A porta do corredor número dois permanecia fechada
e, mais ainda, permanecia uma possibilidade de escape. Ele olhou para o seu
passado e se redescobriu um aventureiro. Bons tempos aqueles em que pulava de
paraquedas um dia para no outro subir o Himalaia e no seguinte descer aquela
montanha de neve fofa. Canoagem no encontro das águas, parapente em dias
trovejantes, leituras de novos autores brasileiros, cada aventura já viveu!
Mas agora, tudo passado, tudo tão longe, queria
apenas ir para a rua, bastava essa aventura! Arriscou abrir a porta do corredor
número dois e, estava escuro, nem arriscou um passo naquela misteriosa e
assustadora direção. Dias se passaram antes de nova tentativa, é preciso ir se
acostumando com a ideia, nem tudo deve ser feito de forma tão radical e imediata.
Foi, coragem, de uma vez, antes do arrependimento.
Atravessou a porta do corredor número dois, avançou
por ele, passou por dois quartos que se mostraram tão surpresos por vê-lo
quanto o contrário. Parou em um deles e ficou admirando os quadros por lá, quadros
esperançosos de tão coloridos que eram, a cama aparentemente recém feita, a
estante de livros de poesia, e só de poesia. Quem é que só lê poesia, meu?
retrucou para si mesmo, e mesmo assim parou e ficou horas lendo-as. Recitava em
voz alta as que mais gostava, e tantas foram as que gostou e tanto ficou por lá
que lá dormiu e lá acordou faminto já no dia seguinte.
Resignou-se, era preciso retroceder um pouco, achou
o caminho de volta para a sala, para o corredor principal e para a cozinha.
Café com leite, queijo de minas no pão de forma barrado de manteiga, o suco de
laranja.
Quem diria? Precisou de mais um par de dias para se
recompor, a ressaca o pegou de jeito, o deixou acabado no sofá assistindo
filmes antigos e já decorados de tanto ver, o fez comer qualquer coisa de
almoço, de jantar e mais um dia assim, assim viveu.
Mas a coragem volta, o ímpeto recupera suas forças
e lá vai ele de novo. Interpretou que o cansaço da outra vez tinha sido por
conta do excesso de poesia lida e, por isso, evitou dessa vez aquele quarto.
Mas não o seguinte que, de fato, vazio estava, ou quase. Uma cadeira de balanço
balançava ao sabor dos ventos e dos pensamentos de quem por lá passara
recentemente, mesmo que esses tempos mais recente possam ser contados em
décadas. O embalo da cadeira não o animou a ficar, traria lembranças,
impingiria uma tristeza, seguiu.
De tempos em tempos, a parede o apresentava um
interruptor de luzes e ele ia acendendo enquanto passava por portas e mais
portas, todas fechadas. Quando voltava o olhar, só via o corredor iluminado
como rua de Natal, as luzes, sabe-se lá por que, coloridas com tendência ao
vermelho.
Mas ainda não foi dessa vez. Assustado com um
barulho na parte ainda escura do corredor, ele voltou a passos ágeis para o
conforto de seus domínios, sua sala-banheiro-cozinha-quarto que tinham sido
suficientes por tantos anos, voltou para a porta, agora trancada por fora, mas
que significava sua conexão com o seu mundo predileto.
Enquanto jantava, prometeu-se fechar de vez a porta
daquele corredor e não pensar mais nisso. Logo, a quarentena acabaria e ele
poderia voltar às suas voltinhas pelo bairro.
Pois é, decisões são para serem refeitas, promessas
para serem quebradas, resoluções irrevogáveis revistas, opiniões nem se fala.
Mas ele se assustou foi com a rapidez que tudo ocorreu. Mal acordou dois dias
depois e sua mente já estava convicta de que era preciso ir até o final
daquilo, aquilo sendo o misterioso corredor número dois. Preparou-se, no
entanto, não queria que nada o surpreendesse no meio do caminho, fome, frio,
febre que fosse.
Encheu então sua mochila com sanduíches, de queijo,
de salame italiano, de carne louca. Com chocolates, com bebidas, geladas ou
energéticas, mas evitou as alcóolicas (a bem da verdade, antes de ir, topou um
cálice bem generoso da parati que mantinha escondida dos filhos). Casaco,
pastilhas e tylenóis completavam sua bagagem. Gorro e lá se foi.
Pois bem, ao final o corredor nem era muito maior
do que o que no outro dia ele tinha andado. Se bem que, dessa vez, a
curiosidade o levava a abrir porta aqui ou acolá para ver o que encontrava. Foi
se acostumando com a diversidade dos quartos e banheiros e salas e até cozinhas
paralelas que foi encontrando pelo caminho. Essa curiosidade o foi detendo mais
do que queria, sentia nesse momento uma vontade imensa de chegar ao final do
corredor e, quiçá, abrir sua porta final para o mundo que tanto o esperava.
Vez ou outra, parava por um bocado de lanche, um
gole de bebida, um pedaço de chocolate.
Tivesse ele trazido uma bolinha de gude na mochila,
poderia vê-la rolar no chão ao sabor das imperceptíveis inclinações do
corredor, ora para a frente, ora para trás, ora quase correndo, ora modorrenta
de quase não se mover. Notar o imperceptível nos caminhos andados, isso se faz
necessário.
Mas ela chega, né? alguma hora a porta do final do
corredor chega e lá ele se encontra frente a ela, maçaneta piscando e pedindo
para ser usada, sem fechadura aparente. Impossível não filosofar nessas horas,
impossível não pensar que lá fora o espera esse tal novo normal que tanto
falam, esse novo e maravilhoso mundo. Porém, fazendo suspense, gostava disso, ou
talvez disfarçando a ansiedade, detestava essa sua característica, ele resolveu
desembrulhar antes de qualquer coisa o último de seus sanduíches, que calhou
ser o de mortadela com manteiga. Mordeu-o após um gole da coca-cola zero, já
quase morna.
Girou a maçaneta, a porta cedeu e, pronto, ele
estava na rua. Seus olhos ainda demoraram um pouco para se acostumarem com
aquela luz natural. Não tardou muito para se perceber do outro lado da rua de
sua casa e só restou a ele atravessá-la para dar de frente aos seus filhos
descarregando em sua porta de entrada as caixas com as compras semanais.
Uma nova mordida no sanduíche de mortadela o
entreteve antes de cumprimentar o par de assustados filhos.
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