A parte mais
perigosa da excursão é fundear o navio.
Apesar do “iba áles II” ser uma embarcação totalmente preparada para
esse tipo de viagem, esse momento é sempre tenso e preocupante. Não se pode
fundeá-lo muito perto da borda que há sempre o perigo do navio ser arremessado
ao espaço sem fim. Por outro lado, se muito distante dela, não se tem a visão
exata do término do oceano e do planeta.
Não que, de
qualquer forma, alguém deixará de usufruir dessa maravilhosa experiência. Há a
natural gradação de castas meritocráticas e quem não tem o status suficiente só
poderá contribuir financeiramente e, com sorte, ouvir os excitados gritos de
exclamação vindo de cima, além dos tilintares das taças. Algo que, em todo o
caso, poderá ser narrado aos netos com orgulho.
Dizia da dificuldade de se
escolher o lugar exato da fundeação do transatlântico e, por não outra razão
que a inexperiência dos tripulantes da embarcação original, o “iba áles I” se perdeu
para sempre em sua inicial mas derradeira viagem, tal qual o Titanic (uma
emissora de TV, aliás, até prepara um filme, épico, sobre o acidente daquele
original “iba áles”, efeitos visuais é que não faltarão). Desde então, todos os
tripulantes são exaustivamente treinados na conceituada escola de filosofia
Olavão e, à distância, um astronauta dá todo o suporte técnico. Como essa
escola concede até título de neo-doutorado (acadêmico e espiritual), há muitos
especialistas desse nível dando suporte ideológico no decorrer desse
interessante passeio.
Por razões óbvias, não se usa
o usual GPS pois ele foi projetado para funcionar na hipótese absurda de uma
terra não plana. Por conta desse sistema diabólico, atestam todos os entendidos
a bordo, é que se tem a ilusória impressão de que a terra não é plana, mera
conspiração contra o verdadeiro saber. O navio sai do principal porto da
República de Hygina no meio da madrugada e faz despiste perto da costa para que
ninguém consiga saber para que lado irá realmente. Não que isso importasse,
todos inteiramente entretidos nas notícias vinculadas pelo grupo de zapzap
náutico.
A viagem é agradabilíssima,
claro que dentre as condições meritocráticas de cada um. São distribuídos kits
rosa-azul e, de entretenimento, há inúmeros campeonato de tiro esportivo (mas
com figuras humanas como alvo) e jogos de videogame. O melhor mesmo são as
palestras:
· Plana, mas como é mesmo? Nessa
palestra, discute-se a falsa ideia de que o planeta é um quadrado vagando
impunemente no espaço. Nada mais inexato que isso. A borda é irregular,
representando as famosas linhas tortas. E, é claro, qualquer idiota sabe disso:
a terra está parada com o resto do universo rodando ao seu redor.
· E a borda? Discute-se
aqui o mito de que a água transborda ao espaço sideral continuamente. A borda,
como só poderia ser, se esconde atrás de geleiras e de montanhas e só uma
absurda falta de fé fará crer que a água se perderia no espaço.
· O sangue é realmente vermelho ou isso é
mera ilusão de ótica?
A propósito, de decoração,
nada em vermelho, assim determinou o capitão. Só, exceção, aquele grande
capacho à entrada dos andares superiores para diversão de seus habitantes.
Seria engraçado se não fosse
trágico. Mas, pensando bem, nem engraçado seria...
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