1. ANDANTE
Alguns amigos dele, aparentemente preocupados com o
seu súbito desaparecimento, foram em caravana até o pequeno sobrado em que ele
morava. Foram em busca, principalmente, de indícios para esclarecer tal
misterioso sumiço pois ninguém em total sã consciência desaparece sem avisar,
evapora sem dizer ao menos uma palavra, desintegra-se silenciosamente, ainda
mais deixando um montão de serviço a fazer, ainda mais deixando pequenas
dívidas para com os amigos.
Alguns amigos dele, aparentemente
convencidos de que uma completa busca em sua casa poderia ajudar a achá-lo e
quem sabe até resgatá-lo do eventual perigo que certamente corria, conseguiram
que o chefe deles todos os dispensasse uma hora antes do término de jornada e
foram todos, com pequenas e desprezíveis exceções, a Sandrinha por exemplo não
quis ir, não que eu não goste dele, mas é que eu não quero ir e pronto,
justificou Sandrinha; foram todos em caravana até a casa dele. Era a primeira
vez que iam até lá e talvez por isso lá não conseguiram chegar sem antes terem
se perdido inúmeras vezes pelo caminho e sem antes terem de parar em um bar
para perguntar qual o melhor caminho e sem antes, ninguém é de ferro, terem
bebido uma cervejinha; tá bom, duas. Três para arredondar a conta.
Durante
todo o trajeto um dos amigos dele, um ao menos, foi pensando sobre este tal
mistério e tentava encaixar certos fatos uns aos outros como quem tenta
encaixar as peças de um complicado quebra-cabeças com o ingênuo intuito de
formar alguma imagem que fizesse sentido, com a decisiva intenção de conseguir
uma explicação para tal desaparecimento. Faltavam peças, muito mais do que as
que tinha ali à sua disposição. Na realidade conhecia pouco o amigo e mesmo
assim muito deste pouco vinha de informações que os outros amigos em comum lhe
passavam. Fofocas, piadas contadas pelo caminho, fatos que de tão distorcidos
já nos chegam diferentes e ele pensou que o que se sabe normalmente das pessoas
são só as fofocas, são só os fatos distorcidos. Porém não codificou seus
pensamentos em forma de palavras com medo de virar motivo de chacotas entre
amigos. Decidiu finalmente que o pouco que conhecia do amigo era pouco mesmo,
parte pelo fato de ele, não o amigo, ser novo na firma em que ambos
trabalhavam, em salas separadas, o que aumentava em muito a distância e parte,
sobretudo, por serem, os dois, dois tipos tímidos. Tão pouco que até diria que
não o conhecia.
Chegaram.
Enquanto
o um dos amigos dele tentava achar uma maneira
de se entrar no sobrado, sobrado de esquina com aparência deserta já há
algum tempo (dias, talvez), a campainha soando com aquela preguiça e aquele som
rouco que elas costumam ter quando não trabalham muito e tanto eles a tocaram,
a apertaram e a irritaram que ela finalmente desistiu de soar, voltou à
sua mudez usual e ao seu descanso
costumeiro, talvez já convencida de que não adiantava continuar soando que
ninguém iria mesmo atender ao chamado, nem ele que morava lá há tanto tempo nem
ninguém mais e o um dos amigos dele sorriu para si mesmo ao perceber que os
outros amigos deles demoravam muito mais do que a campainha para perceber o que
já era claro agora a todos nós.
(tentemos de novo) Enquanto o um dos
amigos dele tratava de achar uma maneira de se entrar no sobrado um outro dos
amigos dele, aparentemente o mais esperto deles todos, o de óculos, girou a
maçaneta da porta, ela estava aberta! e entre risos amarelos e gargalhadas
debochadas e entre todas aquelas piadas que são normalmente feitas nestas horas
de total nervosismo e completa descontração todos eles lá entraram, um após o
outro, aparentemente esquecidos por um breve instante da imensa preocupação que
os corroía por dentro por causa e conta do sumiço do companheiro de trabalho.
Entraram.
Casa
pequena, sala pequena com algumas revistas espalhadas, um jornal de dias atrás
meio que aberto no sofá. Mas como descrevê-la? Era uma sala com alguns móveis
que, acho eu, não vão ter muita importância na estória e nem quero aborrecê-los
com estas descrições maçantes, talvez uma televisão no canto, não sei ao certo
pois não reparei bem. Fiquei lá pouco tempo, tempo insuficiente para me lembrar
com clareza e firmeza e poder descrevê-la direito; pouco tempo também os amigos
dele lá ficaram, aparentemente apressados e repentinamente incomodados por
estarem em casa alheia.
Com
a pressa de quem procura, porém, e com a pressa de quem tem pressa em achar
algo e com a pressa também de quem está incomodado com alguma coisa, os amigos
dele resolveram sair apressadamente da sala, atravessaram a porta ao fundo dela
e chegaram à cozinha, simples cozinha com cheiro de mofo e comida de anteontem.
