[[ Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "l"]]
- Oi...
Era ela,
pouco tinha ouvido de fato a sua voz, mas sabia que era ela.
- Oi –
convincentemente, respondi. Desde nosso pequeno desentendimento, quase que não
tínhamos nos comunicado. Disse pequeno? Acho que o foi para mim, pois para ela tinha
sido monumental a contar por sua reação.
- Você
recebeu o meu arquivo? – ela foi direta ao ponto.
- Sim,
vi pela manhã, mas...
- Quero
resolver isso logo...
Mas eu
não tinha tido tempo para ler com calma, era isso que eu gostaria de ter dito
quando ela me interrompeu. Minha vida é corrida, vida de desocupado que vive de
herança, nunca sobra tempo para nada...
- Me dê
alguns dias para ler com calma...
- Já
disse, não me enrole, quero resolver isso logo.
- Tá, é
que eu queria ler antes o que você mandou, parecia um contrato...
- Não
seja irônico... não era um contrato, apenas um termo para estabelecer o que é de
cada um depois da... de... de nosso desentendimento.
Estava confuso. Mal nos
conhecíamos, nunca compramos nada em conjunto, nada tínhamos para ser separado,
na realidade nem nos encontramos pessoalmente, só trocávamos mensagens, agradáveis
a meu ver. Certo é que essas mensagens nos levou a começar a escrever um livro
a quatro mãos, numa brincadeira que, esperava, nos levaria a nos conhecer
melhor.
Ah... entendi, o livro.
- Vamos fazer assim - ela
retomou – Eu digo a você quais são os pontos principais pra facilitar a sua
leitura do termo de separação que eu mandei.
Entendi? Um termo de
separação? Começava a achar tudo isso um pouco sui generis demais, mas vamos
tocando.
- Ãhn... de acordo... toca!
- Tá certo que o livro ainda
estava longe de ter alguma forma final e graças a deus que a gente escrevia os
capítulos separadamente, fica mais fácil assim dizer quais frases e parágrafos
pertencem a cada um de nós, não é?
- Concordo plenamente...
- ... pois bem... esse é o
primeiro ponto do termo de separação que eu mandei. Cada capítulo é de quem
escreveu...
- ... ceeerto... mas eles
eram escritos em sequência, estavam ligados de alguma maneira.
- ... é... esse é exatamente
o ponto que precisamos discutir, há alguns detalhes que se misturam. Mesmo
quando a gente escrevia separadamente, parte do que escrevíamos
refletia algo do outro, ou era inspirado no que o outro pensou. É
preciso esclarecer isso muito bem...
Surreal isso, por mim ela
poderia finalizar o livro e publicá-lo do jeito que quisesse, mas, por outro
lado, estava curioso para saber até onde isso iria chegar.
- ... por exemplo?
- Te dou um... aquela ideia
do encontro no café perto da estação de metrô, fui eu que escrevi isso, mas se
você não tivesse mencionado no capítulo anterior que gostava tanto de café, nem
teria me ocorrido algo do tipo...
- ... não eu, eu nem gosto
tanto de café, gosto de vinho... é o personagem que não conseguia viver sem
beber café...
- É mesmo? Achei que fosse
algo seu isso...
- Não mesmo, o personagem é
inventado...
- Que coisa, eu gosto de
café, assim como ela...
- Ela?
- Sim, a Paula...
- Ãhn, nossa personagem!
- Nossa... vírgula, minha
personagem!
- ... desculpa, sua
personagem...
- Fui eu que a criei logo no
primeiro capítulo, ela é minha... apesar de você querer impor características a ela... você sabe que eu não gostei dessa
sua interferência!
- ... ainda mais que ela se
parece muito com você...
- O que você quer dizer com
isso? Você nem me conhece! Mas voltando, aquele encontro foi escrito por mim,
mas a ideia foi sua. Se você quiser, com outras palavras é claro, ficar com
esse encontro, tudo bem, seria justo, já que me inspirei em suas ideias.
- Por mim, você pode ficar
com esse trecho, sem problema...
O carinho que eu sentia por
ela voltava, por que é que certas pessoas complicam tanto a vida? A menina que
buscava entender porque fora feliz no passado para replicar no presente estava
ali, do outro lado do telefone, procurando, a meu ver, um contato comigo, mas
de uma forma tão bizarra...
