2. AGITTATO
Entraram
no quarto e, de fato, o amigo não se encontrava lá, pendurado ao teto e mantido
assim por uma corda que o enlaçava o pescoço, um dos sapatos caído de lado e
uma carta sucinta, sincera, calma, mas dura, deixada em cima da mesa explicando
os motivos de tal violenta atitude. Nem estava ele escondido debaixo da cadeira
a tremer de medo por causa de um improvável, mas não descartado ataque de
rinocerontes asiáticos. Em suma, não estava lá efetivamente.
Por
um momento ficaram todos a olhar o quarto, a examinar tudo superficialmente mas
sem sequer se entreolharem pois isso implicaria dizer algo e algo eles ainda
não estavam preparados para dizer. Por um longo instante ainda ficaram mudos,
evitaram se olhar. E não mexeram em nada enquanto durava aquele longo instante
que é aquele em que entramos em um mundo que nunca nos pertenceu e que nunca de
fato irá nos pertencer inteiramente, aquele longo instante que é o da
descoberta a respeito do amigo, conhecido apenas?, aquele longo instante que é
simplesmente aquele longo instante. Não mexeram em nada, apenas ficaram a olhar
em volta, a se moverem lentamente, a respirarem silenciosamente, até que a
impressão se dissipasse no ar e o relógio voltasse a correr e a avisar que não
poderiam ficar lá o dia todo, ao menos não parados a olharem-se uns aos outros,
ou a não se olharem, como era bem o caso.
É
interessante como as coisas acontecem: por um instante após eles terem entrado
no quarto nada os teria feito viver esta impressão estranha, este
estranhamento, este longo instante que eu citei acima, isso faz parte da
vivência. Só depois que este instante terminou é que o relógio pode avisá-los a
respeito do tempo a correr e coisa e tal e todas as consequências, óbvias ou
não, que advém deste corriqueiro, usual mas extremamente complexo e intrigante
fato. Se o relógio tivesse insistido em avisá-los antes, eles não teriam nem
ouvido. O que eu estou querendo dizer é que este instante fora importante para
eles, eles precisaram disso antes de poder ter a próxima reação, reação esta
que não é inteiramente espontânea e muito menos arbitrária. Intrigante, não?
Enquanto eles foram descobrindo este quarto do
amigo, o único que estava fechado a chaves e enquanto o um dos amigos dele
pensou que era no mínimo surpreendente encontrar tudo aquilo reunido em um
quarto só e pensou até que a única coisa em comum entre aquilo tudo que ele
agora via, acompanhado de certos amigos deles e que juntos começavam a
descobrir lentamente, a única ligação entre todos aqueles objetos era que tudo
pertencia à mesma pessoa, à mesma pessoa que ele não conhecia direito e que,
intrigado, agora gostaria de conhecer realmente melhor e enquanto foram mexendo
nos livros, uma porção de livros, nos papéis espalhados em cima da mesa, um
montão de papéis, uma porção de papéis com um montão de rabiscos neles, nas
coisas jogadas por tudo quanto é canto e enquanto foram mexendo nisso tudo, a
princípio devagar e com respeito, olhares respeitosos e mãos vagarosas e logo
logo adquirindo aquele sarcasmo e descuido que vem de nossa insegurança,
enquanto isso eles foram percebendo o quão pouco eles conheciam o amigo, nenhum
deles poderia sequer imaginar que o amigo colecionava tantos papéis, aquela
porção de papéis espalhados pela mesa, com aqueles garranchos, sim verdadeiros
garranchos neles que fazia sentido, ou que deveria fazer sentido a poucos e,
aos poucos, aqueles amigos dele foram se acostumando à bagunça dos papéis e ao
estranho quarto que ele mantinha, uma verdadeira reclusão e um dos amigos dele
ficou a imaginar se alguém, fora o amigo, jamais chegara a entrar neste quarto
e repentinamente perguntou-se se eles próprios teriam este direito, o direito
de entrar aqui e permanecer e fuçar as suas coisas com o mesmo respeito que os
cachorros tem quando fuçam esfomeados uma lata de lixo. Estas dúvidas se
dissiparam logo, porém.
