[[Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "k"]]
A noite já estava até cansada de existir e eu piscava meu desânimo frente ao monitor. Garimpava, é preciso garimpar nessa serra por demais pelada, algo que me motivasse. Horas à frente do monitor sugam a energia do mais valente, do mais otimista, o que dizer então da minha?
A noite já estava até cansada de existir e eu piscava meu desânimo frente ao monitor. Garimpava, é preciso garimpar nessa serra por demais pelada, algo que me motivasse. Horas à frente do monitor sugam a energia do mais valente, do mais otimista, o que dizer então da minha?
Mas foi nesse instante que, no meio de tantos
posts coloridos, surpreendeu-me uma sugestão de amizade feita pelo Mark.
Pisquei, tentei me animar e lá fui eu. É preciso garimpar e garimpar é esperar
pelo bônus que virá, seguramente virá, é esperançar pelo cavalo selado passando
atropelando tudo e nos convidando a seguir com ele, pela estrela cadente, pela
nova música que soará inesperada no canto obscuro de nossa vida. É ver pagar
todo o esforço que se faz por meses e meses por meio de tantos kkkkazes e
rsrsrsresses, de infindáveis curtidas e intermináveis compartilhadas. É o
momento em que dizemos que valeu a pena as horas rolando e rolando a tela do
monitor pra baixo e pra cima, clicando o refresh
de tempos em tempos. Com quantos amigos virtuais irei efetivamente dividir uma
taça de Merlot ou compartilhar uma poema regado a beijos? É preciso garimpar.
Um clique e fui para a página dela.
O bônus tinha chegado, convenci-me
disso, bastou olhar o seu incompleto perfil. A frase, quase nenhuma informação,
mas a frase, poucas fotos, a maioria na penumbra da vida, mas a frase, a frase!
Dito assim, até parecia alguma frase extraordinária, mas naquele momento,
garrafa de Tannat no seu quarto final, horas a rolar a tela, séculos à espera no
vazio da madrugada, ela até que me fez sentido, trouxe-me uma estranha
intimidade com a minha possível mais nova amiga e pareceu-me que a conhecia há
muito. Apaixonar-se, bastava pouco agora.
“parece-me que
até já fui feliz... se ao menos me lembrasse do que isso é feito, tentaria
replicar...”
Convidei-a. Ainda fuçava sua pouco
informativa página quando recebi a esperada resposta, aceitava-me como amigo,
rapidez essencial nessas horas de furtiva expectativa. De quebra, descobri
outra notívaga nesse mundão. Nesses tempos atuais, quem é que não tem trocentos
amigos pra prosear, para curtir e ser curtido? Trocar selfies de felicidades,
invejar a todos com paradisíacas viagens? E agora eu tinha mais uma. Só que
essa era especial, alguém que procurasse a matéria prima da felicidade só pode
ser especial...
Sou tímido, já disse, não? Agradeci
inbox sua aceitação e ela respondeu imediatamente com um coraçãozinho...
Muito tímido, já reforcei isso, né?
Seguimos trocando mensagens curtas e desenhinhos via inbox. Tem gente que já
parte para o explícito, mas eu não, fui lento e lendo fui me aproximando dela,
lendo e escrevendo, lento como convém. Talvez, em outros tempos, perguntasse
logo pela cor da calcinha, se ela estava sozinha no quarto, se vestia sutiã. Mas
não me ocorreu nada disso naquela nossa conversa incial. Quando se chega à fase
do bônus, essas perguntas já não fazem mais sentido, já são perguntas de
adolescentes, perdidas em um passado longínquo. E olha que minha adolescência
não completou ainda duas décadas.