Tivemos expectativas
distintas enquanto escrevíamos a estória e isso levou a um desentendimento
quando eu impingi algo a um personagem que ela não concordava. Não teria
problema algum em retomar ao rumo que ela queria para a estória, nem era tão
importante assim esse tal livro que escrevíamos juntos, era sim aquela troca de
mensagens, criar a estória conjuntamente, o tempo que gastava pensando nela
(ficou ambíguo em quem eu pensava?), imaginá-la... Nem sei por que, mas parecia
não haver volta agora e, por outro lado, se eu dissesse que ela poderia ficar
com todo o livro, mais nada sobraria para falarmos ao telefone e eu a perderia
de vez.
- Obrigado – ela disse e
continuou – a propósito, fui eu que nomeei os dois personagens principais logo
no primeiro capítulo, mas você, parágrafos depois, arranjou um apelido ao
personagem masculino... apelido e nome estão tão coerentes...
- ... o que você quer dizer?
- ... é que... se você não
se importar... mas se importar, tudo bem, vou entender perfeitamente.
- ... eu me importar com o
que?
- Posso usar esse apelido
também? Sei que foi você que criou...
- Pode, sim... faço questão
que fique com você...
Vontade de convidá-la a vir
me visitar. Sei que ela mora longe, essa foi sempre a desculpa para não nos
vermos até então, mas queria agora dar-lhe um abraço, sentir seu calor
aquecendo minha solidão. Sua voz cada vez mais tranquila me indicava que sim,
que ela também gostaria. Mas vamos seguindo para saber até onde isso vai.
- Legal, obrigada. Tem uma
frase...
Ela insistia, isso era bom,
adia o momento de dizer aquele adeus definitivo.
- Qual?
- Vou ler: “E então, seu
olhos, castanhos de nascença mas quase verdes por conta do por de sol, diziam
muito mais que seus lábios carnudos poderiam sequer imaginar...”
- O que tem? Você escreveu
isso, ou não?
- Escrevi, sim... quer
dizer, mas eu queria que ficasse com você, essa frase me diz tanto sobre esse
tempo que nos correspondemos... Você promete usar em seu livro? Uma forma de
você se lembrar...
Prometi, como recusar tal
pedido. Mas livro não há, nem haverá, para ser sincero, estou longe de escrever
algo que possa ser publicado. Sou só um leitor compulsivo e esse é o meu único
contato com a literatura.
O silêncio se impôs por um
tempo mais do que necessário, eu pensando nos tais olhos castanhos e em seus
lábios carnudos, mas e ela, em que pensava? Ela, por fim, falou.
- ... bom, preciso ir... tem
algumas outras coisinhas no termo sobre frases e ideias que precisamos dividir,
mas acho que você irá entender o que escrevi...
O que fazer? Tinha medo de
tentar mudar o rumo dessa estranha conversa, de tentar mudar o rumo de nossos
destinos. Estava confuso, deveria convidá-la a retomar nosso contato? E uma
recusa, tantas tive... deveria pedir-lhe um abraço? E uma negação, tantas
tive... que merda ser tímido e inseguro!
- Mas posso te ligar se
tiver alguma dúvida? – tentava deixar alguma porta aberta...
- Pode... – ela disse, voz
meio tristonha e completou – ah! queria te perguntar algo.
- ... sim? – esperançoso
respondi.
- Você está com alguém
agora?
- Não, sozinho... estou
sozinho em casa...
- Quero dizer, você anda
saindo com alguém?
Estranhei.
- ... não, com ninguém...
- É que nunca se sabe, somos
todos viventes... se você estivesse com alguém, eu pediria que essa pessoa
também assinasse o termo... só para garantir que ela depois não vá
interferir... achar que tem algum direito sobre o meu livro, sabe como é...
Ainda melancólico e com a
voz embargada, só me ocorreu responder ao susto dessa última frase com ironia.
- Quer que eu reconheça
minha firma nesse documento em cartório?
- ... se não for dar trabalho...
[[ No próximo dia 01/09, estarei autografando o meu romance "Pigarreios" na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Das 14 às 15 horas no stand da Editora Chiado. Todos estão convidados!!!]]
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