quinta-feira, 26 de março de 2020

Mero, parte III

3. ADÁGIO MA NON TROPPO

         Enquanto ouvia os sons por detrás da porta desaparecerem e percebia que daqui para a frente teria de atuar sozinho, ele pensou no amigo que agora conhecia ainda menos. Tivera a tola intenção de conhecê-lo mais em companhia de outros colegas em comum, nessa caravana que fora em busca de indícios do colega, caravana esta que teria sido bem maior se por mero e puro acaso outros dos colegas deles não tivessem comprado ingresso para o teatro naquela mesma noite, como era o caso do José Antônio por exemplo. Não dá para perder esta peça, faz tempo que eu me programei para isso, justificou.

            E o conhecia menos ainda porque agora duas imagens do amigo estavam se contrapondo em sua mente, a se embaralhar e a se confundir um pouco e uma era a do amigo, colega de conversas de cervejas, aquele do escritório, várias vezes o vira conversando com as pessoas em volta e esta imagem não batia com a outra, agora uma nova imagem para ele, o colega sentado naquela cadeira a ler livros e a escrever frases, a preencher certos papéis em branco com rabiscos enquanto escrevia e a gastar os rabiscos de outros papéis preenchidos, lendo-os. O colega a sair do escritório depois da conversa debochada com os amigos, umas cervejas às vezes, a ir para casa de ônibus, o que será que pensava nestas horas? e terminar a noite sentado naquela cadeira daquele quarto a pensar em coisas totalmente distintas das que ocupara sua mente durante o dia. Nos dois extremos duas imagens distintas e, sem dúvida, pensou, é difícil imaginar isso e mais difícil para ele foi perceber que estas duas imagens a conviver inesperada mas pacificamente no mesmo corpo só existiam em sua cabeça. Os outros amigos que também lá estiveram em momento algum questionaram isso. Nem iriam fazê-lo tampouco.

            Para a maioria dos amigos dele a sua imagem era apenas aquela das cervejas e das conversas debochadas.
            Resolveu ficar lá e tentar entender o que ele agora chamava de manuscrito e que nada mais era que um montão de papéis cheios de garranchos simbólicos, espalhados pelo quarto, e resolveu ficar mesmo não se sentindo muito à vontade lá, sozinho, a remexer tudo aquilo, a procurar um significado maior que apenas um montão de frases dispersas e perdidas no espaço, mas por outro lado estava realmente disposto a fuçar tudo aquilo, a abrir gavetas e revirar os livros e ler e decifrar todos os símbolos e todas as letras e todas as palavras e todas as frases que lá encontrasse e decifrá-las em que nível fosse preciso, com a determinada intenção de conhecer o amigo a partir disso sem atentar por um instante sequer para a grande estupidez que é tentar conhecer o pensamento de alguém, saber como esta pessoa é e pensa a partir de seus escritos, a partir deste mero e aleatório ajuntamento de símbolos e garranchos que elas costumam deixar impressas nas noites maldormidas.

            Mas, decidido, abriu gavetas e armários e começou a tarefa. Mal sabia ele que para descobrir o que queria a respeito do colega teria de estar aberto a descobertas novas e, mesmo a procura, tudo se efetuaria em um nível mais profundo do que aquelas todas descobertas triviais com os outros amigos. Por isso agora estava sozinho, nem todo mundo se interessa a tal ponto.

            Sentou-se, acomodou-se melhor para poder melhor fazer o seu serviço. Ao fazer isso sentiu uma calma a percorrer todo aquele quarto, uma calma a abraçá-lo enquanto gastava um tempo a olhar o porta-retrato que jazia na mesa e no qual um grupo de pessoas comemora algo, celebra algo que não fica claro o que é ao um dos amigos dele mas com certeza ele não estava lá nem ninguém que conhecera. Passou uns instantes a tentar descobrir Susan entre as três mulheres da foto, convencido que estava de que Susan era destas pessoas que podem ser vistas em fotos e serem tocadas (e beliscadas, pois não?), mas não chegou a nenhuma conclusão.

         Desviou o olhar da foto e começou a remexer os papéis. Leu

         Quando tudo começou, eu comecei a perder minhas referências, a noção do tempo, a noção do ser e do estar; minhas lembranças já não eram mais minhas, era algo com o qual não tinha mais controle; o que sou realmente, minha idade, por onde passei, quem amei…

            – Quando tudo isso começou – repetiu em voz alta (mas ninguém escutou, não havia mais ninguém lá).

            O um dos amigos dele então olhou ao seu redor e lá tudo o que viu foram só aqueles papéis todos com aqueles símbolos impressos neles em meio de uma porção de palavras e frases em meio de uma porção de papéis e livros e pensou que, e concluiu que o que tinha começado era isso, não podia ser nada mais que isso e disso era que o amigo teria perdido todas estas referências, a do tempo e a do espaço, a do ser e a da memória à medida que ia preenchendo aqueles papéis todos com rabiscos e transformando-os em um ajuntamento deles que só a alguns poderiam interessar e parecer inteligíveis. E que a ele, em particular, tanto fascinava.

            Conturbou-se com suas próprias ideias. A calma aborreceu-se e foi batendo a porta, enquanto ele pensava nisso tudo e enquanto ele pensava nisso tudo suas mãos mexiam nervosamente os papéis e enquanto pensava nisso e suas mãos mexiam nervosamente os papéis seus olhos não conseguiam se concentrar em mais nada. E enquanto tudo isso, pensava e perturbava-se com a ideia de perda que o amigo falava tão firmemente e que ele firmemente associava a todos estes rabiscos que o cercavam.
            No primeiro instante em que sua perturbação permitiu-lhe uma trégua, sentiu-se cansado, um intenso cansaço tomou-lhe de sobressalto, vindo sei lá, destas todas atividades a que se permitiu naquele dia. Não conseguiria mais nada hoje e além disso não era do tipo maratona intelectual, precisava de tempo para assimilar qualquer coisa, para ele tudo acontecia de uma maneira mais lenta, amadurecer tudo primeiro, se convencer e etc. e tal.

            Naquele dia não fuçou mais nada e foi-se embora convencido de que mais nada havia a fazer por lá, que sua presença lá era uma intrusão, verdadeira intromissão, e que de fato só se irritara com esta estória toda sem ter nenhum resultado prático e na certa o amigo há de aparecer e ter alguma explicação plausível, sim, ele terá de se explicar muito bem e não fuçou mais nada e foi-se embora convencido de que lá não voltaria mais, convencido da inutilidade deste seu ato, certo de ter perdido um tempo precioso em que poderia ter descansado ou assistido à televisão ou qualquer outra coisa tão ou mais produtiva. Convencido a não mais voltar lá, foi embora pensando como seria bom estar rapidamente em casa, tomar um bom banho e depois gastar o tempo a fazer coisas de que gosta de fazer naquelas noites. Naquelas noites a fazer coisas de que gosta. Depois de um banho. Hoje à noite.

            Pensativo e excitado, custou a dormir. Após tanto pensar, dormiu. E bem demais. E tanto que acabou perdendo a hora de ir ao trabalho. Decidiu não ir mesmo. Tinha como norma geral de vida que as coisas tinham de ser começadas e terminadas no momento certo, um pouco de atraso e isso atrapalharia todo o processo e melhor era mesmo nem começar. Decidiu não ir trabalhar atrasado que estava, por pouco que fosse.

            Passou o dia de ressaca. Acho que pensei demais, ele relacionou isso à forte dor de cabeça que agora sentia. De tarde, levou suas neuroses e complexos para passear um pouco no parque.




[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

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