Par de dias, passamos ao e-mail
quando aquela telinha minúscula do inbox já não comportava mais nossas frases
mais extensas, nossa troca de ideias poéticas, nossas expectativas. Suas poucas
fotos publicadas, uma sorridente (devia ser do tal passado que ela não consegue
recordar direito), outras distorcidas pelas luzes de fundo, essas poucas fotos
me satisfizeram por um bom tempinho e, a ela, talvez as minhas poucas disponíveis
também fossem suficientes. E acontece que fomos nos conhecendo assim, sempre
uma troca de e-mails lidos e relidos antes de enviar. Tínhamos o zapzap pra
avisar quando tínhamos escritos um ao outro. O seu barulho característico
soando no começo da madrugada, livro no colo já cansado de ser lido e eu, que
já piscava meu sono, me animava novamente e, sob o olhar do gato que sabe
cafunezar e que mal entendia esse novo hábito, ia lá eu para o computador ler
sua mensagem.
Um dia, ela me manda um conto, nas
palavras dela um projeto de conto. Não sabia que ela escrevia, descobri então,
mas poderia ter desconfiado... a quantidade de escritores que há hoje em dia
excede até o dos leitores. Se cada escritor comprasse e lesse dez outros, seríamos
todos bestsellers.
E o conto dela me despertou. Era uma
estória em torno de um tijolo que uma moça manda a um amigo. Bem escrito, ao menos
nessa minha visão de leitor assíduo.
Li e reli e pareceu-me que poderia
haver uma continuação bem natural àquilo que ela tinha começado. Respondi então
a ela que leria o conto no dia seguinte com calma, que a faria ter a minha
opinião, e escondi-me no escritório escrevendo e reescrevendo, pensando e
repensando sua estória, a estória do tijolo, da garota e do amigo.
Dois dias depois, ganhei coragem e
enviei a ela o que seria, na minha opinião, uma continuidade natural ao que ela
tinha escrito.
Fui ousado, sei disso, se bem que
talvez essa não seja a melhor palavra... temos destas coisas, um ciúmes do que
escrevemos, a ninguém é dado o direito de se meter muito em nossos escritos, no
máximo aceitamos, a contragosto, a contragosto, uma revisãozinha gramatical. Aceitamos,
sim, forçados e com a garganta presa e sorriso imprudente, qualquer crítica
mais profunda, como sobreviver nesse universo sem fingir aceitar isso?
Uma melhor palavra? Imprudente.
Outra? Cafa! E lá ia eu procurando palavras para a atrocidade que tinha feito
quando ela me escreve dizendo que gostara da continuidade pensada por mim e...
Por que não? Iríamos escrever uma
estória a quatro mãos, cada um enviando ao outro o que seria o seu próximo
capítulo. Ninguém, ao menos no começo, mexeria no que o outro escreveu, bastava
esperar chegar a sua vez e tentar uma coerente continuidade. Ao final,
revisaríamos tudo juntos.
Pensando em retrospecto agora, creio
que ela até torceu para que eu escrevesse alguma continuação ao seu conto
inicial. Um novo tijolo, ela esperava, e outro seguiria da parte dela...
Metáforas, óbvias mas
indispensáveis.
Avançamos e, quando tínhamos uma boa
dúzia de capítulos escritos, quase meia parede de tijolos, um livro começava a
tomar forma, no melhor estilo da autoficção. Era sim, definitivamente, um livro
de autoficção escrito a quatro mãos, só que duas, as minhas, se concentravam
apenas na ficção, enquanto que as outras duas, as delas, escreviam no modo
auto.
Hoje sei que foi essa divisão
impensada que nos levou àquele inacabado livro.
A personagem principal, após
colecionar tijolos imaginários, engravida nas mãos dela enquanto que, par de
capítulos depois, as mãos da ficção a levam a um aborto após um acidente de
trânsito.
Sei, agora sei, nenhuma autoficção
sobreviveria à minha pesada mão ficcional. A princípio, estranhei o seu
silêncio, ainda insisti um contato mas a realidade se sobrepôs afinal.
Hoje, eu também passo as noites
tentando replicar aqueles momentos que tinha vivido com ela...
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