quinta-feira, 8 de novembro de 2018

iba áles, dois

          Doíam as suas costas, altura do rim direito. Seria uma pedra? Seria uma daquelas dores estranhas que o estava acometendo já há dois anos? Começaram leves, inconstantes e dispersas, pioraram, nunca pararam. Em tempos de neocertezas, o melhor seria se conformar. Mas não, ele resistia. Resistia meio que solitariamente, é certo, mas resistia, queria saber de onde elas vinham.
Meses atrás, descobrira depois de um sonho agitado que lhe faltava uma das orelhas. Procurou então por baixo do travesseiro, por entre os lençóis e nada. Conformara-se ao final, ainda ouvia bem e ainda tinha a outra orelha intacta. Deixou o cabelo crescer, um boné estratégico, ninguém repararia. E, se reparassem, nada seria dito, nada seria apontado nem perguntado. Nesses tempos pós-solidariedade cada um por si que já é demais.
          A dor à altura do rim direito o atordoava particularmente naquele dia e ele saiu bem cedo de casa para procurar ajuda. Descuidado, chamou o elevador assim que ouviu ele se mexer, já deveria estar liberado, já deveria estar disponível a todos.
          Mas qual-o-quê... assim que a porta se abriu nada evitou o constrangedor gesto de um sujeito tentando sair pois achou que já tinha chegado a seu andar e outro sujeito já se dirigindo a entrar no elevador que acabara de chegar. Quase se trombaram, o que poderia levar a consequências inesperadas a ambos, porém indesejáveis a ele.
O doutor percebeu primeiro a confusão e recuou, seu sorriso nada significava além de surpresa e, como o seu humor estava bom aquele dia, de aceitação. Ele, por sua vez, recuou, desculpou-se e tentou fechar a porta pra deixar a vida seguir os seus passos. Mesmo com dor, o prudente era esperar a sua vez.
Em tempos de pré-resignações  nada mais justo que aceitar o destino que nos é imposto intempestivamente e o doutor, magnânimo, segurou a porta aberta e, com um gesto, indicou ao assustado e indefeso e dolorido ele que ali se encontrava que entrasse, que compartilhassem juntos dessa experiência única que é ser transportado na vertical.
- Vamos, garoto, não se acanhe, entre, no elevador cabem nós dois.
Ele ainda persistiu em suas dúvidas, mas a dor o fez aceitar a grata oferta do doutor. Arrependesse depois, arrependido estaria. O doutor ainda falou, no intuito de apressar o rapaz que ainda hesitava.
- Vamos, garoto, o tempo urge!
Entrou. A porta se fechou e seguiram a vertical viagem rumo ao chão.
- E, garoto, acima de tudo, um bom dia!
Sabe a eternidade? É dividir um elevador com o doutor, poucos andares que sejam, tentando disfarçar a dor que sente. É tentar se posicionar à frente dele tentando deixar a sua faltante orelha fora de seu campo de visão. É sentir vergonha de seu cabelo comprido que serve mais pra encobrir que pra enfeitar. É puxar o boné, todo torto, para que não se veja o buraco por onde ainda escuta, por onde escuta cada vez mais, mais barbaridades. É se lembrar do dedo faltante e esconder a mão esquerda por trás da direita.
É esperar o tempo virar pós-tempo.
Mas a eternidade, mesmo ela, um dia se acaba levando junto o tormento. Quando chegaram ao térreo, ele se afastou para dar passagem ao doutor que sorriu e agradeceu.
E só aí ele se deu realmente conta de que compartilhara imprudentemente o elevador com o doutor e que ele até o tratara bem nesse dia.
Essa experiência, ele sabia, não seria relatada a quem quer que fosse. Nem mesmo ao porteiro que, agora está mais preocupado em responder apropriadamente o cumprimento do doutor. Nem a qualquer vizinho que talvez interpretasse mal o que escutasse, seria dado como bajulador de poderosos, seria dado como traidor. Nem aos pós-amigos ou aos futuros pré-conhecidos.
E, acima de tudo, torcer para que o doutor o esquecesse, que nunca se interessasse por sua existência.
Elevador liberado, ouviu os ruídos das pessoas apressadas. Apressou-se ele mesmo e saiu de mansinho pela porta dos fundos, não queria ser visto ali pelo primeiro vizinho que saísse do elevador.
          Passo lento, dor que encurva, seguiu seu caminho. Melhor ele também esquecer o que se passara, melhor se concentrar na dor que não passara e não passará, provavelmente, até sua ida ao seu médico.

[[ na próxima semana, a terceira e última parte desse conto ]]

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