quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Mestres treineiros



          Dia outro, Thio Therezo chegou entusiasmado e, assim, contou-nos que tinha recebido o seu certificado de treinador de tartarugas de corrida, grau mestre. Finalmente, diz ele, pois simples não é, nem corriqueiro, imagine-se se poderia ser!
          Recordou-nos, mais uma vez, todo o processo que era chegar a tal honraria. O primeiro passo é convencer um dos três mestres supremos que estão habilitados a ministrarem treinamento para treinadores de tartarugas de corrida. E não é fácil isso, pois por conta da dedicação inerente a tal treino, eles não podem aceitar mais do que dezenove alunos por vez e, sabe-se, candidatos não faltam.
Dezenove alunos, divididos entre todos os três mestres supremos. Claro que por esse número não ser divisível por três, há entre eles uma silenciosa mas republicana porém encarniçada disputa por espaço. Quem tem mais alunos, é sempre melhor visto nessa sociedade, pois aqui, ao contrário de outros lugares, quem ensina está no topo da cadeia de prestígios sociais.
          O primeiro critério a ser analisado é o da maturidade. É coisa séria, é preciso ter vivência, e muita diga-se de passagem. Não é como assumir um desses cargos de poderes ilimitados pouco após sair da adolescência e decidir qualquer coisa que lhe venha à cabeça baseado apenas em suas convicções. Prá certas coisas, importa muito já ter vivido, ter experiências outras, ter assimilado o respeito ao outro e à sociedade, saber ouvir além de saber falar sem arrogância, não ser dono da verdade. E uma dessas coisas é justamente, ensina-nos um supremo mestre, a arte do treinamento de tartarugas de corrida.
          Não menos que quarenta anos de idade serão necessários para sequer ter a primeira lição. Aqui não há exceções, nem auto intitulados notáveis garantindo que alguém de menos idade está preparado, que é um gênio da raça e coisa e tal. Sem exceções, portanto. E, em geral, não menos que outros vinte anos serão necessários para se conseguir o grau de mestre, o grau que o Thio tanto se orgulha em ostentar agora.
          Nem custa dizer o alto grau de desistências, nesse mundo de tantas urgências.
          Pois a primeira fase do treinamento consiste de uma imersão espiritual de seis meses na colina sagrada Tãr Toul (norte da China, onde mais?). Nesse momento, de profunda meditação, é permitida apenas a emissão de dezenove palavras ao dia, o que nos leva a considerar muito bem o valor de cada sílaba pronunciada. O número dezenove, diga-se de passagem e o leitor atento já deve ter desconfiado disso, é considerado um número sagrado para os mestres treinadores e o motivo para tal perde-se nas incertezas do passado. Para qualquer uma das inúmeras versões da real razão, e versão não falta, há contestações e discussões históricas. O Thio, curioso que é, tentou uma vez esclarecer as verdadeiras origens dessa sacritude, mas não resistiu a tantas pré-mentiras e pós-verdades e sucumbiu finalmente à aceitação pura e simples de que o dezenove é de fato um número sagrado. E ponto final.
          Sim, após uma delicada análise, os mestres supremos o aceitaram como aluno e um deles foi designado para o não corriqueiro treinamento. O Thio o descreveu como sendo aquele cara de idade indefinida e sabedoria consolidada, o que mais dizer?
E o treinamento começou. Além do estágio de reflexão, passaram-se dois anos de intensas leituras e conversas antes que o Thio tivesse sequer algum contato com a tartaruga escolhida para ele. Uma das bases do treinamento é a exclusividade. Nem duas, nem dez, nem centenas de tartarugas, mas sim uma a ser treinada a cada vez. Poucos sabem, mas elas são muito sensíveis nesse aspecto e se suspeitarem que o treinador não está se concentrando somente nela, o boicote acontece e dessa tartaruga treinador algum, mestre, grão mestre ou supremo, irá fazê-la readquirir a confiança necessária.
          E assim vai o treinamento. Uma vez ao ano, há uma corrida quando são concedidos os graus de maestria aos treinadores. O de mestre é dado ao melhor colocado na corrida, dentre os que ainda não o sejam, e o de grão mestre àquele que, sendo mestre, consegue ganhar uma corrida com uma tartaruga distinta da qual conseguiu ascender à maestria. Nem precisa ser dito que há pouquíssimos grãos mestres, principalmente que não é bem visto no mundo dos treinadores que alguém, ao adquirir o título de mestre, abandone de imediato a tartaruga responsável por tal feito. É de bom tom que a parceria ainda permaneça por alguns anos, até a tartaruga dar sinais inequívocos de que não quer mais competir. Só aí, o agora mestre pode se sentir à vontade para treinar novas tartarugas.
          Houve um famoso caso de abandono imediato da tartaruga que foi severamente punido com um silêncio dos pares que durou os quinze anos que o mestre ainda viveu, tornado alcoólatra por remorsos de sua insensibilidade.
          Mas não queremos aqui dissertar mais sobre as tartarugas de corrida. Qualquer googleada inconsequente trará informações as mais variadas sobre isso (acompanhadas, em igual número, de fake news que esses são os sinais dos tempos). Informações para todos os gostos, inclusive e principalmente listando os tipos mais apropriados para uma tal competição.
O que queremos agora é relembrar a celebração do Thio quando conquistou o grau de mestre, merecido sim, pois não só a tartaruga que ele treinou foi, em sua primeira corrida, a real vencedora, deixando muito para trás inúmeros mestres que almejavam o posto superior. Tal o impressionante desempenho da tartaruga treinada pelo Thio que os três supremos cogitaram dar-lhe não somente o título de mestre mas promovê-lo diretamente a grão mestre. Ao saber dessa discussão, o Thio fez saber a eles que não merecia tal distinção e, além do mais, para o bem dessa tradição multimilenar não convinha, justo com ele, abrir exceções. Estaria imensamente feliz com o título alcançado pelo resultado da corrida.
          A tartaruga, chamada Esperança, aposentou-se depois dessa famosa e única corrida e ainda viveu conosco alguns anos. Por meio de uma amiga dileta, a Esperança foi parar no imenso apartamento de um solitário jovem onde pode, com suas andanças, procurar a paz que todos buscamos.
          E quanto ao Thio, quando perguntam se ele almeja chegar a grão mestre, ele simplesmente sorri e muda de assunto. A vida é curta demais para tanta ambição, ele diria se não se calasse sobre isso, se seus olhos quase úmidos não revelassem uma pequena mas duradoura decepção...

Lisboa, outubro de 2K18

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