Não que assim quisesse ou esperasse, muito pelo contrário,
mas o dia amanhecia nublado de novo, frio, chuvoso. A chuva fina dos
desesperançados, o céu cinzento dos impotentes, a tristeza dos remanescentes, dos
resistentes. Dois anos já e o tempo era sempre esse, quase um desde sempre, já que a memória é curta
nesses tempos de pré-mentiras e pós-verdades, tempos de neoinformações
transitando nos subterrâneos da vida, nas sombras, nos esgotos.
Pela janela, olhava a rua. À espera. Apesar da pressa,
apesar da dor misteriosa em seu corpo, ele teria que esperar o elevador ser
liberado para poder sair. E esperava como todos deviam esperar nesses dias,
resignados e impacientes.
Escada interditada por ordens superiores, todos no prédio,
andares altos ou baixos, dependiam de um único elevador. Mas dependiam
principalmente dele estar liberado, ninguém podia usá-lo pela manhã antes que o
doutor assim o fizesse. Claro que isso trazia os devidos inconvenientes,
atrasos no trabalho e na vida, repreensões por suposta vagabundagem, mal
entendidos diversos, mas o que fazer?
À
espera, olhava a rua pela janela. Pousou a mão esquerda no vidro embaçado e só
aí percebeu, faltava-lhe um dedo, o quarto a partir do polegar, o segundo a
partir do mindinho. Estranhou mais do que qualquer outra coisa, mais que uma
possível dor, como é que poderia ter perdido assim o dedo? Olhou a mão, olhou
os quatro dedos que ainda resistiam e não conseguiu olhar o dedo faltante. A
dor do resto do corpo, que só piorava, fê-lo esquecer o dedo, uma coisa de cada
vez. Doía mais no lado direito à altura dos rins, e como doía! Mas ele esperava,
tinha que.
Em tempos de pós-precisão, o doutor era quase metódico. Acordava
serenamente e com a certeza da verdade embutida em suas entranhas. Um lento e
preciso espreguiço ao que se seguiam as abluções matinais necessárias, o café
escuro sem açúcar com torrada amanteigada, os ovos moles e uma fatia de bolo de
mandioca amanhecido. Com a serenidade que lhe era peculiar, verificava a cada
minuto o seu relógio de bolso.
Em
algum momento precisamente indefinido entre oito e oito e meia da manhã, o doutor
despontava altaneiro de seu apartamento de cobertura e encontrava o elevador à
sua espera. Assim ele gostava, assim a vida o premiara, assim acreditava. Merecedor,
disso estava convicto.
Sozinho na grande maioria das vezes, ele descia até o térreo
onde o porteiro teria a grata autorização de cumprimentá-lo respeitosamente ao
que o doutor inevitavelmente responderia:
- Meu caro, acima de tudo, um bom dia!
Um carro o esperava na rua vazia. O doutor repetia ao
motorista o mesmo cumprimento e, a depender do humor, até se permitia trocar um
par de frases a mais, é importante tratar os subalternos com respeito, assim
aprendera de seu pai. E lá seguiria o doutor sem olhar para trás, sem sequer
imaginar a correria que deixava para trás, gente apressada disputando o único
elevador agora liberado a todos.
E nesse instante, todos sabiam, teriam que aproveitar
aquele par de horas para usá-lo pois, passado esse tempo, a esposa do doutor
poderia, ou não, necessitar do elevador. Ela costumava acordar mais cedo para
preparar o café da manhã do doutor, claro que não dava tempo de se arrumar
totalmente, mas a correria matinal incluiria sim uma ligeira arrumação pessoal.
O doutor detestava tomar café com ela de pijama, mas isso era uma mania que
herdara do avô, dizia sempre entre risos marotos para os seus seguidores.
Com o doutor a bordo do carro, sua esposa finalmente
relaxava, fumava escondida um de seus inúmeros cigarros e punha-se a se
arrumar. Todos no prédio sabiam então que teriam um largo tempo de
disponibilidade do elevador porque ela gostava e gostava, e quem poderia censurá-la
por isso?, de ter esse tempo só para ela. Mais tarde, inevitavelmente, sairia e
visitaria lugares que poucos sabiam onde eram, nem mesmo o doutor. Mas isso não
vem ao caso de ninguém, não é mesmo? Em tempos de neoprépós, alguns assuntos são
proibidos e outros, evita-se comentar.
[[ esse conto continua na próxima quinta]]
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