quinta-feira, 15 de novembro de 2018

iba áles, três


A chuva sequer se deu à gentileza de parar naquela manhã. Constante e irritante, o celestial gotejamento fazia piorar ainda mais a dor que ele sentia. Encurvado, o seu pequeno e velho e roto guarda-chuvas mal o protegia da água suja que o céu vertia em cima dele.
Em tempos de neotempestades, permanecer seco era um grande desafio para ele. Mesmo dentro de casa, parecia que a chuva não parava, o tempo nublado encobria todos os cômodos, a neblina que por vezes aparecia escondia até a TV. Pisava poças quando andava do quarto ao banheiro, à cozinha, à sala.
Pingando chuva e desespero, dor e desesperança, ele finalmente chegou ao hospital. Dor insuportável, pressão lá em cima, primeira atitude foi o de deitá-lo em uma maca para estabilização. Ele olhava o teto branco e pensava, como pagar caso precisasse de algum tratamento? A dor seria amenizada, isso a compaixão incluía, incluiria até um pequeno lanchinho antes de ser despachado para casa. Mas a compaixão incluiria também algum necessário tratamento posterior?
Nem deu tempo de pensar muito. Ultrassom assim que a dor amenizou, ressonância assim que o ultrassom mostrou incoerências, o atendente assim que os resultados saíram.
- Bom, meu caro, acima de tudo, as boas notícias!
Ele esperava por uma que fosse, dois anos de más notícias e finalmente uma que fosse, pensou aliviado.
- Vejo pelos exames que você não tem pedras nesse rim direito. Mesmo porque você já não tem o rim direito...
Se o objetivo era desanuviar o ambiente com essa piadinha, o atendente não conseguiu, pois isso só encheu de mais dúvidas o paciente. Como assim eu não tenho o rim direito? Desde quando? Com a confusão estampada em seu rosto, o atendente percebeu que algo não ia bem e mudou o tom.
- Você não tem esse rim, se lembra de quando ele foi extraído?
Ele não se lembrava, não. Suas mãos tocaram o corpo e não sentiram nenhuma cicatriz, recente ou não. O atendente então pediu que ele levantasse a camisa e lá estava, a não cicatriz exibindo a sua não existência.
- Você tem algum ultrassom mais antigo para eu poder comparar?
Não, não tinha.
- Então está explicado. Você nunca teve rim direito, senão apareceria uma cicatriz. A dor, não sabemos sua procedência, mas deve ser a tal dor fantasma que tanto se fala atualmente, algo como uma pós-dor se se pode falar desse jeito, uma psico-dor de acordo com alguns estudos. Mero mimimi... Basta googlear que você encontra detalhes disso, essa internet hoje em dia nos ensina cada coisa! O conhecimento todo lá, nem se precisa mais de outras coisas.
E o atendente parou de falar finalmente. Nunca tive rim direito? Novidade isso. Mas talvez até nunca tenha tido essa orelha que acho que me falta agora, talvez esse dedo da mão esquerda que ora não vejo nunca tenha existido mesmo. Talvez tenham sido apenas frutos de minha imaginação. E eu, existo?
São seguramente os tempos neoprépós incorporados ao cotidiano, nunca se tem certeza do passado. O passado é o que estabelece o momento presente, tudo começa no exato instante em que se vive, nada dessa abstração chamada passado. Talvez o google possa me explicar esse eterno presente. Tempos de pós-passado.
          O atendente interrompeu suas inúteis divagações.
          - Vamos te receitar um calmante e repouso por uns dias. Mas não muitos, porque, acima de tudo, é preciso estar ativo. Ninguém mais quer uma pessoa que não contribua para o bem estar geral, né? E nada de ficar fazendo artes por aí, tá? Isso só vai agravar o seu estado.
          Dito isso e entregue a receita, o atendente se levantou, nada mais havia a ser feito lá. Ele, ainda atordoado, levantou-se, seguiu até a porta e ao tentar abri-la sentiu falta de sua mão, ela não estava lá como acreditava que estivesse quando chegou ao hospital. O atendente percebeu o seu embaraço ao olhar o vazio que ocupava a continuação do braço. Tempos de pós-gentilezas, ele sorriu amarelo e abriu a porta para o confuso paciente.
          Em tempos de neologismos, voltou para casa, mancando a falta de seu pé esquerdo. Não esqueceu de passar na farmácia para comprar o necessário remédio. Acima de tudo, sua saúde.


[[Essa é a terceira parte do conto, as duas primeiras foram publicadas nas semanas anteriores.]]
[[O Thio Therezo após ler esse conto apenas comentou: meio óbvio, não, garoto? meio década de sessenta... Não me restou senão sorrir amarelo, e nem retruquei que são os tempos que são óbvios, que são eles que estão muito década de sessenta, mas deixa prá lá.]]

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