quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Se for l, o meu livro de volta.

 [[ Mais um conto da série "O que você pediria?" Agora com a letra "l"]]

           - Oi...
            Era ela, pouco tinha ouvido de fato a sua voz, mas sabia que era ela.
            - Oi – convincentemente, respondi. Desde nosso pequeno desentendimento, quase que não tínhamos nos comunicado. Disse pequeno? Acho que o foi para mim, pois para ela tinha sido monumental a contar por sua reação.
            - Você recebeu o meu arquivo? – ela foi direta ao ponto.
            - Sim, vi pela manhã, mas...
            - Quero resolver isso logo...
            Mas eu não tinha tido tempo para ler com calma, era isso que eu gostaria de ter dito quando ela me interrompeu. Minha vida é corrida, vida de desocupado que vive de herança, nunca sobra tempo para nada...
            - Me dê alguns dias para ler com calma...
            - Já disse, não me enrole, quero resolver isso logo.
            - Tá, é que eu queria ler antes o que você mandou, parecia um contrato...
            - Não seja irônico... não era um contrato, apenas um termo para estabelecer o que é de cada um depois da... de... de nosso desentendimento.
Estava confuso. Mal nos conhecíamos, nunca compramos nada em conjunto, nada tínhamos para ser separado, na realidade nem nos encontramos pessoalmente, só trocávamos mensagens, agradáveis a meu ver. Certo é que essas mensagens nos levou a começar a escrever um livro a quatro mãos, numa brincadeira que, esperava, nos levaria a nos conhecer melhor.
Ah... entendi, o livro.
- Vamos fazer assim - ela retomou – Eu digo a você quais são os pontos principais pra facilitar a sua leitura do termo de separação que eu mandei.
Entendi? Um termo de separação? Começava a achar tudo isso um pouco sui generis demais, mas vamos tocando.
- Ãhn... de acordo... toca!
- Tá certo que o livro ainda estava longe de ter alguma forma final e graças a deus que a gente escrevia os capítulos separadamente, fica mais fácil assim dizer quais frases e parágrafos pertencem a cada um de nós, não é?
- Concordo plenamente...
- ... pois bem... esse é o primeiro ponto do termo de separação que eu mandei. Cada capítulo é de quem escreveu...
- ... ceeerto... mas eles eram escritos em sequência, estavam ligados de alguma maneira.
- ... é... esse é exatamente o ponto que precisamos discutir, há alguns detalhes que se misturam. Mesmo quando a gente escrevia separadamente, parte do que escrevíamos refletia algo do outro, ou era inspirado no que o outro pensou. É preciso esclarecer isso muito bem...
Surreal isso, por mim ela poderia finalizar o livro e publicá-lo do jeito que quisesse, mas, por outro lado, estava curioso para saber até onde isso iria chegar.
- ... por exemplo?
- Te dou um... aquela ideia do encontro no café perto da estação de metrô, fui eu que escrevi isso, mas se você não tivesse mencionado no capítulo anterior que gostava tanto de café, nem teria me ocorrido algo do tipo...
- ... não eu, eu nem gosto tanto de café, gosto de vinho... é o personagem que não conseguia viver sem beber café...
- É mesmo? Achei que fosse algo seu isso...
- Não mesmo, o personagem é inventado...
- Que coisa, eu gosto de café, assim como ela...
- Ela?
- Sim, a Paula...
- Ãhn, nossa personagem!
- Nossa... vírgula, minha personagem!
- ... desculpa, sua personagem...
- Fui eu que a criei logo no primeiro capítulo, ela é minha... apesar de você querer impor características  a ela... você sabe que eu não gostei dessa sua interferência!
- ... ainda mais que ela se parece muito com você...
- O que você quer dizer com isso? Você nem me conhece! Mas voltando, aquele encontro foi escrito por mim, mas a ideia foi sua. Se você quiser, com outras palavras é claro, ficar com esse encontro, tudo bem, seria justo, já que me inspirei em suas ideias.
- Por mim, você pode ficar com esse trecho, sem problema...