Um
minuto, treze? e eles já se sentiam mais à vontade naquele quarto, a rirem até
e isso substituía a segurança que eles ainda não tinham adquirido neste mundo
estranho e desconhecido. E aos poucos, isto demora mais é claro, foram
achando que aqueles garranchos naqueles tantos papéis espalhados por lá
poderiam ter algum significado simbólico (sim, por que não?); aqueles papéis
que eles pegaram de cima da mesa e após espanarem, soprando junto com a poeira
dos tempos também alguns rabiscos extras e olharem cuidadosamente e que a princípio
não conseguiam distinguir nada mais que alguns garranchos deveriam, ah! isso
sim, deveriam ter algum significado (acho até que as mentes deles estavam
deveras preocupadas de início com outras questões e vem daí, esta é a minha
interpretação, deixemos isso bem claro, a demora em se procurar nos garranchos
sinais inteligíveis) e poderiam, quem sabe, ter algum significado até para eles
que não estão muito acostumados com isso e logo eles ficaram curiosos para
poder decifrá-los, decodificá-los para uma linguagem que eles todos pudessem
entender e um dos deles chegou até a abrir a boca para dizer isso, mas não o
fez pois não soube codificar os seus pensamentos em forma de palavras. Mas qual
o significado, qual a lógica daqueles símbolos? (Ah! esta nossa estranha e
tola, inútil e imprescindível mania de se procurar significado nas coisas!)
Por
um instante o silêncio os subjugou.
Difícil
explicar como mas já agora começam todos a procurar significados, a tentar
decodificar os códigos obscuros que encontraram, os símbolos que sejam, e a
recodificarem em outros mais inteligíveis, uns com cautela, outros afoitamente,
uns incompetentemente e outros com mais intuição, com vivências ou tolamente;
alguns até conscientemente.
–
Letras – arriscou um meio timidamente.
–
Sim, é isto, letras – disse outro dos deles, justamente aquele de óculos (que
já sabemos são os mais inteligentes) e que tenta com entusiasmo conquistar a
liderança do grupo. E existem aqueles que logo aceitam as descobertas, mas sim
são letras seus estúpidos. E tanto quanto aceitar as descobertas também faz
parte do jogo questioná-las, recusá-las, desqualificá-las, ridicularizá-las,
nem que seja pela disputa de uma liderança. Mas aqui a disputa foi curta, não
havia muitos argumentos contra, nem havia daqueles que nunca desistem, e a
vitória logo se estabeleceu: são letras sim, por que não? e logo logo todos já
estão comemorando efusivamente a descoberta, letras, letras, e pensarão todos
uniformemente, até aqueles que não se convenceram inteiramente desta estória de
rabiscos simbólicos e decodificações e letras. E com certeza a descoberta traz
como consequência também a segurança que faltava a uma outra busca (ninguém
descobre nada impunemente).
Sim,
todos a rirem enquanto alguns poucos, já que alguém ensinou o caminho, começam
a perceber que estes rabiscos e garranchos estão postos lado a lado de uma
maneira esquisita e isto os inquieta e agora se questionam se isto ocorre
porque, só estou arriscando um palpite, pessoal, existe, talvez, quem sabe,
alguma intenção específica e oculta para isso, mas qual? e aos poucos foram se
convencendo de que sim, mas é óbvio, os garranchos são letras e concluíram ao
analisar cuidadosamente estes garranchos, estas letras para todos os possíveis
efeitos, que se elas estão postas lado a lado isto indicaria uma possibilidade
(pequena?, grande?) de que juntas possam ter algum significado mais profundo
que apenas letras esparsas e soltas a saltitarem inconsequentemente pelos
papéis (quem é que poria letras juntas sem alguma razão específica?); palavras,
sim letras juntas formam palavras, é claro, riram-se todos da própria
esperteza, palavras na maioria das vezes ininteligíveis se a ordem em que estas
ditas letras aparecem são escolhidas sem nenhum critério mas que no caso dele
deveriam fazer sentido afinal ele era um cara sensato, ninguém poderia jurar
mas tudo levava-os a crer piamente nisso. É isto: ele juntou as letras em tal
ordem a formarem ajuntamentos, palavras, com sentido (apesar disso ser bem
subjetivo, não é mesmo?).
