quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Tribunal das Águas de Valência



          Os canais de irrigação do rio Túria nas portas da cidade de Valência na Espanha foram muito provavelmente construídos durante o califado de Córdova (929-1031) e funcionam até hoje. Desde 1238, eles são administrados, por ordem de Jaime I, pelos campesinos. Para resolver disputas envolvendo a alocação das águas desses canais, existe, desde os primórdios, o Tribunal das Águas de Valência que se reúne, até hoje, toda quinta-feira ao meio dia na Porta dos Apóstolos, parte exterior direita da Catedral da cidade.
          Formado por oito síndicos representando os oitos canais de irrigação e presidido por um deles, em um rodízio semanal, o tribunal resolve de pronto as denúncias de irrigação abusiva. O processo é gratuito e oral e sua decisão deve ser cumprida imediatamente. Todos os envolvidos, síndicos e campesinos, respeitam as decisões e há um sentimento geral de justiça.
          Apesar da eficiência e agilidade, ou talvez mesmo por conta disso, há sempre vozes tentando acabar com essa jurisdição que é garantida tanto pelo Estatuto de Autonomia da Comunidade Valenciana quanto pela constituição espanhola de 1978. Também, é parte do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Muitos não conseguem conceber como é possível se fazer justiça sem uma imensa e morosa estrutura por trás e muito menos como se confiar em algo baseado em uma secular sabedoria popular.
          O que acontece é que, tempos atrás, motivados por um dos inúmeros ataques que o tribunal sofreu, os seus membros resolveram fazer consultas internacionais para ver como funcionavam outros sistemas jurídicos. E veio a calhar consultarem o Thio Therezo sobre o sistema brasileiro.
          Lisonjeado com o convite, lá foi o Thio para mais uma estadia na agradável Valência, mesmo ciente de que pouco ou quase nada poderia contribuir para o aprimoramento do tribunal. Não que o seu conhecimento das entranhas (palavra mais do que adequada) do sistema judicial brasileiro não fosse suficientemente profundo, mais do que isso, o Thio é um especialista renomado, não há quem duvide disso. O ponto é que o nosso sistema se apoia sobre, digamos assim, outros princípios éticos.
          Após dar mais uma volta pelo centro da cidade que tanto gosta e se deliciar no Mercat Central, o Thio foi se reunir com os membros do tribunal. A conversa, ninguém duvidaria, foi em valenciano, língua que o Thio conhece muito bem, é famoso o seu tratado linguístico sobre ela. Antes de mais nada, ele quis deixar clara a sua admiração pelo secular tribunal e enfatizou sua crença de que nada poderia ajudar em possíveis aprimoramentos a partir da experiência brasileira.
Tomando essas palavras como gentilezas normais em tais situações, os campesinos valencianos pediram inicialmente que o Thio descrevesse, em linhas gerais, os procedimentos jurídicos no Brasil. Após meia hora de fala, acharam que era chacota do bem humorado Thio a descrição de todas as instâncias a que deve se submeter um pobre coitado que necessitasse de justiça. O Thio, tentado dourar um pouco as dificuldades que os mortais enfrentam em nossa justiça, disse que havia um grupo de pessoas que não precisava passar por tudo aquilo que descreveu, havia fóruns privilegiados para elas além de penas específicas. Exemplificando, mencionou o grupo de especiais cujos membros, quando pegos em crimes e, na incrível eventualidade de serem condenados, poderiam até sofrer a pena máxima, qual seja a de se aposentarem com rendimentos integrais.
O Thio então percebeu uma troca de olhares entre eles. Completando a sua descrição, o Thio disse, agora sim meio que na chacota, que algumas pessoas especiais eram até isentas do melindre de serem processadas.
          - Como assim? – perguntaram incrédulos.
          - Acontece que certos juízes preferem não processar certas pessoas para não as melindrarem...
          - Mas isso está nas leis?
          - Jurisprudência, jurisprudência... – respondeu o Thio. O que o Thio não disse foi que era uma decisão do IBAMA para a preservação de certas aves em vias de extinção, não estava seguro de que os valencianos iriam entender essa piada.
          Calaram-se todos por um momento. A essa altura da conversa os locais já desconfiavam que o sistema jurídico brasileiro não serviria como modelo caso fossem forçados a reformular o Tribunal das Águas. Mas, mesmo assim, mesmo que fosse só por curiosidade, continuaram a conversa. Ao que um dos membros do tribunal perguntou para quebrar o silêncio e desanuviar o ambiente:
          - Ouvimos certos rumores de que é normal o juiz combinar com a acusação procedimentos e estratégias na ação em que está atuando. É claro que isso é piada, não?
          - Bom... digamos que legal isso não é...
          - Mas... acontece? – um outro perguntou um tanto quanto indignado.
          - É... veja bem... digamos que sim – agora era o Thio que estava constrangido.
- E ninguém reclama?
- Sim, as pessoas que acreditam em um estado de direito justo reclamam, mas você tem que entender que no Brasil as leis em geral só são reconhecidas se forem usadas contra os seus inimigos...
          Foi aí que alguém propôs irem comer, já era tarde e não poderiam perder a oportunidade de se deliciarem com a especialidade da culinária valenciana.
          - Eu avisei que não valia a pena... – o Thio ainda teve a oportunidade de falar antes de se dirigirem ao restaurante.
          Foi uma noite extremamente agradável onde o prato principal foi, claro, a paella valenciana regada a muita orxata. Assuntos jurídicos, obviamente, não fizeram parte da conversa, animada e sincera.


[[ foto do Tribunal tirada por Carlesmari ]]

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