Os canais de
irrigação do rio Túria nas portas da cidade de Valência na Espanha foram muito
provavelmente construídos durante o califado de Córdova (929-1031) e funcionam
até hoje. Desde 1238, eles são administrados, por ordem de Jaime I, pelos
campesinos. Para resolver disputas envolvendo a alocação das águas desses
canais, existe, desde os primórdios, o Tribunal das Águas de Valência que se
reúne, até hoje, toda quinta-feira ao meio dia na Porta dos Apóstolos, parte
exterior direita da Catedral da cidade.
Formado por
oito síndicos representando os oitos canais de irrigação e presidido por um
deles, em um rodízio semanal, o tribunal resolve de pronto as denúncias de
irrigação abusiva. O processo é gratuito e oral e sua decisão deve ser cumprida
imediatamente. Todos os envolvidos, síndicos e campesinos, respeitam as
decisões e há um sentimento geral de justiça.
Apesar da
eficiência e agilidade, ou talvez mesmo por conta disso, há sempre vozes
tentando acabar com essa jurisdição que é garantida tanto pelo Estatuto de
Autonomia da Comunidade Valenciana quanto pela constituição espanhola de 1978.
Também, é parte do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Muitos não
conseguem conceber como é possível se fazer justiça sem uma imensa e morosa
estrutura por trás e muito menos como se confiar em algo baseado em uma secular
sabedoria popular.
O que
acontece é que, tempos atrás, motivados por um dos inúmeros ataques que o
tribunal sofreu, os seus membros resolveram fazer consultas internacionais para
ver como funcionavam outros sistemas jurídicos. E veio a calhar consultarem o
Thio Therezo sobre o sistema brasileiro.
Lisonjeado
com o convite, lá foi o Thio para mais uma estadia na agradável Valência, mesmo
ciente de que pouco ou quase nada poderia contribuir para o aprimoramento do
tribunal. Não que o seu conhecimento das entranhas (palavra mais do que
adequada) do sistema judicial brasileiro não fosse suficientemente profundo,
mais do que isso, o Thio é um especialista renomado, não há quem duvide disso.
O ponto é que o nosso sistema se apoia sobre, digamos assim, outros princípios
éticos.
Após dar
mais uma volta pelo centro da cidade que tanto gosta e se deliciar no Mercat
Central, o Thio foi se reunir com os membros do tribunal. A conversa, ninguém
duvidaria, foi em valenciano, língua que o Thio conhece muito bem, é famoso o
seu tratado linguístico sobre ela. Antes de mais nada, ele quis deixar clara a
sua admiração pelo secular tribunal e enfatizou sua crença de que nada poderia
ajudar em possíveis aprimoramentos a partir da experiência brasileira.
Tomando essas palavras como
gentilezas normais em tais situações, os campesinos valencianos pediram inicialmente
que o Thio descrevesse, em linhas gerais, os procedimentos jurídicos no Brasil.
Após meia hora de fala, acharam que era chacota do bem humorado Thio a
descrição de todas as instâncias a que deve se submeter um pobre coitado que
necessitasse de justiça. O Thio, tentado dourar um pouco as dificuldades que os
mortais enfrentam em nossa justiça, disse que havia um grupo de pessoas que não
precisava passar por tudo aquilo que descreveu, havia fóruns privilegiados para
elas além de penas específicas. Exemplificando, mencionou o grupo de especiais cujos
membros, quando pegos em crimes e, na incrível eventualidade de serem condenados,
poderiam até sofrer a pena máxima, qual seja a de se aposentarem com rendimentos
integrais.
O Thio então percebeu uma
troca de olhares entre eles. Completando a sua descrição, o Thio disse, agora
sim meio que na chacota, que algumas pessoas especiais eram até isentas do
melindre de serem processadas.
- Como assim?
– perguntaram incrédulos.
- Acontece
que certos juízes preferem não processar certas pessoas para não as melindrarem...
- Mas isso
está nas leis?
-
Jurisprudência, jurisprudência... – respondeu o Thio. O que o Thio não disse
foi que era uma decisão do IBAMA para a preservação de certas aves em vias de
extinção, não estava seguro de que os valencianos iriam entender essa piada.
Calaram-se
todos por um momento. A essa altura da conversa os locais já desconfiavam que o
sistema jurídico brasileiro não serviria como modelo caso fossem forçados a
reformular o Tribunal das Águas. Mas, mesmo assim, mesmo que fosse só por curiosidade,
continuaram a conversa. Ao que um dos membros do tribunal perguntou para quebrar
o silêncio e desanuviar o ambiente:
- Ouvimos
certos rumores de que é normal o juiz combinar com a acusação procedimentos e estratégias
na ação em que está atuando. É claro que isso é piada, não?
- Bom...
digamos que legal isso não é...
- Mas... acontece?
– um outro perguntou um tanto quanto indignado.
- É... veja
bem... digamos que sim – agora era o Thio que estava constrangido.
- E ninguém reclama?
- Sim, as pessoas que
acreditam em um estado de direito justo reclamam, mas você tem que entender que
no Brasil as leis em geral só são reconhecidas se forem usadas contra os seus
inimigos...
Foi aí que alguém
propôs irem comer, já era tarde e não poderiam perder a oportunidade de se
deliciarem com a especialidade da culinária valenciana.
- Eu avisei que
não valia a pena... – o Thio ainda teve a oportunidade de falar antes de se
dirigirem ao restaurante.
Foi uma
noite extremamente agradável onde o prato principal foi, claro, a paella
valenciana regada a muita orxata. Assuntos jurídicos, obviamente, não fizeram
parte da conversa, animada e sincera.
[[ foto do Tribunal tirada por Carlesmari ]]
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