quinta-feira, 1 de novembro de 2018

iba áles, um


          Não que assim quisesse ou esperasse, muito pelo contrário, mas o dia amanhecia nublado de novo, frio, chuvoso. A chuva fina dos desesperançados, o céu cinzento dos impotentes, a tristeza dos remanescentes, dos resistentes. Dois anos já e o tempo era sempre esse, quase um desde sempre, já que a memória é curta nesses tempos de pré-mentiras e pós-verdades, tempos de neoinformações transitando nos subterrâneos da vida, nas sombras, nos esgotos.
          Pela janela, olhava a rua. À espera. Apesar da pressa, apesar da dor misteriosa em seu corpo, ele teria que esperar o elevador ser liberado para poder sair. E esperava como todos deviam esperar nesses dias, resignados e impacientes.
          Escada interditada por ordens superiores, todos no prédio, andares altos ou baixos, dependiam de um único elevador. Mas dependiam principalmente dele estar liberado, ninguém podia usá-lo pela manhã antes que o doutor assim o fizesse. Claro que isso trazia os devidos inconvenientes, atrasos no trabalho e na vida, repreensões por suposta vagabundagem, mal entendidos diversos, mas o que fazer?
À espera, olhava a rua pela janela. Pousou a mão esquerda no vidro embaçado e só aí percebeu, faltava-lhe um dedo, o quarto a partir do polegar, o segundo a partir do mindinho. Estranhou mais do que qualquer outra coisa, mais que uma possível dor, como é que poderia ter perdido assim o dedo? Olhou a mão, olhou os quatro dedos que ainda resistiam e não conseguiu olhar o dedo faltante. A dor do resto do corpo, que só piorava, fê-lo esquecer o dedo, uma coisa de cada vez. Doía mais no lado direito à altura dos rins, e como doía! Mas ele esperava, tinha que.
          Em tempos de pós-precisão, o doutor era quase metódico. Acordava serenamente e com a certeza da verdade embutida em suas entranhas. Um lento e preciso espreguiço ao que se seguiam as abluções matinais necessárias, o café escuro sem açúcar com torrada amanteigada, os ovos moles e uma fatia de bolo de mandioca amanhecido. Com a serenidade que lhe era peculiar, verificava a cada minuto o seu relógio de bolso.
Em algum momento precisamente indefinido entre oito e oito e meia da manhã, o doutor despontava altaneiro de seu apartamento de cobertura e encontrava o elevador à sua espera. Assim ele gostava, assim a vida o premiara, assim acreditava. Merecedor, disso estava convicto.
          Sozinho na grande maioria das vezes, ele descia até o térreo onde o porteiro teria a grata autorização de cumprimentá-lo respeitosamente ao que o doutor inevitavelmente responderia:
          - Meu caro, acima de tudo, um bom dia!
          Um carro o esperava na rua vazia. O doutor repetia ao motorista o mesmo cumprimento e, a depender do humor, até se permitia trocar um par de frases a mais, é importante tratar os subalternos com respeito, assim aprendera de seu pai. E lá seguiria o doutor sem olhar para trás, sem sequer imaginar a correria que deixava para trás, gente apressada disputando o único elevador agora liberado a todos.
          E nesse instante, todos sabiam, teriam que aproveitar aquele par de horas para usá-lo pois, passado esse tempo, a esposa do doutor poderia, ou não, necessitar do elevador. Ela costumava acordar mais cedo para preparar o café da manhã do doutor, claro que não dava tempo de se arrumar totalmente, mas a correria matinal incluiria sim uma ligeira arrumação pessoal. O doutor detestava tomar café com ela de pijama, mas isso era uma mania que herdara do avô, dizia sempre entre risos marotos para os seus seguidores.
          Com o doutor a bordo do carro, sua esposa finalmente relaxava, fumava escondida um de seus inúmeros cigarros e punha-se a se arrumar. Todos no prédio sabiam então que teriam um largo tempo de disponibilidade do elevador porque ela gostava e gostava, e quem poderia censurá-la por isso?, de ter esse tempo só para ela. Mais tarde, inevitavelmente, sairia e visitaria lugares que poucos sabiam onde eram, nem mesmo o doutor. Mas isso não vem ao caso de ninguém, não é mesmo? Em tempos de neoprépós, alguns assuntos são proibidos e outros, evita-se comentar.

[[ esse conto continua na próxima quinta]]

Nenhum comentário:

Postar um comentário