quinta-feira, 19 de março de 2020

Mero, parte II


2. AGITTATO


            Entraram no quarto e, de fato, o amigo não se encontrava lá, pendurado ao teto e mantido assim por uma corda que o enlaçava o pescoço, um dos sapatos caído de lado e uma carta sucinta, sincera, calma, mas dura, deixada em cima da mesa explicando os motivos de tal violenta atitude. Nem estava ele escondido debaixo da cadeira a tremer de medo por causa de um improvável, mas não descartado ataque de rinocerontes asiáticos. Em suma, não estava lá efetivamente.

            Por um momento ficaram todos a olhar o quarto, a examinar tudo superficialmente mas sem sequer se entreolharem pois isso implicaria dizer algo e algo eles ainda não estavam preparados para dizer. Por um longo instante ainda ficaram mudos, evitaram se olhar. E não mexeram em nada enquanto durava aquele longo instante que é aquele em que entramos em um mundo que nunca nos pertenceu e que nunca de fato irá nos pertencer inteiramente, aquele longo instante que é o da descoberta a respeito do amigo, conhecido apenas?, aquele longo instante que é simplesmente aquele longo instante. Não mexeram em nada, apenas ficaram a olhar em volta, a se moverem lentamente, a respirarem silenciosamente, até que a impressão se dissipasse no ar e o relógio voltasse a correr e a avisar que não poderiam ficar lá o dia todo, ao menos não parados a olharem-se uns aos outros, ou a não se olharem, como era bem o caso.

            É interessante como as coisas acontecem: por um instante após eles terem entrado no quarto nada os teria feito viver esta impressão estranha, este estranhamento, este longo instante que eu citei acima, isso faz parte da vivência. Só depois que este instante terminou é que o relógio pode avisá-los a respeito do tempo a correr e coisa e tal e todas as consequências, óbvias ou não, que advém deste corriqueiro, usual mas extremamente complexo e intrigante fato. Se o relógio tivesse insistido em avisá-los antes, eles não teriam nem ouvido. O que eu estou querendo dizer é que este instante fora importante para eles, eles precisaram disso antes de poder ter a próxima reação, reação esta que não é inteiramente espontânea e muito menos arbitrária. Intrigante, não?

            Enquanto eles foram descobrindo este quarto do amigo, o único que estava fechado a chaves e enquanto o um dos amigos dele pensou que era no mínimo surpreendente encontrar tudo aquilo reunido em um quarto só e pensou até que a única coisa em comum entre aquilo tudo que ele agora via, acompanhado de certos amigos deles e que juntos começavam a descobrir lentamente, a única ligação entre todos aqueles objetos era que tudo pertencia à mesma pessoa, à mesma pessoa que ele não conhecia direito e que, intrigado, agora gostaria de conhecer realmente melhor e enquanto foram mexendo nos livros, uma porção de livros, nos papéis espalhados em cima da mesa, um montão de papéis, uma porção de papéis com um montão de rabiscos neles, nas coisas jogadas por tudo quanto é canto e enquanto foram mexendo nisso tudo, a princípio devagar e com respeito, olhares respeitosos e mãos vagarosas e logo logo adquirindo aquele sarcasmo e descuido que vem de nossa insegurança, enquanto isso eles foram percebendo o quão pouco eles conheciam o amigo, nenhum deles poderia sequer imaginar que o amigo colecionava tantos papéis, aquela porção de papéis espalhados pela mesa, com aqueles garranchos, sim verdadeiros garranchos neles que fazia sentido, ou que deveria fazer sentido a poucos e, aos poucos, aqueles amigos dele foram se acostumando à bagunça dos papéis e ao estranho quarto que ele mantinha, uma verdadeira reclusão e um dos amigos dele ficou a imaginar se alguém, fora o amigo, jamais chegara a entrar neste quarto e repentinamente perguntou-se se eles próprios teriam este direito, o direito de entrar aqui e permanecer e fuçar as suas coisas com o mesmo respeito que os cachorros tem quando fuçam esfomeados uma lata de lixo. Estas dúvidas se dissiparam logo, porém.

