quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Cepillos


          Par de meses atrás, fomos a Buenos Aires. Fazia um tempo que não a visitava sem compromissos outros que o de passear por ela, que o de me esquecer no tempo, que o de me perder em suas ruas e passado. E lá, convenhamos, é possível se fazer isso, se esquecer do tempo.
          Sem pressa, conto algumas coisas.
Uma delas? Fazia tempo que eu procurava um bom pincel para fazer a barba (sim, sou daqueles que usa creme de barbear, pincel e gillette...). Brocha de afeitar, assim aprendi a procurar por lá.
Em São Paulo, já tinha até desistido e quis aproveitar que estava em uma cidade como Buenos Aires, certeza de encontrar. Na realidade, deve até ser possível encontrar um bom pincel de barbear em algum lugar dessa minha cidade natal, seguramente, mas onde? Cidade dispersa em que nada tem seu lugar, onde somos (eu, certamente sou) pré-históricos, onde tudo parece conspirar contra você. As que achei, de fato, eram feitas de pelos de plásticos, que arranham a pele.
Mas em Buenos Aires, com seu incomparável ar histórico (principalmente no centro), eu sabia que encontraria um bom pincel para barbear. E não tardou muito, pergunta aqui e acolá, me indicaram uma loja, logo ali, duas quadras direto e virando à esquerda, não há como errar.
E lá estava ela, El rey del Cepillo, especializada em plumeros, escobillones, cepillos de ropa, de cabelo e, claro, brochas de afeitar.
 Entramos na pequena loja como se muda de dimensão temporal. Uma senhora muito simpática a atender. Na conversa, contou-nos que ela e o marido tinham aquela loja há muito tempo. Notava-se, loja simples, mas bem cuidada e suprida, loja especializada que deve ter mantido o sustento da família em todos aqueles anos. Viajo em meus pensamentos, imagino os filhos do casal já formados e exercendo profissões diversas, a primogênita é médica, o do meio virou artista e a caçula, ah essa ainda vai se achar na vida...
Viúva? pergunto-me. Pelo olhar saudoso com que ela nos diz a idade da loja tudo me leva a crer que sim. Sim, seu olhar nos transmite toda uma história desse casal, dessa família e de sua luta, de seus desafios, de todas as crises vividas e, quem sabe, da fome dos tempos piores, das esperanças e dos desesperos. E é certo que, mesmo triste, seu olhar traz a certeza de que ainda há espaço para uma loja artesanal de cepillos no centro de uma grande cidade como Buenos Aires.
Ela me mostrou todas, literalmente todas, as brochas de afeitar que tinha à disposição, todas muito parecidas, mas nunca iguais, nunca o serão é verdade, pelos de animais distintos não podem produzir o mesmo efeito em sua pele. E ela, consciente disso, passava em sua pele os pelos macios do pincel antes de me mostrar. Fez isso com todos os pincéis, abria a caixinha, retirava-o, passava ligeiramente em sua pele e só então eu teria permissão para testar e ver se gostava.
O que ela pensava enquanto passava ligeiramente o pincel na pele das costas de sua mão? Nunca saberei, mas sentia nisso um momento especial dela, uma lembrança, ou várias a depender de como o pelo alisava sua pele com história, a depender da carícia feita com lembranças.
Estávamos sem pressa aquele dia, mas, mesmo que estivéssemos apurados, nada na vida justificaria apressá-la em seu ritual, naquele momento que era só dela (e de quem mais participasse de suas memórias). Segundos que fossem, ela parecia se ausentar dali, esquecia nossa presença ao sentir o pelo alisando sua enrugada pele, o improvável pelo ativador de memórias.
Cada ruga, uma lembrança, não é assim que elas surgem? E não é na carícia que elas são reativadas?
Por fim, escolhi o que queria, depois de conversarmos sobre passados e presentes. Quanto tempo ficamos lá? Nem foi tanto, no registro do relógio, mas foi muito no da memória.
Dia sim, dia não, faço a minha barba no ritual de décadas. Mas agora, ao sentir o pincel espalhar a espuma em meu rosto, sinto a necessidade do tempo parado, do tempo passado e, segundos apenas, pareço voltar à lojinha e ao olhar da velhinha quando sentia o pelo do pincel acariciar sua pele ativando lembranças.
Sei que a barba continuará a crescer e que terei por algum tempo ainda à minha disposição essa rotina, esse momento especial. Ainda bem.



[[ O meu livro "outros tantos" ganhou essa semana um vídeo-resenha. Quem quiser assistir, basta clicar AQUI. Tem também um book trailer bem caprichado AQUI.


Para quem quiser comprá-lo indico essas opções: (i) site da Editora PENALUX; (ii) Livraria da Vila; (iii) diretamente comigo (na promoção do Natal, comprando comigo, você ganha um outro livro meu, à escolha, bastar escrever para o e-mail: flavioucoelho at gmail.com )]]



Nenhum comentário:

Postar um comentário