O carinho que eu sentia por ela voltava, por que é que certas pessoas complicam tanto a vida? A menina que buscava entender porque fora feliz no passado para replicar no presente estava ali, do outro lado do telefone, procurando, a meu ver, um contato comigo, mas de uma forma tão bizarra...
Tivemos expectativas distintas enquanto escrevíamos a estória e isso levou a um desentendimento quando eu impingi algo a um personagem que ela não concordava. Não teria problema algum em retomar ao rumo que ela queria para a estória, nem era tão importante assim esse tal livro que escrevíamos juntos, era sim aquela troca de mensagens, criar a estória conjuntamente, o tempo que gastava pensando nela (ficou ambíguo em quem eu pensava?), imaginá-la... Nem sei por que, mas parecia não haver volta agora e, por outro lado, se eu dissesse que ela poderia ficar com todo o livro, mais nada sobraria para falarmos ao telefone e eu a perderia de vez.
- Obrigado – ela disse e continuou – a propósito, fui eu que nomeei os dois personagens principais logo no primeiro capítulo, mas você, parágrafos depois, arranjou um apelido ao personagem masculino... apelido e nome estão tão coerentes...
- ... o que você quer dizer?
- ... é que... se você não se importar... mas se importar, tudo bem, vou entender perfeitamente.
- ... eu me importar com o que?
- Posso usar esse apelido também? Sei que foi você que criou...
- Pode, sim... faço questão que fique com você...
Vontade de convidá-la a vir me visitar. Sei que ela mora longe, essa foi sempre a desculpa para não nos vermos até então, mas queria agora dar-lhe um abraço, sentir seu calor aquecendo minha solidão. Sua voz cada vez mais tranquila me indicava que sim, que ela também gostaria. Mas vamos seguindo para saber até onde isso vai.
- Legal, obrigada. Tem uma frase...
Ela insistia, isso era bom, adia o momento de dizer aquele adeus definitivo.
- Qual?
- Vou ler: “E então, seu olhos, castanhos de nascença mas quase verdes por conta do por de sol, diziam muito mais que seus lábios carnudos poderiam sequer imaginar...”
- O que tem? Você escreveu isso, ou não?
- Escrevi, sim... quer dizer, mas eu queria que ficasse com você, essa frase me diz tanto sobre esse tempo que nos correspondemos... Você promete usar em seu livro? Uma forma de você se lembrar...
Prometi, como recusar tal pedido. Mas livro não há, nem haverá, para ser sincero, estou longe de escrever algo que possa ser publicado. Sou só um leitor compulsivo e esse é o meu único contato com a literatura.
O silêncio se impôs por um tempo mais do que necessário, eu pensando nos tais olhos castanhos e em seus lábios carnudos, mas e ela, em que pensava? Ela, por fim, falou.
- ... bom, preciso ir... tem algumas outras coisinhas no termo sobre frases e ideias que precisamos dividir, mas acho que você irá entender o que escrevi...
O que fazer? Tinha medo de tentar mudar o rumo dessa estranha conversa, de tentar mudar o rumo de nossos destinos. Estava confuso, deveria convidá-la a retomar nosso contato? E uma recusa, tantas tive... deveria pedir-lhe um abraço? E uma negação, tantas tive... que merda ser tímido e inseguro!
- Mas posso te ligar se tiver alguma dúvida? – tentava deixar alguma porta aberta...
- Pode... – ela disse, voz meio tristonha e completou – ah! queria te perguntar algo.
- ... sim? – esperançoso respondi.
- Você está com alguém agora?
- Não, sozinho... estou sozinho em casa...
- Quero dizer, você anda saindo com alguém?
Estranhei.
- ... não, com ninguém...
- É que nunca se sabe, somos todos viventes... se você estivesse com alguém, eu pediria que essa pessoa também assinasse o termo... só para garantir que ela depois não vá interferir... achar que tem algum direito sobre o meu livro, sabe como é...
Ainda melancólico e com a voz embargada, só me ocorreu responder ao susto dessa última frase com ironia.
- Quer que eu reconheça minha firma nesse documento em cartório?
- ... se não for dar trabalho...



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