quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

iba áles, seis



          A parte mais perigosa da excursão é fundear o navio.  Apesar do “iba áles II” ser uma embarcação totalmente preparada para esse tipo de viagem, esse momento é sempre tenso e preocupante. Não se pode fundeá-lo muito perto da borda que há sempre o perigo do navio ser arremessado ao espaço sem fim. Por outro lado, se muito distante dela, não se tem a visão exata do término do oceano e do planeta.
          Não que, de qualquer forma, alguém deixará de usufruir dessa maravilhosa experiência. Há a natural gradação de castas meritocráticas e quem não tem o status suficiente só poderá contribuir financeiramente e, com sorte, ouvir os excitados gritos de exclamação vindo de cima, além dos tilintares das taças. Algo que, em todo o caso, poderá ser narrado aos netos com orgulho.
Dizia da dificuldade de se escolher o lugar exato da fundeação do transatlântico e, por não outra razão que a inexperiência dos tripulantes da embarcação original, o “iba áles I” se perdeu para sempre em sua inicial mas derradeira viagem, tal qual o Titanic (uma emissora de TV, aliás, até prepara um filme, épico, sobre o acidente daquele original “iba áles”, efeitos visuais é que não faltarão). Desde então, todos os tripulantes são exaustivamente treinados na conceituada escola de filosofia Olavão e, à distância, um astronauta dá todo o suporte técnico. Como essa escola concede até título de neo-doutorado (acadêmico e espiritual), há muitos especialistas desse nível dando suporte ideológico no decorrer desse interessante passeio.
Por razões óbvias, não se usa o usual GPS pois ele foi projetado para funcionar na hipótese absurda de uma terra não plana. Por conta desse sistema diabólico, atestam todos os entendidos a bordo, é que se tem a ilusória impressão de que a terra não é plana, mera conspiração contra o verdadeiro saber. O navio sai do principal porto da República de Hygina no meio da madrugada e faz despiste perto da costa para que ninguém consiga saber para que lado irá realmente. Não que isso importasse, todos inteiramente entretidos nas notícias vinculadas pelo grupo de zapzap náutico.
A viagem é agradabilíssima, claro que dentre as condições meritocráticas de cada um. São distribuídos kits rosa-azul e, de entretenimento, há inúmeros campeonato de tiro esportivo (mas com figuras humanas como alvo) e jogos de videogame. O melhor mesmo são as palestras:
·       Plana, mas como é mesmo? Nessa palestra, discute-se a falsa ideia de que o planeta é um quadrado vagando impunemente no espaço. Nada mais inexato que isso. A borda é irregular, representando as famosas linhas tortas. E, é claro, qualquer idiota sabe disso: a terra está parada com o resto do universo rodando ao seu redor.
·       E a borda? Discute-se aqui o mito de que a água transborda ao espaço sideral continuamente. A borda, como só poderia ser, se esconde atrás de geleiras e de montanhas e só uma absurda falta de fé fará crer que a água se perderia no espaço.
·       O sangue é realmente vermelho ou isso é mera ilusão de ótica?
A propósito, de decoração, nada em vermelho, assim determinou o capitão. Só, exceção, aquele grande capacho à entrada dos andares superiores para diversão de seus habitantes.
Seria engraçado se não fosse trágico. Mas, pensando bem, nem engraçado seria...



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