade, nessa análise, irá contar, sim, mas em um grau muito menor. Em suma, nossos algoritmos estarão escaneando todo o sistema produtivo da sociedade em busca de sinais que nos permitam ter um bom perfil de cada um de vocês e associar uma nota final. Essa nota é o seu valor na sociedade. Estamos em dúvida de como chama-la, se coeficiente de produtividade, se índice de meritocracia... mas isso pode ser decidido depois. Em todo o caso, quando precisarmos resolver algum dilema entre quem atender, bastaria acessar o sistema e ver qual a maior nota dentre os envolvidos e esse terá prioridade no sistema de saúde. Simples assim, né? Científico!
          O contentamento do palestrante de certa forma contrastava com sua feição de coveiro de filme de terceira categoria.
- É para isso que serve a inteligência artificial, não? - ele continuava -  Serve para que a tal inteligência natural não precise ser gasta com baboseiras e deixada para que possamos curtir lives de sertanejos nesses tempos difíceis ou votar nos paredões do BBB-Hygina. Deixemos as coisas sérias e mais aborrecidas para os computadores, não é mesmo? Gostaria de finalizar dizendo que esse sistema a ser implementado logo irá nos auxiliar também em escolhas que não envolvam a idade das pessoas. O que é melhor? Prover um conforto de hotel seis estrelas a uma cidadã de bem que irá parir, incluindo salas de espera e buffets a seus parentes e amigos, ou atender um rapaz baleado em uma briga de gangue de rua? Qualquer um sabe a resposta, nem preciso dizer. Ou, dilema, investir na infraestrutura de ambulatórios nos hospitais ou remunerar melhor os seus dirigentes? Imaginemos, por exemplo, um dirigente estressado e que, por conta disso, pode até cometer algum erro durante o seu serviço. O melhor é pagar logo umas boas férias a ele em alguma ilha paradisíaca e evitar um mal maior, não é verdade? Um último exemplo e já acabo. Como todos sabem, meus jalecos, assim como os ternos daquele juiz, são comprados em Miami, feitos sob medida. É natural e justo que eu precise ser bem remunerado para tal.
Pausa final, pigarreios, antes da última saudação.
- Iba áles a todos, e durmam bem que a república está em boas mãos...

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