quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Terápia


          Malas já devidamente acomodadas no quarto do hotel, é hora então de uma primeira exploração na cidadezinha que o cerca. A pé, como convém; máquina fotográfica indispensável; acompanhado, melhor assim.
          Hora então de conseguir um mapinha da cidade. Mesmo já tendo em seu bolso o celular de última geração, o melhor é ter aquele mapa de papel, cheio de anúncios pelos cantos, tão incômodo em dias de ventos fortes, que se rasgam ao longo da jornada, mal dobrado no bolso. Sim, desses! Minha preferência deve ter a ver com as minhas primeiras viagens que mais pareciam insanas aventuras, pela juventude já vivida e crônica falta de dinheiro daqueles tempos (já não é mais tão crônica, mas também dinheiro sobrando não há).
          Em tempos de tantas facilidades prá viajar, algo do passado felizmente resiste em mim.
          Já devidamente pronto para a exploração geográfica, ânimo em alta, você aí pede um mapinha da cidade no balcão de entrada do hotel.
          Aí, a simpática e sorridente moça te estende um.
          Aí, você o pega agradecido. Mas percebe, inquieto, que ela ainda não o largou e você sente então aquela energia estranha se aproximando, o tempo se nubla, o sol se esconde...
          Aí, ela te olha, sorri mais ainda e diz: “deixa eu te mostrar os pontos principais da cidade”.
          Aí, você quase responde: “não, não precisa, eu me viro...” (de que adianta ter um mapinha se não é prá se confundir com as direções? Se não é prá se convencer da falta de indicação de ruas e praças? Se não é prá perceber que é um mapa feito 20 anos atrás? Prá que ter um mapinha se não é prá se perder por aí e descobrir coisas que o guia Michelin nunca mostraria?)
          Mas, aí, você percebe que a simpática e atenciosa moça não larga o mapa, que ainda sorri enigmaticamente para você e sua companhia. Aí, você se dá conta que simplesmente destruiria um coração se recusasse a ajuda dela (e sua quota de corações destruídos por conta de sua insensibilidade já parece completa).
          Aí, você desiste. Você é que terá o seu coração partido, desiste e concorda com um leve balançar da cabeça. Mesmo assim, quase diz: “sim, mostre-me os lugares principais mas não pegue a caneta, fique longe dela!”
          Aí, você a vê abrir sobre o balcão o mapinha e (não, não, isso não...) a vê pegar a caneta bic azul borrenta!.
          “Bom, nós estamos aqui”, ela diz caprichando uma desproporcional cruz sobre o hotel. E lá se vão duas quadras ao redor... Seu coração sangra, mas ainda espera pelo melhor, otimista que sempre foi, que ela desista da caneta ou que a sua tinta acabe.
          “Saindo por aqui...”
          “À direita?” você tenta distraí-la apontando para a porta do hotel. Mas ela é treinada para tal, há uma disciplina eletiva no curso de hotelaria só para treinar a marcação de mapinhas, muito concorrida aliás.
          “Sim, saindo por aqui, à direita...” ela prossegue sem nem olhar para a porta que você aponta e risca um trajeto, a esperança se esvai ao vê-la entusiasmada na indicação do caminho que você tem que seguir até chegar a, ao que parece, uma catedral, é impossível distinguir algo debaixo dos círculos que ela faz para indicar o local que deve-se ir em primeiro lugar.
          Olho o mapinha e, por ora, apenas um caminho está marcado. Penso em como pegá-lo rapidamente e sair correndo pela porta do hotel. Com sorte, eu a surpreendo e, com a vantagem de que ela precisará dar a volta ao balcão para me alcançar, consigo uma dianteira que a faça desistir de me perseguir pelas ruas com a caneta azul bic. O perigo é a minha acompanhante ser feita de refém nesse momento e só ser liberada se eu retornar o mapinha para a finalização das explicações e marcações.
          Desisto novamente, sua mão foi mais rápida que a minha capacidade para decisões extremas e, de quebra, perdi a maioria das explicações, já quase todo o mapinha está riscado.
          A cereja do bolo foi a indicação da recém inaugurada ciclovia que margeia o rio da cidade (qual? sei lá, não consigo ler com tantos rabiscos...). Duas longas e tortuosas linhas azuis agora cruzam o mapinha de ponta a ponta indicando a tal ciclovia.
          Sorrio, agradeço e quase peço um outro mapa sem riscos (isso ficará para depois, quando outro atendente estiver no balcão de entrada do hotel).
          Saí, pela esquerda do hotel, preciso beber algo. Ainda bem que encontrei o que precisava:



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