Lá estão eles, os dois filhos, me
trancando aqui em casa. É certo que eu dizia, e cumpria, que sairia de casa a
hora que quisesse. Eles, sei lá por que, ficavam ameaçando trancar-me por aqui,
vamos colocar uma nova fechadura aqui nessa porta, diziam e tanto
disseram que agora cumprem o ameaçado e bem na minha frente. Agora eu os olho
pela janela, conversam entre si sem remorsos, acenam ao final e se vão. Já a
compra está toda no hall de entrada esperando que eu a desinfete e a arrume na
cozinha.
A casa é grande, sei, mas maior é o mundo lá fora e
eu gosto muito de minhas voltinhas, até sinto a dura abstinência se algo me
impede a saída diária. Mas eles insistem que agora eu tenho que ficar dentro de
casa, que é perigoso sair por aí na minha idade. Qual-o-quê, setenta anos é lá
idade de risco? Setenta e seis, vá lá!
Certo é que eles deixam semanalmente
na minha porta tudo o que necessito, inclusive em uma tal fartura que não tive
nesses anos todos desde que fiquei só nessa imensa casa. Daqui não saio,
insistiam que saísse antes e agora me impedem de sair, vai entender isso! Não
saio, mas quero dar minhas voltinhas pelo bairro, meu cafezinho na padaria, a
conversa com o jornaleiro, a fezinha no jogo do bicho. Quem é que pode me
impedir isso? Pois bastava eles virarem a esquina, eu recolhia toda a compra
deixada na porta e, zás, saia para a minha voltinha, o sorriso para a manicure
da rua de baixo, retribuído sim por ela com muito carinho. Ela até costuma me
dizer que eu sou jovem demais para viver sozinho, para ficar preso naquela casa
imensa sem companhia, e que dava até para a família inteira dela vir morar
comigo se eu quisesse, tanto o espaço que eu tenho à disposição. Família
inteira? E eu lá sou um idiota? Basta ela vir uma vez por semana para cuidar de
minhas unhas e me conceder uma de suas massagens generosas. Pago muito bem pela
unha e ela sabe disso, quero lá outra família? Basta a minha que agora, de
tanto insistirem que eu não deveria sair, resolveram colocar uma nova fechadura
na porta da frente, uma chave para cada um dos filhos e eu fico sem nenhuma,
fico trancado e trancado.
Eles agora deixam essa fartura de coisas na minha
porta, uma vez por semana, quem será que come tanto assim? Esperam à distância
que eu recolha tudo e depois me trancam por aqui. A casa é grande, poderia
passar dias e dias sem sequer repetir algum cômodo, a quarentena inteira sem
sequer repetir quarto que fosse. Exagero... é grande, mas nem tanto. É grande,
mas maior era minha voltinha diária nesse mundão de deus. Eles se justificam
que é para o meu bem, que é por pouco tempo, que logo poderei voltar ao que era
antes. Sei lá, sei lá. Preferia arriscar a não voltar para casa em um desses
dias do que arriscar a não sair mais daqui.
Agora estou preso em casa. Parece que há uma outra
porta, nos fundos da casa, mas não me lembro bem dela. Sempre usei a porta da
frente nessas décadas todas em que aqui vivi, recusava-me a usar outra e agora
nem tenho a certeza de que ela sequer existe. Esforço-me, olho para um dos
corredores que sai da sala e fico confuso. O, digamos assim, corredor
principal, irá dar no meu quarto, no banheiro que uso frequentemente e, lógico,
na necessária cozinha. Faço esse trajeto todos os dias e até pareceria, a quem
me vigiasse de perto, que a casa se resume a isso. Tudo o que precisei desde a
morte dela está por aqui, nessa pequena porção dessa imensa casa. Sim, na cozinha
há uma porta para fora, mas ela dá para um quintalzinho nos fundos, meio
atulhado de coisas e sem saída para o mundo. Sem possibilidades para o jogo do
bicho ou para a manicure, a não ser que ela pule o murro lá nos fundos. Será?
Pedir muito.
O outro corredor, tempos não abro a sua porta, deve
dar, eventualmente, para o mundo exterior, penso agora. É preciso explorar
isso, mas hoje não que de aventuras mentais, já me cansei.
Acontece que semana passou antes de ter de novo
esses pensamentos. Olhei minhas unhas e fiquei com saudades. E a porta principal
da casa continua trancada por fora. Amanhã deve ser o dia em que eles virão,
eles e as caixas de mantimentos. Se eu conversasse com eles, se pedisse com
jeito, talvez eles me permitissem dar uma volta, apenas uma voltinha, curtinha,
até a rua de baixo, bastaria isso. Suborno? Não... acho que eles não precisam,
a herança da mãe foi bem gordinha. Chantagem emocional? Nada... são frios como
o sorvete que eles me trazem todas as semanas.
Durmo desanimado.
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