quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Bueiros inteligentes



         O Thio Therezo é da época em que a palavra inteligente qualificava um ser humano, um elogio a uma característica desses seres aparentemente especiais. Não era algo que poderia se referir a coisas e objetos, muito menos a, por exemplo, um... bueiro!
          - Sim, um bueiro - o Thio se indignava novamente frente à televisão, estávamos vendo um daqueles programas noturnos de variedades – essa matéria aí é sobre um bueiro inteligente! Ach, a que nível chegamos!!!!
          E o Thio agora estava de pé, olhando para a televisão em efusivo e adiantado estágio indignativo. Sim, o Thio era do tempo em que as pessoas ainda se indignavam com as coisas, com os absurdos ouvidos e lidos. Quando parar de se incomodar com certas coisas, o Thio Therezo costumava dizer, melhor morrer.
          - Melhor morrer!!!! – gritou ele.
          Mamãe, irmã do Thio, apareceu de sopetão na sala para ver do que se tratava aquela gritaria toda. Anos de convivência e não tínhamos ainda nos acostumados com os repentes indignativos do Thio. A irmã do Thio, nossa mãe, convenceu-se após alguns instantes que, na realidade, tudo estava em ordem no universo, ninguém estava realmente a morrer e voltou para a preparação de uma daquelas deliciosas sobremesas que tanto adoçavam nossa vida.
          Mas, volta à sala, seguiu o Thio a dissertar por um longo tempo sobre as inúmeras inteligências que se encontravam atualmente, bastava olhar ao redor e lá vinham postes inteligentes, aviões inteligentes, tecidos inteligentes, inteligências inteligentes.
          - Lasanha inteligente, onde já se viu? Vocês a conhecem?
          Frente à nossa negativa e curiosidade, ele então nos contou a estória dessa tal lasanha especial. Aparentemente ela continha uma substância que ajudava na digestão, ao menos assim vinha escrito no cardápio. Por isso, inteligente era e se era assim inteligente por que não trocar com ela algumas ideias?
          - Mas qual-o-quê? Tentei conversar com a lasanha e nem nas usuais amenidades ela quis se meter. Tentei outras frivobanalidades e nada de nadinha. Ficou muda, ignorou-me totalmente! Imagina se tentasse falar sobre filosofia pós-oriental? Ou matemática pré-paradoxal? Física neoquântica? Bah! Na realidade, nem quis insistir muito pois corria o risco da tal substância que ajuda a digestão não cumprir o seu papel e aí, já viu, né? Por fim, nem reclamei da falsa propaganda com o dono do restaurante, ainda mais que, de qualquer forma, a lasanha estava muito saborosa. Burrinha, burrinha, mas muito saborosa.
          Nessas horas, sabemos, melhor é não retrucar, melhor mesmo é tentar usufruir dos ensinamentos do Thio Therezo, a despeito de suas iras usuais voltadas ao universo que, de acordo com ele, se perdeu totalmente. Além disso, de inteligência o Thio entende, é famoso o seu livro “Inteligências pós-artificiais e neonaturais” que tanto sucesso fez anos atrás. Misturando conceitos filosóficos rigorosos e profundos com conexões ao nosso banal cotidiano, esse livro agradou tanto a crítica quanto o público. Pena que eram tempos outros aqueles, e logo o livro foi descendo em sua hierarquia até ser vendido nas estantes de auto-ajuda, cercado pelos livros de culinária medieval de um lado e por biografias autorizadas de duplas de sertanejos acadêmicos pelo outro.
          - Em tempos de terraplanistas e escolas sem partidos, os inteligentes são os bueiros... os bueiros!!! – saiu praguejando o Thio Therezo do alto de sua indignação.
          Aproveitamos e mudamos o canal para um pacato filme de guerra intergaláctica. Sinais dos tempos.

3 comentários:

  1. E o tio Therezo é do tempo em que os nomes podiam ser trocados! Flávio, como sempre é bom saber que os tempos avançam e as palavras têm que ser adequadas a estes. A não ser que falemos do tempo eterno... isto é, dos fenômenos cíclicos - circadiano e, nesse caso espero que por mtos anos o intergaláctico continue na esfera da ficção!
    Já imaginou descobrirmos que este preza mais o partido que a vida?
    inté...

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    1. Regina, é verdade, o Thio é desses tempos de nomes trocados. O meu avô tinha escolhido o nome de Thereza para uma filha que ele achava que estava a caminho. Veio um menino e ele não quis colocar o nome Therezo. Misturou as letras, surgiu a palavra Erthezo e ai ele batizou o meu tio de José Erthezo. Muitos anos depois, eu ressuscitei o Therezo e daí surgiu o Thio Therezo que tem me acompanhado em minhas crônicas e contos. Abraços

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  2. Achei graça quando o tio dizia que lasanha poderia ser burrinha pois isso fez com que ele abrisse uma chance a humanidade de poder reeduca-la. Chance esta, maior que com os terraplanáticos, estes que estão abaixo dos bueiros. Muito bom.

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