            Um minuto, treze? e eles já se sentiam mais à vontade naquele quarto, a rirem até e isso substituía a segurança que eles ainda não tinham adquirido neste mundo estranho  e desconhecido.  E aos poucos, isto demora mais é claro, foram achando que aqueles garranchos naqueles tantos papéis espalhados por lá poderiam ter algum significado simbólico (sim, por que não?); aqueles papéis que eles pegaram de cima da mesa e após espanarem, soprando junto com a poeira dos tempos também alguns rabiscos extras e olharem cuidadosamente e que a princípio não conseguiam distinguir nada mais que alguns garranchos deveriam, ah! isso sim, deveriam ter algum significado (acho até que as mentes deles estavam deveras preocupadas de início com outras questões e vem daí, esta é a minha interpretação, deixemos isso bem claro, a demora em se procurar nos garranchos sinais inteligíveis) e poderiam, quem sabe, ter algum significado até para eles que não estão muito acostumados com isso e logo eles ficaram curiosos para poder decifrá-los, decodificá-los para uma linguagem que eles todos pudessem entender e um dos deles chegou até a abrir a boca para dizer isso, mas não o fez pois não soube codificar os seus pensamentos em forma de palavras. Mas qual o significado, qual a lógica daqueles símbolos? (Ah! esta nossa estranha e tola, inútil e imprescindível mania de se procurar significado nas coisas!)

            Por um instante o silêncio os subjugou.

            Difícil explicar como mas já agora começam todos a procurar significados, a tentar decodificar os códigos obscuros que encontraram, os símbolos que sejam, e a recodificarem em outros mais inteligíveis, uns com cautela, outros afoitamente, uns incompetentemente e outros com mais intuição, com vivências ou tolamente; alguns até conscientemente.

            – Letras – arriscou um meio timidamente.

            – Sim, é isto, letras – disse outro dos deles, justamente aquele de óculos (que já sabemos são os mais inteligentes) e que tenta com entusiasmo conquistar a liderança do grupo. E existem aqueles que logo aceitam as descobertas, mas sim são letras seus estúpidos. E tanto quanto aceitar as descobertas também faz parte do jogo questioná-las, recusá-las, desqualificá-las, ridicularizá-las, nem que seja pela disputa de uma liderança. Mas aqui a disputa foi curta, não havia muitos argumentos contra, nem havia daqueles que nunca desistem, e a vitória logo se estabeleceu: são letras sim, por que não? e logo logo todos já estão comemorando efusivamente a descoberta, letras, letras, e pensarão todos uniformemente, até aqueles que não se convenceram inteiramente desta estória de rabiscos simbólicos e decodificações e letras. E com certeza a descoberta traz como consequência também a segurança que faltava a uma outra busca (ninguém descobre nada impunemente).

            Sim, todos a rirem enquanto alguns poucos, já que alguém ensinou o caminho, começam a perceber que estes rabiscos e garranchos estão postos lado a lado de uma maneira esquisita e isto os inquieta e agora se questionam se isto ocorre porque, só estou arriscando um palpite, pessoal, existe, talvez, quem sabe, alguma intenção específica e oculta para isso, mas qual? e aos poucos foram se convencendo de que sim, mas é óbvio, os garranchos são letras e concluíram ao analisar cuidadosamente estes garranchos, estas letras para todos os possíveis efeitos, que se elas estão postas lado a lado isto indicaria uma possibilidade (pequena?, grande?) de que juntas possam ter algum significado mais profundo que apenas letras esparsas e soltas a saltitarem inconsequentemente pelos papéis (quem é que poria letras juntas sem alguma razão específica?); palavras, sim letras juntas formam palavras, é claro, riram-se todos da própria esperteza, palavras na maioria das vezes ininteligíveis se a ordem em que estas ditas letras aparecem são escolhidas sem nenhum critério mas que no caso dele deveriam fazer sentido afinal ele era um cara sensato, ninguém poderia jurar mas tudo levava-os a crer piamente nisso. É isto: ele juntou as letras em tal ordem a formarem ajuntamentos, palavras, com sentido (apesar disso ser bem subjetivo, não é mesmo?).

            Riram-se todos bem satisfeitos da vida.

            Embaralhar o alfabeto, juntar estas todas letras uma a uma em um cuidado artesanal, emendá-las, reuni-las, escrevê-las, pintá-las, grifá-las, formar palavras e frases. Ah! o fascínio das palavras!

            Não demorou muito e eles seguindo a mesma linha de raciocínio (a criatividade não era o forte deles) perceberam frases, que nada mais são que um mero ajuntamento de palavras, em última instância um ajuntamento de letras, de rabiscos simbólicos e que para alguns tem algum significado todo especial e que chega a fascinar uns poucos a tal ponto de estes sempre as trazerem no bolso do colete como quem traz um relógio de ouro a exibir, a mostrar aos outros, a se orgulhar das frases que trazem nos bolsos dos coletes e a pretender que isso o diferencie dos outros.

            E um dos alguns amigos dele mostrou aos outros o que tinha achado e achava que aqueles papéis que trazia às mãos, naqueles papéis que trazia às mãos as frases pareciam se concatenar, se interagir, se inter-relacionar de tal maneira a querer dizer algo mais do que quando estão sozinhas a passear livremente pelos papéis, mas não sabia bem como. E talvez isso até pudesse explicar o desaparecimento do amigo, seguiu pensando mas não comoveu ninguém, ninguém ligou muito para esta opinião, muito menos para o seu pensamento, estavam por demais cansados por causa de tantas descobertas.

            – Pensar cansa, meu!

            Outro dos alguns amigos dele chamou a atenção de todos. Trazia um pedaço de papel na mão e leu:

            – ...daquela maneira maravilhosamente silenciosa que só com a Susan era possível…

            Riram-se todos, menos um. E ao que parece esta frase fazia sentido a eles todos. (E a respeito de Susan, desde então ela ficou conhecida por seu silêncio; maravilhoso silêncio, gozavam. Certos amigos, inveja? diziam a boca pequena que isto só poderia ser frigidez. Mas isto, é claro, é outra estória, é outro conto.)
         
            Após terem dado risadas com outras coisas que encontraram pelo caminho os alguns amigos dele deram por encerrada a sessão de intensa preocupação para com o suposto sumiço do amigo e, já era tempo, foram tomar uma geladinha comentando entre si, na realidade tentando se convencerem de que ele devia era estar agora em algum retiro espiritual e em completo silêncio com Susan. (Tudo é uma questão de se achar uma boa desculpa para não se preocupar mais. Alguns, porém, são mais exigentes com a qualidade das desculpas, outros não.) Riram-se todos das deduções, todos menos um, e estavam todos mais do que satisfeitos com o dia vivido, todos menos um, e seguiram para o bar, todos menos um, o mesmo um que achava que o amigo não sumiria assim à toa, o mesmo um que achou estranha a quantidade enorme de frases que jaziam na mesa do amigo pois nunca soube que seu amigo era escritor de frases e que possuía este encanto de saber misturá-las, de colocá-las juntas da maneira maravilhosa que a ele tanto agradava.

            O mesmo um que ouviu a porta bater enquanto pensava nisso tudo. E os sons por detrás dela aos poucos desaparecendo.

            O dia em que alguns dos amigos dele forçaram a porta do terceiro quarto do segundo andar que iria eventualmente desvendar o mistério do sumiço dele, pelo menos assim pensavam eles, era uma quinta-feira.




[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

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