Éramos de crianças a jovens e
nessa época fomos muitas vezes a um sítio que nossos tios tinham perto de Itu.
No começo, muitas vezes, apressadamente que imagens estão até desbotadas. Com o
tempo, as lembranças são mais nítidas.
Lembro do pangaré que havia por lá no princípio e lembro
da lição que aprendi com ele, de que nunca teria o controle de minha vida, as
coisas aconteceram e aconteceriam como se conduzidas por um pangaré no final da
vida, teimoso e preguiçoso. Pois lembro-me de, montado nele, não conseguir de
forma alguma fazê-lo ir para onde eu queria. Ele se meteu debaixo da pequena
construção que abrigava um poço, queria que queria beber do balde de água que
lá estava. E nada de ele me obedecer e eu tive, ao final, que me curvar para
não topar com o telhado, tive que me esgueirar para desmontá-lo, quase um
tombo. Ele ainda olhou-me de relance com o mesmo olhar que a vida me dá quando
me prega dessas peças, quando tento, inutilmente, ter algum controle dela...
Voltei a pé para a casa principal do sítio mastigando
minhas frustrações.
Lembro da água fervente na máquina de moer cana, uma
coleção invejável de insetos fugindo de suas entranhas. A farra para se fazer a
garapa sagrada de todo final de semana.
Lembro da roldana que o primo mais velho instalou em uma
árvore alta para brincarmos de gangorra.
Lembro da jabuticabeira, do lençol branco embaixo dela,
da sacudidela com força e da chuva de jabuticabas. E de comê-las até enjoar.
Das mangas, rosa e espada, que, na sobra, eram vendidas
para os passantes da estrada, pura diversão no final do dia.
Das pinturas de minha tia, das caixinhas marcadas
delicadamente a fogo e que a todos, primos incluídos, éramos permitidos
experimentar.
E lembro da Tutti e da Frutti, duas cadelinhas da cidade
deslumbradas com aquela imensidão que lhes parecia o sítio de Itu. Uma de cada uma
de nossas tias, a Frutti era um pouco maior do que a Tutti. E nem me perguntem
a raça, sou ignóbil nisso também, cachorros para mim são divididos em pequenos,
médios ou grandes, pelos curtos ou longos, ranzinzas ou tranquilos...
A Tutti e a Frutti eram pequenas, pelos curtos marrons e
tranquilas. Isto é, tranquilas a menos que não vissem alguma das galinhas que
se achavam no direito de desfilar livremente pelo sítio. Por isso, a Tutti e a
Frutti ficavam presas quando estavam de visita por lá.
Lembro, e isso era frequente, de uma delas,
alternadamente a Tutti ou a Frutti, saindo correndo inesperadamente atrás de
uma galinha que, afoita e desesperada, tentava fazer o que sonham todas elas,
voar.
Mas a Tutti, ou seria a Frutti, não estava amarrada?
perguntavam os adultos. E a correria não parava com a Frutti, ou seria a Tutti,
latindo e percorrendo os caminhos afoitos já percorridos pela galinha. Iam
agora, atrás da Tutti, ou seria a Frutti, alguns adultos preocupados com a
saúde do galináceo e, é claro, atrás de todos, os primos fazendo alvoroço e
aumentando os decibéis da confusão.
Tudo terminava com a Frutti, ou seria a Tutti, espumando
penas de galinhas, olhar satisfeito, no colo da tia, com a galinha ofegante à
beira de um ataque cardíaco e com todos se perguntando quem teria solto a
Tutti, ou seria a Frutti...
Sobrevivíamos todos ao final, talvez com um pequeno
trauma para a galinha da vez, nada que muito durasse. Não me lembro de vez
alguma em que a galinha não tenha sobrevivido a isso. Não sobreviveriam,
porém, por razões, digamos, mais
culinárias.
Todos sabíamos qual dos primos era o rebelde responsável
pela libertação da Tutti-Frutti, mas nunca o vimos ser repreendido. Essa
correria fazia parte de nosso final de semana, assim como a garapa, a gangorra
e a manga, idílio naqueles tempos em que no sítio não entravam todas aquelas
sombras que tanto assustavam o país. A gente se isolava do mundo para comungar
alegrias e família. E os primos, éramos de crianças a jovens.
Lembrei-me disso outro dia. Tempos distintos, parece que
porteira alguma de sítio já não nos protege mais. Lembrei-me disso ao ver
tantos pitbulls sendo soltos por aí, espumando de ódio a perseguirem os
incautos. E agora me pergunto, quem é que irá recolhê-los ao final?
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