Apressados e incomodados, eles rapidamente deram por encerrada a procura de
indícios por lá (ele não estava na geladeira, a julgar pela cara de satisfeito
que um dos dele fez ao olhar lá dentro, nem no forno, como bem constatou algum
outro dos deles) e a abandonaram do mesmo jeito que a encontraram com o seu
cheiro de comida velha, com algumas panelas e pratos a lavar. Nada de
interessante tampouco acharam no pequeno quintal aos fundos da casa e lá foram
eles em temerosa mas decidida procissão ao segundo andar. O um dos alguns dos
amigos dele sempre por último com aquela pressa de quem segue perdida,
desesperada e inconvincentemente os apressados.
Nem é preciso dizer (pois eu sei que
o leitor é esperto e está lendo este conto com real atenção e ímpar interesse)
que no quarto de dormir ele não estava. Não estava, por exemplo, estatelado ao
chão vítima de um fulminante ataque cardíaco, baba a escorrer pela boca
manchando o carpete bege nem estava ele na cama de casal (de casal?
entreolharam-se surpresos) completamente desarrumada a agonizar por causa
daquela doença tropical ainda totalmente desconhecida e que deforma
horrivelmente o rosto e faz brotar caroços verdes e espinhas roxas por todo o
corpo ficando o pobre coitado do doente com aquele aspecto anfíbio-horripilante
e muito menos, última hipótese viável para eles, estava ele no banheiro. Não
estava, vejam só, na banheira com uma faca incrustada no peito, os olhos
parados de peixe morto, o sangue fresco a escorrer pelos ladrilhos escherianos, nem tampouco estava
encolhido e escondido no armarinho em cima da pia, tremendo de medo por conta
de algum inexplicável complexo de perseguição.
Água
fria.
Nem
no quarto de dormir nem no banheiro em nenhuma das possíveis hipóteses
levantadas. Havia, porém uma terceira porta no segundo andar que estava
fechada, trancada a chaves que seja. Dificuldade desencorajadora, pensou o mais
careca deles. Ver-se-á logo logo que esta tal de terceira porta terá alguma
influência no desenrolar da estória.
Os alguns amigos dele, ainda
aparentemente desesperados de preocupação com o seu misterioso sumiço,
confabularam e confabularam e tanto confabularam que chegaram à conclusão de
que não sabiam o que fazer. Mas uma das ideias que surgiu de tão profícua
discussão foi tentar reconstruir a partir dos inúmeros objetos que eles foram
encontrando espalhados pela casa os que teriam sido os últimos passos do amigo.
Aquele dos alguns amigos dele que sugeria tal tão brilhante ideia exemplificou
dizendo que tinha achado na cozinha dois copos com restos de vinho e dois pratos
sujos com a mesma comida o que implicava, concluía brilhantemente, que o amigo
em comum teve companhia em sua última refeição (quase disse ceia) antes de seu
estranho e ainda não resolvido sumiço.
Surpreendidos
com a estonteante e inesperada esperteza do colega, voltaram todos
apressadamente à cozinha, que deveria ser uma fonte inesgotável de pistas a
procurar, a decifrar (Ah! O fascínio sherlockiano!) e a viraram literalmente ao
avesso sem porém terem conseguido maiores resultados. Nenhum observador estrategista
e imparcial ao ver a total falta de organização e método na procura aleatória
de indícios por parte dos alguns amigos dele se espantaria com a quase total
falta de conclusões a que chegaram. Pois, verdade seja dita, nada mais
conseguiram deduzir a não ser que a companhia que ele teve aquela noite não
deveria usar batom. Mas não conseguiram concluir mais nada e nada mais
conseguindo concluir, por fim desistiram.
Desistiram
desanimados.
E já que as deduções não eram o
forte deles, o mais forte deles resolveu arrombar a porta daquele terceiro
quarto do segundo andar, ora bolas, uma
portinha daquelas eu arrebento com um sopro. Não que eles achassem que o
amigo porventura estivesse lá dentro, não era isso, e muito menos confiavam que
lá encontrariam alguma coisa que os levasse a ele, longe disso, a moral já
estava em baixa como se vê, era apenas que deveriam fazer algo e este algo era
a única ideia que passava pelas cabeças deles (era como se a movimentação
fizesse com que a gente esquecesse um pouco as nossas limitações, acho que é
isso, nada de muito filosófico; acabei de me lembrar de algo: para Rosa
liberdade é isto, movimentação, enquanto aqui movimentação é isto, limitação).
Se por um lado o arrombar da porta traduzia um pouco o restinho de esperança
que eles ainda tinham de conseguir algo e salvar a missão de um completo
fracasso, por outro lado a possibilidade, grande e aparentemente presente, de
que eles não conseguissem nada dentro deste quarto os atormentava
inconscientemente e a cada proposta para o arrombamento seguiam várias objeções
e várias objeções surgiam a cada proposta para o arrombamento da porta (o
simples sopro mostrou-se insuficiente como já deve ter concluído o astuto e
atento leitor).
[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário