Dia outro, Thio Therezo chegou entusiasmado e, assim,
contou-nos que tinha recebido o seu certificado de treinador de tartarugas de
corrida, grau mestre. Finalmente, diz ele, pois simples não é, nem corriqueiro,
imagine-se se poderia ser!
Recordou-nos, mais uma vez, todo o processo que era chegar
a tal honraria. O primeiro passo é convencer um dos três mestres supremos que
estão habilitados a ministrarem treinamento para treinadores de tartarugas de
corrida. E não é fácil isso, pois por conta da dedicação inerente a tal treino,
eles não podem aceitar mais do que dezenove alunos por vez e, sabe-se,
candidatos não faltam.
Dezenove
alunos, divididos entre todos os três mestres supremos. Claro que por esse
número não ser divisível por três, há entre eles uma silenciosa mas republicana
porém encarniçada disputa por espaço. Quem tem mais alunos, é sempre melhor visto
nessa sociedade, pois aqui, ao contrário de outros lugares, quem ensina está no
topo da cadeia de prestígios sociais.
O primeiro critério a ser analisado é o da maturidade. É
coisa séria, é preciso ter vivência, e muita diga-se de passagem. Não é como
assumir um desses cargos de poderes ilimitados pouco após sair da adolescência
e decidir qualquer coisa que lhe venha à cabeça baseado apenas em suas
convicções. Prá certas coisas, importa muito já ter vivido, ter experiências
outras, ter assimilado o respeito ao outro e à sociedade, saber ouvir além de
saber falar sem arrogância, não ser dono da verdade. E uma dessas coisas é
justamente, ensina-nos um supremo mestre, a arte do treinamento de tartarugas
de corrida.
Não menos que quarenta anos de idade serão necessários para
sequer ter a primeira lição. Aqui não há exceções, nem auto intitulados notáveis
garantindo que alguém de menos idade está preparado, que é um gênio da raça e
coisa e tal. Sem exceções, portanto. E, em geral, não menos que outros vinte anos
serão necessários para se conseguir o grau de mestre, o grau que o Thio tanto
se orgulha em ostentar agora.
Nem custa dizer o alto grau de desistências, nesse mundo de
tantas urgências.
Pois a primeira fase do treinamento consiste de uma imersão
espiritual de seis meses na colina sagrada Tãr
Toul (norte da China, onde mais?). Nesse momento, de profunda meditação, é
permitida apenas a emissão de dezenove palavras ao dia, o que nos leva a
considerar muito bem o valor de cada sílaba pronunciada. O número dezenove,
diga-se de passagem e o leitor atento já deve ter desconfiado disso, é considerado
um número sagrado para os mestres treinadores e o motivo para tal perde-se nas
incertezas do passado. Para qualquer uma das inúmeras versões da real razão, e
versão não falta, há contestações e discussões históricas. O Thio, curioso que
é, tentou uma vez esclarecer as verdadeiras origens dessa sacritude, mas não
resistiu a tantas pré-mentiras e pós-verdades e sucumbiu finalmente à aceitação
pura e simples de que o dezenove é de fato um número sagrado. E ponto final.
Sim, após uma delicada análise, os mestres supremos o
aceitaram como aluno e um deles foi designado para o não corriqueiro
treinamento. O Thio o descreveu como sendo aquele
cara de idade indefinida e sabedoria consolidada, o que mais dizer?
E o
treinamento começou. Além do estágio de reflexão, passaram-se dois anos de
intensas leituras e conversas antes que o Thio tivesse sequer algum contato com
a tartaruga escolhida para ele. Uma das bases do treinamento é a exclusividade.
Nem duas, nem dez, nem centenas de tartarugas, mas sim uma a ser treinada a
cada vez. Poucos sabem, mas elas são muito sensíveis nesse aspecto e se
suspeitarem que o treinador não está se concentrando somente nela, o boicote
acontece e dessa tartaruga treinador algum, mestre, grão mestre ou supremo, irá
fazê-la readquirir a confiança necessária.
E assim vai o treinamento. Uma vez ao ano, há uma corrida
quando são concedidos os graus de maestria aos treinadores. O de mestre é dado
ao melhor colocado na corrida, dentre os que ainda não o sejam, e o de grão
mestre àquele que, sendo mestre, consegue ganhar uma corrida com uma tartaruga
distinta da qual conseguiu ascender à maestria. Nem precisa ser dito que há pouquíssimos
grãos mestres, principalmente que não é bem visto no mundo dos treinadores que
alguém, ao adquirir o título de mestre, abandone de imediato a tartaruga
responsável por tal feito. É de bom tom que a parceria ainda permaneça por
alguns anos, até a tartaruga dar sinais inequívocos de que não quer mais
competir. Só aí, o agora mestre pode se sentir à vontade para treinar novas
tartarugas.
Houve um famoso caso de abandono imediato da tartaruga que
foi severamente punido com um silêncio dos pares que durou os quinze anos que o
mestre ainda viveu, tornado alcoólatra por remorsos de sua insensibilidade.
Mas não queremos aqui dissertar mais sobre as tartarugas de
corrida. Qualquer googleada inconsequente trará informações as mais variadas
sobre isso (acompanhadas, em igual número, de fake news que esses são os sinais dos tempos). Informações para
todos os gostos, inclusive e principalmente listando os tipos mais apropriados
para uma tal competição.
O que
queremos agora é relembrar a celebração do Thio quando conquistou o grau de
mestre, merecido sim, pois não só a tartaruga que ele treinou foi, em sua
primeira corrida, a real vencedora, deixando muito para trás inúmeros mestres
que almejavam o posto superior. Tal o impressionante desempenho da tartaruga
treinada pelo Thio que os três supremos cogitaram dar-lhe não somente o título
de mestre mas promovê-lo diretamente a grão mestre. Ao saber dessa discussão, o
Thio fez saber a eles que não merecia tal distinção e, além do mais, para o bem
dessa tradição multimilenar não convinha, justo com ele, abrir exceções.
Estaria imensamente feliz com o título alcançado pelo resultado da corrida.
A tartaruga, chamada Esperança, aposentou-se depois dessa
famosa e única corrida e ainda viveu conosco alguns anos. Por meio de uma amiga
dileta, a Esperança foi parar no imenso apartamento de um solitário jovem onde
pode, com suas andanças, procurar a paz que todos buscamos.
E quanto ao Thio, quando perguntam se ele almeja chegar a
grão mestre, ele simplesmente sorri e muda de assunto. A vida é curta demais
para tanta ambição, ele diria se não se calasse sobre isso, se seus olhos quase
úmidos não revelassem uma pequena mas duradoura decepção...
Lisboa, outubro de 2K18
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