Descendo lá do Castelo de São Jorge pela rua dos trilhos,
pouco antes da Sé, lado direito, há o Museu
Aljube, Resistência e Liberdade. No prédio que abrigava os presos políticos
do regime salazarista é possível agora ter uma clara noção daqueles tempos
sombrios de Portugal, mas também das técnicas de regimes totalitários.
Fernando
Pessoa, fazendo o caminho inverso e indo em direção ao Castelo, em seu guia “Lisboa,
o que o turista deve ver”, menciona assim esse prédio: Um pouco mais acima, onde era antigamente o palácio do arcebispo D. Miguel
de Castro, é a cadeia de mulheres conhecida por Aljube. Não merece a nossa
atenção excepto no que respeita ao passado histórico do próprio edifício.
Mas isso foi antes de Salazar, pois esse guia foi escrito provavelmente em
1925.
Logo
no primeiro andar, compartilhando o espaço sobre Portugal do século XX, há um
vídeo em que se repete e se repete um famoso discurso de Salazar por ocasião do
décimo aniversário do golpe:
“... não discutimos Deus e sua
virtude, não discutimos a autoridade e o seu prestígio, não discutimos a glória
do trabalho e o seu dever, não discutimos a família e a sua moral, não discutimos
a pátria e a sua história...” (Salazar, 1936).
Repetido ad nauseam
pela voz crescentemente irritante do ditador, esse mantra ocupa todo o espaço,
penetra insolentemente nos ouvidos dos presentes, incomoda: “não discutimos, não
discutimos, não discutimos”. É o começo do mal estar.
As celas, a vigilância, as torturas, os interrogatórios, a
enfermaria.
Os processos Kafkanianos, a censura.
Mas também a resistência, as guerras coloniais, o desgaste,
a decadência desse regime depois da morte do ditador.
Os cravos, o 25 de abril.
Difícil não pensar que as ditaduras são muito parecidas em
suas crueldades. Pouco mais ou menos, mais tecnológicas ou não, todas se
parecem. Só diferem na forma em que terminam, com alguma ruptura (ou ao menos
um símbolo) ou num grande acordo de convivência dita pacífica mas que, com o
tempo, irá cobrar o seu preço.
Na visita, cruzei com dois grupos de professores. Estavam lá,
a convite, para conhecerem as atividades do museu e poderem organizar visitas de
seus alunos.
Oficinas, exposições. É preciso não esquecer, é preciso se
ter memória, é preciso deixar claro o absurdo das ditaduras.
A caminho da Praça do Comércio, o Thio Therezo comentou comigo que
a ditadura de 1964 no Brasil não teve um marco que simbolizasse o seu final, não
teve uma ruptura, só uma transição incorporando no novo regime o velho, o de sempre. Temos
marcos para o início, para os vários recrudescimentos, mas não para o seu final.
Nada de cravos, nada de 25 de abril.
E se o final está em aberto, em aberto estará.
Talvez por isso alguns defendem os crimes de tortura, de
estupro e de fuzilamentos sumários sem sequer receber uma advertência institucional, como se propagar
tais crimes fosse uma mera questão de liberdade de expressão. Talvez por isso revisionistas
supremos rebaixam o status da ditadura a mero movimento. Talvez por isso o silêncio
das tais instituições que, dizem, estão em pleno funcionamento.
Talvez por isso, talvez, talvez.
Passamos pela Sé e pela Santo Antônio e o Thio cantarolou
enquanto observávamos as pombas na pracinha:
Grândola,
vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
O céu nublado da tarde de Lisboa chorava o nosso desânimo.
Lisboa, outubro de 2K18
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