Riram-se
todos bem satisfeitos da vida.
Embaralhar
o alfabeto, juntar estas todas letras uma a uma em um cuidado artesanal,
emendá-las, reuni-las, escrevê-las, pintá-las, grifá-las, formar palavras e
frases. Ah! o fascínio das palavras!
Não
demorou muito e eles seguindo a mesma linha de raciocínio (a criatividade não
era o forte deles) perceberam frases, que nada mais são que um mero ajuntamento
de palavras, em última instância um ajuntamento de letras, de rabiscos
simbólicos e que para alguns tem algum significado todo especial e que chega a
fascinar uns poucos a tal ponto de estes sempre as trazerem no bolso do colete
como quem traz um relógio de ouro a exibir, a mostrar aos outros, a se orgulhar
das frases que trazem nos bolsos dos coletes e a pretender que isso o
diferencie dos outros.
E
um dos alguns amigos dele mostrou aos outros o que tinha achado e achava que
aqueles papéis que trazia às mãos, naqueles papéis que trazia às mãos as frases
pareciam se concatenar, se interagir, se inter-relacionar de tal maneira a
querer dizer algo mais do que quando estão sozinhas a passear livremente pelos
papéis, mas não sabia bem como. E talvez isso até pudesse explicar o
desaparecimento do amigo, seguiu pensando mas não comoveu ninguém, ninguém
ligou muito para esta opinião, muito menos para o seu pensamento, estavam por
demais cansados por causa de tantas descobertas.
–
Pensar cansa, meu!
Outro
dos alguns amigos dele chamou a atenção de todos. Trazia um pedaço de papel na
mão e leu:
–
...daquela maneira maravilhosamente silenciosa que só com a Susan era possível…
Riram-se
todos, menos um. E ao que parece esta frase fazia sentido a eles todos. (E a
respeito de Susan, desde então ela ficou conhecida por seu silêncio;
maravilhoso silêncio, gozavam. Certos amigos, inveja? diziam a boca pequena que
isto só poderia ser frigidez. Mas isto, é claro, é outra estória, é outro
conto.)
Após
terem dado risadas com outras coisas que encontraram pelo caminho os alguns
amigos dele deram por encerrada a sessão de intensa preocupação para com o
suposto sumiço do amigo e, já era tempo, foram tomar uma geladinha comentando
entre si, na realidade tentando se convencerem de que ele devia era estar agora
em algum retiro espiritual e em completo silêncio com Susan. (Tudo é uma
questão de se achar uma boa desculpa para não se preocupar mais. Alguns, porém,
são mais exigentes com a qualidade das desculpas, outros não.) Riram-se todos
das deduções, todos menos um, e estavam todos mais do que satisfeitos com o dia
vivido, todos menos um, e seguiram para o bar, todos menos um, o mesmo um que
achava que o amigo não sumiria assim à toa, o mesmo um que achou estranha a
quantidade enorme de frases que jaziam na mesa do amigo pois nunca soube que
seu amigo era escritor de frases e que possuía este encanto de saber
misturá-las, de colocá-las juntas da maneira maravilhosa que a ele tanto
agradava.
O
mesmo um que ouviu a porta bater enquanto pensava nisso tudo. E os sons por
detrás dela aos poucos desaparecendo.
O
dia em que alguns dos amigos dele forçaram a porta do terceiro quarto do
segundo andar que iria eventualmente desvendar o mistério do sumiço dele, pelo
menos assim pensavam eles, era uma quinta-feira.
[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]
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