quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Gran Hotel


            O Gran Hotel, se é que não estou confundindo o nome, já tinha deixado para trás os seus momentos mais gloriosos quando lá me hospedei nos princípios da década de 90, em minha primeira visita a Montevidéu.
            Se é que me lembro bem das circunstâncias dessa minha ida ao Uruguai, passei lá duas ou três semanas, ainda no início de minha carreira acadêmica, ministrando um minicurso. E o hotel, imponente em suas pretensões mas um tanto quanto decadente em seu cotidiano, deixou-me marcas. Aprendia naqueles dias a gostar daquela cidade, daquele país, um lugar para se retornar sempre que possível.
            Do hotel, lembro-me do quarto com móveis velhos, do ranger da grande escadaria que, por vezes, preferia ao elevador de portas pantográficas e temeroso que me deixasse pelo caminho. Lembro-me do cassino no andar térreo em que gastava meu tempo depois do jantar, só olhando, na penúria que eram aqueles tempos. No último dia, contei as moedinhas e me arrisquei a jogar. Perdi tão rapidamente que nem dá para dizer que, digamos, perdi o dinheiro do cineminha, talvez o do curta metragem, talvez o do trailer... Em todo o caso, foi a única vez que perdi dinheiro em um cassino...
            Lembro-me do final de semana em que houve uma festa de casamento no térreo do hotel e da barulheira subindo pelas escadas curvas e direcionada inevitavelmente para o meu quarto. O arquiteto projetou bem o ambiente, nenhum ruído da festa se perdeu pelo caminho, nada foi desviado do meu quarto que foi o buraco negro do universo sonoro daquele final de semana. Aparentemente, eu era o único hóspede que não tinha alguma ligação com o casamento. Pensei em reclamar mas, o que esperar? um pedido de desculpas e um adiamento no casamento para algum final de semana em que eu não estivesse presente? Antes, e principalmente depois, minha cara serviu para muitos darem risadas mas naquele improvável momento de sensatez evitei que esse número fosse mais alto ainda...
            Lembro-me da Rambla, por onde gosto de andar, caminhar vendo o rio amarronzado, desde sempre, rio esse que eu via, meio que de viés, da janela de meu quarto no Gran Hotel. E lá cantarolar, em momentos de melancolia, a música Cais.
            Lembro-me de caminhar pela cidade, do cineclube perdido em uma daquelas inúmeras ruas iguais daquele quadriculado que é Montevidéu. Das comidas engorduradas com queijo e molho de tomate em abundância, da ausência de salada, não que eu sentisse falta, mas isso chamava a atenção. Dos botecos, lembro, dos restaurantes italianos, lembro, sim, das casas de assados...
            E, por falar em cassino, lembro-me das mesinhas improvisadas por caixas de papelão, onde incautos deixavam o seu dinheiro na ingênua expectativa de descobrir onde estava a bolinha felpuda e colorida, em baixo de qual das três copinhas de alumínio ela se escondia. Por vezes, descansava de minhas longas caminhadas pela cidade só olhando a cena que se repetia, se repetia nas tradicionais feiras de final de semana. O jogador escondia a bolinha debaixo de uma das copinhas e brincava com elas de um lado a outro para alguém descobrir onde ela estava. Um parceiro, que se olhássemos bem estava mais interessado em olhar o entorno, apostava vez ou outra e, adivinhando corretamente onde estava a bolinha, dobrava o dinheiro investido, incentivando os passantes a fazerem o mesmo. Só que na hora agá, a bolinha não estava onde deveria estar, que pena, mais um transeunte irritado perdia o seu dinheirinho. No meio disso, de repente passava alguém correndo e tudo era desmontado em um segundo, caixas de papelão voando pela calçada e pretensa correria. Fazia parte do show esse teatrinho, e logo tudo estava de volta e a procura pelos ingênuos prosseguia.
            A mesma cena, eu as vi em outros lugares, muitos outros foram enganados, mas foi lá que a memória deixou registrada.
            Lembro-me da 18 de Julio, e minha longa caminhada por ela. A praça da independência, o Teatro Solís, as lojas fechadas na Ciudad Vieja que tanto parece o centro dominical de São Paulo. O assado no porto da cidade. Os sebos da Calle Tristán Narvaja onde procurei, inutilmente, uma cópia do esgotadíssimo El país de la cola de paja. As viagens noturnas de ônibus, o sorvete na frente do Palácio Municipal, as meninas que me perguntaram as horas piscando e sorrindo um sorriso interesseiro, mas franco.
            E sim, foram ao menos dois finais de semana pois, lembro-me agora, além do casamento, teve aquele em que acompanhei um colega para a fazenda da família. Luz de lampião, bem rural, interiorzão do Uruguai, presenciei, no domingo, o cruel ritual de castração dos novilhos. Sabe-se lá por que certas imagens ficam, e outras não.
E lembro-me da camiseta que voltou destruída da lavagem, queimada pelo ferro de passar, no Gran Hotel. Isso eu reclamei e ganhei um desconto em uma diária. O que fazer? ao menos não me cobraram a lavagem da agora imprestável camiseta.
            Montevidéu ficou e ainda fica presente em minha memória, nos longos passeios pela Rambla, na carinhosa visita dela que tive no hotel, outro hotel, outros tempos, nos jantares em casas de amigos por lá, no clima amistoso que essa cidade pode proporcionar.

            O Gran Hotel hoje é um escritório, se não me falha a memória, do Mercosul. Passei por lá, na última vez, em minhas andanças pela Rambla. Todo imponente, nem parece que um dia me abrigou lá, nem que deixei minhas moedinhas de final de viagem no cassino em seu andar térreo.

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